Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião|Na utopia seremos julgados apenas como indivíduos, nunca como gênero, raça ou renda


A verdade é que ninguém, seja pobre, negra, mulher, LGBT, é o obrigado a ser militante, mesmo que a causa seja justa e urgente; forçá-las a agir de determinada maneira só porque há a convicção da necessidade da luta é um movimento autoritário

Por Fabiano Lana

Haveria uma hierarquia metafísica no mundo. Iria do homem, branco, rico, hétero e anglo-saxão, como ponta da pirâmide, a representar os mais poderosos, até uma mulher, preta, pobre e homossexual, de um país subdesenvolvido, na base. De um lado, o detentor de todos os poderes e privilégios; do outro, a vítima de todas as injustiça e humilhações. Na mística identitária (ou o nome que se queira dar ao movimento), inclusive, haveria uma superioridade moral dos grupos oprimidos – em sua luta contra a opressão de quem está no ápice. Se o topo da pirâmide for um homem branco, rico, americano e de direita, como o exemplo concretíssimo do ex-presidente americano Donald Trump, a mitologia opressor-oprimido que paira acima das circunstâncias individuais ficará mais completa.

A perplexidade que o caso da demissão do ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida gera – após supostas acusações de importunação sexual feitas pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco – é porque colocou em choque duas pessoas que, em tese, deveriam, como representantes de seus grupos, estarem unidos e coesos, e em luta contra a branquitude opressora – nunca em conflito interno. Mas quando as situações são vistas com uma lupa, as pessoas, em sua humanidade, mesquinharias, atos de grandeza, contradições, tudo junto, costumam jogar por terra as grandes teorias – à esquerda ou à direita.

Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos do governo Lula Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
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O racismo e as consequências de uma sociedade forjada na escravidão são mais do que evidentes. E não se mostram apenas nas estatísticas gritantes. Observem um restaurante sofisticado, a cor da pele de quem serve e quem é servido. Nas profissões mais serviçais e em quem as ocupam. O racismo pode estar num olhar reprovador de quem não consegue se disfarçar. Pode estar interiorizado em quem alisa obsessivamente o cabelo em busca de um padrão europeu. “Por mais que me exponha ao ressentimento dos meus irmãos de cor, direi que um negro não é um homem”, afirmou o filósofo antilhano Frantz Fanon, no brilhante e controverso libelo: “Pele negra, máscaras brancas” – obra, dos anos 50, entre os pilares do movimento decolonial e incontornável na luta que segue até os dias atuais.

Mas há um efeito colateral de julgar – para o bem ou para o mal – as pessoas pelo que representam e não por suas ações individuais. Por exemplo, se um preto, por um lado, sofre preconceito de cor de brancos, é o suspeito eterno, digamos, à direita; por outro, é pressionado a agir como militante de causa, pela esquerda. Senão pode ser visto como um traidor do seu povo. Mas a verdade é que ninguém, seja pobre, negra, mulher, LGBT, é o obrigado a ser militante, mesmo que a causa seja justa e urgente. As pessoas podem ser o que querem ser. Forçá-las a agir de determinada maneira só porque há a convicção da necessidade da luta é um movimento autoritário.

Aqui não se discute os acontecimentos factuais das denúncias contra Silvio Almeida. Ainda não conhecemos com exatidão os pormenores e casos diversos começam a irromper na imprensa. Mas o ministro Silvio Almeida foi tragado por um tipo de movimento que ele também era visto como um símbolo – de que a vítima, quando pertencentes a grupos de base da pirâmide relatada acima, tem sempre razão. Uma espécie de dogma de seu grupo político do qual agora não consegue se defender sem entrar em contradição. Por ser homem, por sua posição intelectual, de formação, ele está algumas escalas acima de Anielle. Logo, é culpado.

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É quase impossível contar esse caso do Silvio x Anielle sem olhar para a nossa longa história. Por milênios, a humanidade escravizou-se uns aos outros. De certa maneira, a história da civilização é a história da escravidão. Levaremos séculos para nos livrarmos dessa nódoa. Mas poderíamos traçar uma meta: que essas questões que nos dividem como raça, gênero, sexo, opção sexual um dia deixem de ser um questão relevante. Que fiquem no passado das divisões que por tanto tempo nos impediram de sermos justos. Precisaremos de muito desenvolvimento econômico, de milhares de grandes passos em direção à uma igualdade de opções para isso. Mas pode ser um rumo.

Por fim, mas não menos importante. Para uma pessoa miscigenada, do ponto de vista individual e existencial, a discussão sobre branquitude e negritude pode não fazer sentido. Porque o miscigenado não se identifica com noções de raças ou etnias estanques – compartilha todas em seus genes que definem a cor da pele. Parte dos militantes mais ortodoxos da causa negra condena a miscigenação alegando que sua origem se deve a estupros de senhores contra escravas. Vamos partir do pressuposto de que seja uma verdade histórica. Entretanto, a mescla de cores se tornou hoje um fato, nos constituiu como brasileiros – a sua maioria, aliás. Logo, milhões de miscigenados não podem ser tirados do debate por quem ainda, no final das contas, vê a questão de cores no Brasil sem contrastes, distinções e sutilezas.

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Haveria uma hierarquia metafísica no mundo. Iria do homem, branco, rico, hétero e anglo-saxão, como ponta da pirâmide, a representar os mais poderosos, até uma mulher, preta, pobre e homossexual, de um país subdesenvolvido, na base. De um lado, o detentor de todos os poderes e privilégios; do outro, a vítima de todas as injustiça e humilhações. Na mística identitária (ou o nome que se queira dar ao movimento), inclusive, haveria uma superioridade moral dos grupos oprimidos – em sua luta contra a opressão de quem está no ápice. Se o topo da pirâmide for um homem branco, rico, americano e de direita, como o exemplo concretíssimo do ex-presidente americano Donald Trump, a mitologia opressor-oprimido que paira acima das circunstâncias individuais ficará mais completa.

A perplexidade que o caso da demissão do ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida gera – após supostas acusações de importunação sexual feitas pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco – é porque colocou em choque duas pessoas que, em tese, deveriam, como representantes de seus grupos, estarem unidos e coesos, e em luta contra a branquitude opressora – nunca em conflito interno. Mas quando as situações são vistas com uma lupa, as pessoas, em sua humanidade, mesquinharias, atos de grandeza, contradições, tudo junto, costumam jogar por terra as grandes teorias – à esquerda ou à direita.

Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos do governo Lula Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

O racismo e as consequências de uma sociedade forjada na escravidão são mais do que evidentes. E não se mostram apenas nas estatísticas gritantes. Observem um restaurante sofisticado, a cor da pele de quem serve e quem é servido. Nas profissões mais serviçais e em quem as ocupam. O racismo pode estar num olhar reprovador de quem não consegue se disfarçar. Pode estar interiorizado em quem alisa obsessivamente o cabelo em busca de um padrão europeu. “Por mais que me exponha ao ressentimento dos meus irmãos de cor, direi que um negro não é um homem”, afirmou o filósofo antilhano Frantz Fanon, no brilhante e controverso libelo: “Pele negra, máscaras brancas” – obra, dos anos 50, entre os pilares do movimento decolonial e incontornável na luta que segue até os dias atuais.

Mas há um efeito colateral de julgar – para o bem ou para o mal – as pessoas pelo que representam e não por suas ações individuais. Por exemplo, se um preto, por um lado, sofre preconceito de cor de brancos, é o suspeito eterno, digamos, à direita; por outro, é pressionado a agir como militante de causa, pela esquerda. Senão pode ser visto como um traidor do seu povo. Mas a verdade é que ninguém, seja pobre, negra, mulher, LGBT, é o obrigado a ser militante, mesmo que a causa seja justa e urgente. As pessoas podem ser o que querem ser. Forçá-las a agir de determinada maneira só porque há a convicção da necessidade da luta é um movimento autoritário.

Aqui não se discute os acontecimentos factuais das denúncias contra Silvio Almeida. Ainda não conhecemos com exatidão os pormenores e casos diversos começam a irromper na imprensa. Mas o ministro Silvio Almeida foi tragado por um tipo de movimento que ele também era visto como um símbolo – de que a vítima, quando pertencentes a grupos de base da pirâmide relatada acima, tem sempre razão. Uma espécie de dogma de seu grupo político do qual agora não consegue se defender sem entrar em contradição. Por ser homem, por sua posição intelectual, de formação, ele está algumas escalas acima de Anielle. Logo, é culpado.

É quase impossível contar esse caso do Silvio x Anielle sem olhar para a nossa longa história. Por milênios, a humanidade escravizou-se uns aos outros. De certa maneira, a história da civilização é a história da escravidão. Levaremos séculos para nos livrarmos dessa nódoa. Mas poderíamos traçar uma meta: que essas questões que nos dividem como raça, gênero, sexo, opção sexual um dia deixem de ser um questão relevante. Que fiquem no passado das divisões que por tanto tempo nos impediram de sermos justos. Precisaremos de muito desenvolvimento econômico, de milhares de grandes passos em direção à uma igualdade de opções para isso. Mas pode ser um rumo.

Por fim, mas não menos importante. Para uma pessoa miscigenada, do ponto de vista individual e existencial, a discussão sobre branquitude e negritude pode não fazer sentido. Porque o miscigenado não se identifica com noções de raças ou etnias estanques – compartilha todas em seus genes que definem a cor da pele. Parte dos militantes mais ortodoxos da causa negra condena a miscigenação alegando que sua origem se deve a estupros de senhores contra escravas. Vamos partir do pressuposto de que seja uma verdade histórica. Entretanto, a mescla de cores se tornou hoje um fato, nos constituiu como brasileiros – a sua maioria, aliás. Logo, milhões de miscigenados não podem ser tirados do debate por quem ainda, no final das contas, vê a questão de cores no Brasil sem contrastes, distinções e sutilezas.

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Haveria uma hierarquia metafísica no mundo. Iria do homem, branco, rico, hétero e anglo-saxão, como ponta da pirâmide, a representar os mais poderosos, até uma mulher, preta, pobre e homossexual, de um país subdesenvolvido, na base. De um lado, o detentor de todos os poderes e privilégios; do outro, a vítima de todas as injustiça e humilhações. Na mística identitária (ou o nome que se queira dar ao movimento), inclusive, haveria uma superioridade moral dos grupos oprimidos – em sua luta contra a opressão de quem está no ápice. Se o topo da pirâmide for um homem branco, rico, americano e de direita, como o exemplo concretíssimo do ex-presidente americano Donald Trump, a mitologia opressor-oprimido que paira acima das circunstâncias individuais ficará mais completa.

A perplexidade que o caso da demissão do ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida gera – após supostas acusações de importunação sexual feitas pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco – é porque colocou em choque duas pessoas que, em tese, deveriam, como representantes de seus grupos, estarem unidos e coesos, e em luta contra a branquitude opressora – nunca em conflito interno. Mas quando as situações são vistas com uma lupa, as pessoas, em sua humanidade, mesquinharias, atos de grandeza, contradições, tudo junto, costumam jogar por terra as grandes teorias – à esquerda ou à direita.

Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos do governo Lula Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

O racismo e as consequências de uma sociedade forjada na escravidão são mais do que evidentes. E não se mostram apenas nas estatísticas gritantes. Observem um restaurante sofisticado, a cor da pele de quem serve e quem é servido. Nas profissões mais serviçais e em quem as ocupam. O racismo pode estar num olhar reprovador de quem não consegue se disfarçar. Pode estar interiorizado em quem alisa obsessivamente o cabelo em busca de um padrão europeu. “Por mais que me exponha ao ressentimento dos meus irmãos de cor, direi que um negro não é um homem”, afirmou o filósofo antilhano Frantz Fanon, no brilhante e controverso libelo: “Pele negra, máscaras brancas” – obra, dos anos 50, entre os pilares do movimento decolonial e incontornável na luta que segue até os dias atuais.

Mas há um efeito colateral de julgar – para o bem ou para o mal – as pessoas pelo que representam e não por suas ações individuais. Por exemplo, se um preto, por um lado, sofre preconceito de cor de brancos, é o suspeito eterno, digamos, à direita; por outro, é pressionado a agir como militante de causa, pela esquerda. Senão pode ser visto como um traidor do seu povo. Mas a verdade é que ninguém, seja pobre, negra, mulher, LGBT, é o obrigado a ser militante, mesmo que a causa seja justa e urgente. As pessoas podem ser o que querem ser. Forçá-las a agir de determinada maneira só porque há a convicção da necessidade da luta é um movimento autoritário.

Aqui não se discute os acontecimentos factuais das denúncias contra Silvio Almeida. Ainda não conhecemos com exatidão os pormenores e casos diversos começam a irromper na imprensa. Mas o ministro Silvio Almeida foi tragado por um tipo de movimento que ele também era visto como um símbolo – de que a vítima, quando pertencentes a grupos de base da pirâmide relatada acima, tem sempre razão. Uma espécie de dogma de seu grupo político do qual agora não consegue se defender sem entrar em contradição. Por ser homem, por sua posição intelectual, de formação, ele está algumas escalas acima de Anielle. Logo, é culpado.

É quase impossível contar esse caso do Silvio x Anielle sem olhar para a nossa longa história. Por milênios, a humanidade escravizou-se uns aos outros. De certa maneira, a história da civilização é a história da escravidão. Levaremos séculos para nos livrarmos dessa nódoa. Mas poderíamos traçar uma meta: que essas questões que nos dividem como raça, gênero, sexo, opção sexual um dia deixem de ser um questão relevante. Que fiquem no passado das divisões que por tanto tempo nos impediram de sermos justos. Precisaremos de muito desenvolvimento econômico, de milhares de grandes passos em direção à uma igualdade de opções para isso. Mas pode ser um rumo.

Por fim, mas não menos importante. Para uma pessoa miscigenada, do ponto de vista individual e existencial, a discussão sobre branquitude e negritude pode não fazer sentido. Porque o miscigenado não se identifica com noções de raças ou etnias estanques – compartilha todas em seus genes que definem a cor da pele. Parte dos militantes mais ortodoxos da causa negra condena a miscigenação alegando que sua origem se deve a estupros de senhores contra escravas. Vamos partir do pressuposto de que seja uma verdade histórica. Entretanto, a mescla de cores se tornou hoje um fato, nos constituiu como brasileiros – a sua maioria, aliás. Logo, milhões de miscigenados não podem ser tirados do debate por quem ainda, no final das contas, vê a questão de cores no Brasil sem contrastes, distinções e sutilezas.

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Haveria uma hierarquia metafísica no mundo. Iria do homem, branco, rico, hétero e anglo-saxão, como ponta da pirâmide, a representar os mais poderosos, até uma mulher, preta, pobre e homossexual, de um país subdesenvolvido, na base. De um lado, o detentor de todos os poderes e privilégios; do outro, a vítima de todas as injustiça e humilhações. Na mística identitária (ou o nome que se queira dar ao movimento), inclusive, haveria uma superioridade moral dos grupos oprimidos – em sua luta contra a opressão de quem está no ápice. Se o topo da pirâmide for um homem branco, rico, americano e de direita, como o exemplo concretíssimo do ex-presidente americano Donald Trump, a mitologia opressor-oprimido que paira acima das circunstâncias individuais ficará mais completa.

A perplexidade que o caso da demissão do ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida gera – após supostas acusações de importunação sexual feitas pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco – é porque colocou em choque duas pessoas que, em tese, deveriam, como representantes de seus grupos, estarem unidos e coesos, e em luta contra a branquitude opressora – nunca em conflito interno. Mas quando as situações são vistas com uma lupa, as pessoas, em sua humanidade, mesquinharias, atos de grandeza, contradições, tudo junto, costumam jogar por terra as grandes teorias – à esquerda ou à direita.

Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos do governo Lula Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

O racismo e as consequências de uma sociedade forjada na escravidão são mais do que evidentes. E não se mostram apenas nas estatísticas gritantes. Observem um restaurante sofisticado, a cor da pele de quem serve e quem é servido. Nas profissões mais serviçais e em quem as ocupam. O racismo pode estar num olhar reprovador de quem não consegue se disfarçar. Pode estar interiorizado em quem alisa obsessivamente o cabelo em busca de um padrão europeu. “Por mais que me exponha ao ressentimento dos meus irmãos de cor, direi que um negro não é um homem”, afirmou o filósofo antilhano Frantz Fanon, no brilhante e controverso libelo: “Pele negra, máscaras brancas” – obra, dos anos 50, entre os pilares do movimento decolonial e incontornável na luta que segue até os dias atuais.

Mas há um efeito colateral de julgar – para o bem ou para o mal – as pessoas pelo que representam e não por suas ações individuais. Por exemplo, se um preto, por um lado, sofre preconceito de cor de brancos, é o suspeito eterno, digamos, à direita; por outro, é pressionado a agir como militante de causa, pela esquerda. Senão pode ser visto como um traidor do seu povo. Mas a verdade é que ninguém, seja pobre, negra, mulher, LGBT, é o obrigado a ser militante, mesmo que a causa seja justa e urgente. As pessoas podem ser o que querem ser. Forçá-las a agir de determinada maneira só porque há a convicção da necessidade da luta é um movimento autoritário.

Aqui não se discute os acontecimentos factuais das denúncias contra Silvio Almeida. Ainda não conhecemos com exatidão os pormenores e casos diversos começam a irromper na imprensa. Mas o ministro Silvio Almeida foi tragado por um tipo de movimento que ele também era visto como um símbolo – de que a vítima, quando pertencentes a grupos de base da pirâmide relatada acima, tem sempre razão. Uma espécie de dogma de seu grupo político do qual agora não consegue se defender sem entrar em contradição. Por ser homem, por sua posição intelectual, de formação, ele está algumas escalas acima de Anielle. Logo, é culpado.

É quase impossível contar esse caso do Silvio x Anielle sem olhar para a nossa longa história. Por milênios, a humanidade escravizou-se uns aos outros. De certa maneira, a história da civilização é a história da escravidão. Levaremos séculos para nos livrarmos dessa nódoa. Mas poderíamos traçar uma meta: que essas questões que nos dividem como raça, gênero, sexo, opção sexual um dia deixem de ser um questão relevante. Que fiquem no passado das divisões que por tanto tempo nos impediram de sermos justos. Precisaremos de muito desenvolvimento econômico, de milhares de grandes passos em direção à uma igualdade de opções para isso. Mas pode ser um rumo.

Por fim, mas não menos importante. Para uma pessoa miscigenada, do ponto de vista individual e existencial, a discussão sobre branquitude e negritude pode não fazer sentido. Porque o miscigenado não se identifica com noções de raças ou etnias estanques – compartilha todas em seus genes que definem a cor da pele. Parte dos militantes mais ortodoxos da causa negra condena a miscigenação alegando que sua origem se deve a estupros de senhores contra escravas. Vamos partir do pressuposto de que seja uma verdade histórica. Entretanto, a mescla de cores se tornou hoje um fato, nos constituiu como brasileiros – a sua maioria, aliás. Logo, milhões de miscigenados não podem ser tirados do debate por quem ainda, no final das contas, vê a questão de cores no Brasil sem contrastes, distinções e sutilezas.

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Haveria uma hierarquia metafísica no mundo. Iria do homem, branco, rico, hétero e anglo-saxão, como ponta da pirâmide, a representar os mais poderosos, até uma mulher, preta, pobre e homossexual, de um país subdesenvolvido, na base. De um lado, o detentor de todos os poderes e privilégios; do outro, a vítima de todas as injustiça e humilhações. Na mística identitária (ou o nome que se queira dar ao movimento), inclusive, haveria uma superioridade moral dos grupos oprimidos – em sua luta contra a opressão de quem está no ápice. Se o topo da pirâmide for um homem branco, rico, americano e de direita, como o exemplo concretíssimo do ex-presidente americano Donald Trump, a mitologia opressor-oprimido que paira acima das circunstâncias individuais ficará mais completa.

A perplexidade que o caso da demissão do ex-ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida gera – após supostas acusações de importunação sexual feitas pela ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco – é porque colocou em choque duas pessoas que, em tese, deveriam, como representantes de seus grupos, estarem unidos e coesos, e em luta contra a branquitude opressora – nunca em conflito interno. Mas quando as situações são vistas com uma lupa, as pessoas, em sua humanidade, mesquinharias, atos de grandeza, contradições, tudo junto, costumam jogar por terra as grandes teorias – à esquerda ou à direita.

Silvio Almeida, ex-ministro dos Direitos Humanos do governo Lula Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil

O racismo e as consequências de uma sociedade forjada na escravidão são mais do que evidentes. E não se mostram apenas nas estatísticas gritantes. Observem um restaurante sofisticado, a cor da pele de quem serve e quem é servido. Nas profissões mais serviçais e em quem as ocupam. O racismo pode estar num olhar reprovador de quem não consegue se disfarçar. Pode estar interiorizado em quem alisa obsessivamente o cabelo em busca de um padrão europeu. “Por mais que me exponha ao ressentimento dos meus irmãos de cor, direi que um negro não é um homem”, afirmou o filósofo antilhano Frantz Fanon, no brilhante e controverso libelo: “Pele negra, máscaras brancas” – obra, dos anos 50, entre os pilares do movimento decolonial e incontornável na luta que segue até os dias atuais.

Mas há um efeito colateral de julgar – para o bem ou para o mal – as pessoas pelo que representam e não por suas ações individuais. Por exemplo, se um preto, por um lado, sofre preconceito de cor de brancos, é o suspeito eterno, digamos, à direita; por outro, é pressionado a agir como militante de causa, pela esquerda. Senão pode ser visto como um traidor do seu povo. Mas a verdade é que ninguém, seja pobre, negra, mulher, LGBT, é o obrigado a ser militante, mesmo que a causa seja justa e urgente. As pessoas podem ser o que querem ser. Forçá-las a agir de determinada maneira só porque há a convicção da necessidade da luta é um movimento autoritário.

Aqui não se discute os acontecimentos factuais das denúncias contra Silvio Almeida. Ainda não conhecemos com exatidão os pormenores e casos diversos começam a irromper na imprensa. Mas o ministro Silvio Almeida foi tragado por um tipo de movimento que ele também era visto como um símbolo – de que a vítima, quando pertencentes a grupos de base da pirâmide relatada acima, tem sempre razão. Uma espécie de dogma de seu grupo político do qual agora não consegue se defender sem entrar em contradição. Por ser homem, por sua posição intelectual, de formação, ele está algumas escalas acima de Anielle. Logo, é culpado.

É quase impossível contar esse caso do Silvio x Anielle sem olhar para a nossa longa história. Por milênios, a humanidade escravizou-se uns aos outros. De certa maneira, a história da civilização é a história da escravidão. Levaremos séculos para nos livrarmos dessa nódoa. Mas poderíamos traçar uma meta: que essas questões que nos dividem como raça, gênero, sexo, opção sexual um dia deixem de ser um questão relevante. Que fiquem no passado das divisões que por tanto tempo nos impediram de sermos justos. Precisaremos de muito desenvolvimento econômico, de milhares de grandes passos em direção à uma igualdade de opções para isso. Mas pode ser um rumo.

Por fim, mas não menos importante. Para uma pessoa miscigenada, do ponto de vista individual e existencial, a discussão sobre branquitude e negritude pode não fazer sentido. Porque o miscigenado não se identifica com noções de raças ou etnias estanques – compartilha todas em seus genes que definem a cor da pele. Parte dos militantes mais ortodoxos da causa negra condena a miscigenação alegando que sua origem se deve a estupros de senhores contra escravas. Vamos partir do pressuposto de que seja uma verdade histórica. Entretanto, a mescla de cores se tornou hoje um fato, nos constituiu como brasileiros – a sua maioria, aliás. Logo, milhões de miscigenados não podem ser tirados do debate por quem ainda, no final das contas, vê a questão de cores no Brasil sem contrastes, distinções e sutilezas.

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Opinião por Fabiano Lana

Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

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