Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião|No Brasil, ao contrário dos EUA, é preciso compor para vencer


Há no País um eleitor de centro que foge tanto das pautas identitárias da esquerda como das pautas isolacionistas e mesmo preconceituosas da direita. Aqui, ao contrário do nosso vizinho do norte, quem não compõe não leva

Por Fabiano Lana
Atualização:

Mesmo não exatamente inesperada, a vitória de Donald Trump nas eleições americanas deixou muita gente ao redor do mundo em estado de choque, paralisada, apreensiva. Como um empresário tão extravagante, boquirroto, inconsequente, talvez com tendências golpistas e autocratas, se sagra vitorioso mais uma vez, com relativa tranquilidade, no pleito democrático da maior economia do mundo? O eleitorado dos EUA entrou num transe que irá afetar o planeta inteiro, com resultados imprevisíveis? E que consequência isso trará para o Brasil?

Em primeiro lugar, vamos tentar responder à última pergunta. Nos EUA há dezenas de partidos, mas a tradição é votar nos democratas ou nos republicanos. E, nos últimos anos, a agremiação de Trump foi se aproximando de um reacionarismo radical, enquanto o partido de Kamala Harris abraçou os identitarismos de ocasião. Não há algo como um centro (OK, um Centrão) para acomodar os votos de quem não está satisfeito com um lado ou com outro. Nesse sentido, a comparação direta com o Brasil será sempre imperfeita.

Donald Trump aponta para a multidão durante festa da vitória, na Flórida, nesta quarta-feira, 6  Foto: Julia Demaree Nikhinson/Associated Press
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Mas ficou mais do que claro que o chamado identitarismo acabou por se tornar uma bomba de efeito retardado sobre as linhas políticas pós-marxistas, mesmo da esquerda light, que quiseram trocar a revolução pelas causas das minorias. Ao estilhaçar a “guerra de classes” em uma série de microdisputas como negros contra brancos, homens contra mulheres, héteros contra gays, na prática perderam a possiblidade de vencer competições majoritárias, limitando-se a candidatos de nicho. Sem falar que a direita, em reação, acabou por se apropriar de identidades muito mais poderosas eleitoralmente, como família, religião ou pátria (perde muito, em ambos os casos, o liberalismo clássico que aposta no universalismo contra qualquer identidade pessoal, local ou tribal).

Um homem negro hétero, por exemplo, seria opressor por ser “macho” e oprimido pela cor da pele (?), entre outras confusões geradas pelo movimento que acabou por colocar todos contra todos. No Brasil, o presidente Lula, por esperteza política, nunca aderiu a essas tendências que se tornaram devastadoras para o potencial de votos de um candidato. Com isso, principalmente nas proximidades das eleições, tenta se apresentar como mais “centrista”, consegue ainda estar fora de um nicho e ser um candidato viável. Inclusive, se quiser ganhar a próxima eleição, Lula precisará se afastar tanto das teses históricas do PT, incompatíveis com nossa economia uberizada, como das bandeiras identitárias do PSOL — para desespero da militância empedernida.

O conceito de “lugar de fala”, por exemplo, tão querido pela militância de esquerda, na verdade se tornou uma espécie de censura a quem pensa diferente. Hoje, tira votos. Sem menosprezar a enorme dificuldade nas trajetórias de mulheres, LGBTs ou negros (e negras), há uma certa exaustão com o risco de ser chamado de “machista”, de “fascista”, de “racista”, de “homofóbico” ou de “misógino” por qualquer frase mal colocada. A resposta da população tem sido votar em quem não o agride pelos descuidos que ferem as sensibilidades identitárias — isso inclui os votos dos negros, das mulheres e mesmo dos LGBTs. Nem sempre as pessoas querem conflito, é preciso entender.

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Assim como Guilherme Boulos, que teve de ser adaptado de político de nicho para representante de centro, Kamala Harris passou por processo semelhante nos EUA. Ela precisou mudar sua “persona” ao se tornar mais rigorosa com a imigração e se afastar das teses identitárias. Não deu certo. No final das contas, o americano considerou que Trump, com todas as suas bizarrices, apresentava um discurso mais condizente com o autointeresse do eleitor (as pessoas sempre, em qualquer tempo, local ou condição, são movidas por interesses egoístas). Temas como fechamento de fronteiras, políticas rigorosas contra imigrantes e mesmo restrições ao mercado livre calaram fundo no americano médio preocupado com as intempéries globais. E, mais importante, Trump apresentou-se como ele próprio, e não como uma armação moderada de estrategistas e marqueteiros para vencer as eleições.

Hoje em dia ser conservador, de direita, não é mais vergonha para um eleitor, seja nos EUA, seja no Brasil. É até mesmo razão de orgulho (há o caso de uma deputada brasileira que foi admoestada numa praia por não ser suficientemente de direita). É com essas novas conjunturas que as forças políticas terão que lidar daqui para a frente. Mas não nos esqueçamos de nossas especificidades. Consolidam-se no Brasil, à diferença dos EUA, três polos distintos: esquerda, centro e direita. Para vencer uma eleição majoritária é preciso conquistar, de maneira grosseira, dois desses campos.

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Nesse sentido, erram tanto Boulos, que quer se isolar na esquerda, conforme declarou em entrevista recente, quanto Jair Bolsonaro, que acha que pode vencer apenas com uma direita pura. O Brasil não é os EUA. É preciso saber que existe um eleitor de centro que foge tanto das pautas identitárias da esquerda como das pautas isolacionistas e mesmo preconceituosas da direita. Aqui, ao contrário do nosso vizinho do norte, quem não compõe não leva. Lula está consciente disso. Seu adversário viável mais evidente, Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, também. Sabem que, no fundo, quem articular melhor as peças do tabuleiro político vence.

Mesmo não exatamente inesperada, a vitória de Donald Trump nas eleições americanas deixou muita gente ao redor do mundo em estado de choque, paralisada, apreensiva. Como um empresário tão extravagante, boquirroto, inconsequente, talvez com tendências golpistas e autocratas, se sagra vitorioso mais uma vez, com relativa tranquilidade, no pleito democrático da maior economia do mundo? O eleitorado dos EUA entrou num transe que irá afetar o planeta inteiro, com resultados imprevisíveis? E que consequência isso trará para o Brasil?

Em primeiro lugar, vamos tentar responder à última pergunta. Nos EUA há dezenas de partidos, mas a tradição é votar nos democratas ou nos republicanos. E, nos últimos anos, a agremiação de Trump foi se aproximando de um reacionarismo radical, enquanto o partido de Kamala Harris abraçou os identitarismos de ocasião. Não há algo como um centro (OK, um Centrão) para acomodar os votos de quem não está satisfeito com um lado ou com outro. Nesse sentido, a comparação direta com o Brasil será sempre imperfeita.

Donald Trump aponta para a multidão durante festa da vitória, na Flórida, nesta quarta-feira, 6  Foto: Julia Demaree Nikhinson/Associated Press

Mas ficou mais do que claro que o chamado identitarismo acabou por se tornar uma bomba de efeito retardado sobre as linhas políticas pós-marxistas, mesmo da esquerda light, que quiseram trocar a revolução pelas causas das minorias. Ao estilhaçar a “guerra de classes” em uma série de microdisputas como negros contra brancos, homens contra mulheres, héteros contra gays, na prática perderam a possiblidade de vencer competições majoritárias, limitando-se a candidatos de nicho. Sem falar que a direita, em reação, acabou por se apropriar de identidades muito mais poderosas eleitoralmente, como família, religião ou pátria (perde muito, em ambos os casos, o liberalismo clássico que aposta no universalismo contra qualquer identidade pessoal, local ou tribal).

Um homem negro hétero, por exemplo, seria opressor por ser “macho” e oprimido pela cor da pele (?), entre outras confusões geradas pelo movimento que acabou por colocar todos contra todos. No Brasil, o presidente Lula, por esperteza política, nunca aderiu a essas tendências que se tornaram devastadoras para o potencial de votos de um candidato. Com isso, principalmente nas proximidades das eleições, tenta se apresentar como mais “centrista”, consegue ainda estar fora de um nicho e ser um candidato viável. Inclusive, se quiser ganhar a próxima eleição, Lula precisará se afastar tanto das teses históricas do PT, incompatíveis com nossa economia uberizada, como das bandeiras identitárias do PSOL — para desespero da militância empedernida.

O conceito de “lugar de fala”, por exemplo, tão querido pela militância de esquerda, na verdade se tornou uma espécie de censura a quem pensa diferente. Hoje, tira votos. Sem menosprezar a enorme dificuldade nas trajetórias de mulheres, LGBTs ou negros (e negras), há uma certa exaustão com o risco de ser chamado de “machista”, de “fascista”, de “racista”, de “homofóbico” ou de “misógino” por qualquer frase mal colocada. A resposta da população tem sido votar em quem não o agride pelos descuidos que ferem as sensibilidades identitárias — isso inclui os votos dos negros, das mulheres e mesmo dos LGBTs. Nem sempre as pessoas querem conflito, é preciso entender.

Assim como Guilherme Boulos, que teve de ser adaptado de político de nicho para representante de centro, Kamala Harris passou por processo semelhante nos EUA. Ela precisou mudar sua “persona” ao se tornar mais rigorosa com a imigração e se afastar das teses identitárias. Não deu certo. No final das contas, o americano considerou que Trump, com todas as suas bizarrices, apresentava um discurso mais condizente com o autointeresse do eleitor (as pessoas sempre, em qualquer tempo, local ou condição, são movidas por interesses egoístas). Temas como fechamento de fronteiras, políticas rigorosas contra imigrantes e mesmo restrições ao mercado livre calaram fundo no americano médio preocupado com as intempéries globais. E, mais importante, Trump apresentou-se como ele próprio, e não como uma armação moderada de estrategistas e marqueteiros para vencer as eleições.

Hoje em dia ser conservador, de direita, não é mais vergonha para um eleitor, seja nos EUA, seja no Brasil. É até mesmo razão de orgulho (há o caso de uma deputada brasileira que foi admoestada numa praia por não ser suficientemente de direita). É com essas novas conjunturas que as forças políticas terão que lidar daqui para a frente. Mas não nos esqueçamos de nossas especificidades. Consolidam-se no Brasil, à diferença dos EUA, três polos distintos: esquerda, centro e direita. Para vencer uma eleição majoritária é preciso conquistar, de maneira grosseira, dois desses campos.

Nesse sentido, erram tanto Boulos, que quer se isolar na esquerda, conforme declarou em entrevista recente, quanto Jair Bolsonaro, que acha que pode vencer apenas com uma direita pura. O Brasil não é os EUA. É preciso saber que existe um eleitor de centro que foge tanto das pautas identitárias da esquerda como das pautas isolacionistas e mesmo preconceituosas da direita. Aqui, ao contrário do nosso vizinho do norte, quem não compõe não leva. Lula está consciente disso. Seu adversário viável mais evidente, Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, também. Sabem que, no fundo, quem articular melhor as peças do tabuleiro político vence.

Mesmo não exatamente inesperada, a vitória de Donald Trump nas eleições americanas deixou muita gente ao redor do mundo em estado de choque, paralisada, apreensiva. Como um empresário tão extravagante, boquirroto, inconsequente, talvez com tendências golpistas e autocratas, se sagra vitorioso mais uma vez, com relativa tranquilidade, no pleito democrático da maior economia do mundo? O eleitorado dos EUA entrou num transe que irá afetar o planeta inteiro, com resultados imprevisíveis? E que consequência isso trará para o Brasil?

Em primeiro lugar, vamos tentar responder à última pergunta. Nos EUA há dezenas de partidos, mas a tradição é votar nos democratas ou nos republicanos. E, nos últimos anos, a agremiação de Trump foi se aproximando de um reacionarismo radical, enquanto o partido de Kamala Harris abraçou os identitarismos de ocasião. Não há algo como um centro (OK, um Centrão) para acomodar os votos de quem não está satisfeito com um lado ou com outro. Nesse sentido, a comparação direta com o Brasil será sempre imperfeita.

Donald Trump aponta para a multidão durante festa da vitória, na Flórida, nesta quarta-feira, 6  Foto: Julia Demaree Nikhinson/Associated Press

Mas ficou mais do que claro que o chamado identitarismo acabou por se tornar uma bomba de efeito retardado sobre as linhas políticas pós-marxistas, mesmo da esquerda light, que quiseram trocar a revolução pelas causas das minorias. Ao estilhaçar a “guerra de classes” em uma série de microdisputas como negros contra brancos, homens contra mulheres, héteros contra gays, na prática perderam a possiblidade de vencer competições majoritárias, limitando-se a candidatos de nicho. Sem falar que a direita, em reação, acabou por se apropriar de identidades muito mais poderosas eleitoralmente, como família, religião ou pátria (perde muito, em ambos os casos, o liberalismo clássico que aposta no universalismo contra qualquer identidade pessoal, local ou tribal).

Um homem negro hétero, por exemplo, seria opressor por ser “macho” e oprimido pela cor da pele (?), entre outras confusões geradas pelo movimento que acabou por colocar todos contra todos. No Brasil, o presidente Lula, por esperteza política, nunca aderiu a essas tendências que se tornaram devastadoras para o potencial de votos de um candidato. Com isso, principalmente nas proximidades das eleições, tenta se apresentar como mais “centrista”, consegue ainda estar fora de um nicho e ser um candidato viável. Inclusive, se quiser ganhar a próxima eleição, Lula precisará se afastar tanto das teses históricas do PT, incompatíveis com nossa economia uberizada, como das bandeiras identitárias do PSOL — para desespero da militância empedernida.

O conceito de “lugar de fala”, por exemplo, tão querido pela militância de esquerda, na verdade se tornou uma espécie de censura a quem pensa diferente. Hoje, tira votos. Sem menosprezar a enorme dificuldade nas trajetórias de mulheres, LGBTs ou negros (e negras), há uma certa exaustão com o risco de ser chamado de “machista”, de “fascista”, de “racista”, de “homofóbico” ou de “misógino” por qualquer frase mal colocada. A resposta da população tem sido votar em quem não o agride pelos descuidos que ferem as sensibilidades identitárias — isso inclui os votos dos negros, das mulheres e mesmo dos LGBTs. Nem sempre as pessoas querem conflito, é preciso entender.

Assim como Guilherme Boulos, que teve de ser adaptado de político de nicho para representante de centro, Kamala Harris passou por processo semelhante nos EUA. Ela precisou mudar sua “persona” ao se tornar mais rigorosa com a imigração e se afastar das teses identitárias. Não deu certo. No final das contas, o americano considerou que Trump, com todas as suas bizarrices, apresentava um discurso mais condizente com o autointeresse do eleitor (as pessoas sempre, em qualquer tempo, local ou condição, são movidas por interesses egoístas). Temas como fechamento de fronteiras, políticas rigorosas contra imigrantes e mesmo restrições ao mercado livre calaram fundo no americano médio preocupado com as intempéries globais. E, mais importante, Trump apresentou-se como ele próprio, e não como uma armação moderada de estrategistas e marqueteiros para vencer as eleições.

Hoje em dia ser conservador, de direita, não é mais vergonha para um eleitor, seja nos EUA, seja no Brasil. É até mesmo razão de orgulho (há o caso de uma deputada brasileira que foi admoestada numa praia por não ser suficientemente de direita). É com essas novas conjunturas que as forças políticas terão que lidar daqui para a frente. Mas não nos esqueçamos de nossas especificidades. Consolidam-se no Brasil, à diferença dos EUA, três polos distintos: esquerda, centro e direita. Para vencer uma eleição majoritária é preciso conquistar, de maneira grosseira, dois desses campos.

Nesse sentido, erram tanto Boulos, que quer se isolar na esquerda, conforme declarou em entrevista recente, quanto Jair Bolsonaro, que acha que pode vencer apenas com uma direita pura. O Brasil não é os EUA. É preciso saber que existe um eleitor de centro que foge tanto das pautas identitárias da esquerda como das pautas isolacionistas e mesmo preconceituosas da direita. Aqui, ao contrário do nosso vizinho do norte, quem não compõe não leva. Lula está consciente disso. Seu adversário viável mais evidente, Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, também. Sabem que, no fundo, quem articular melhor as peças do tabuleiro político vence.

Opinião por Fabiano Lana

Fabiano Lana é formado em Comunicação Social pela UFMG e em Filosofia pela UnB, onde também tem mestrado na área. Foi repórter do Jornal do Brasil, entre outros veículos. Atua como consultor de comunicação. É autor do livro “Riobaldo agarra sua morte”, em que discute interseções entre jornalismo, política e ética.

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