Após o resultado magro do Partido dos Trabalhadores, do PSOL, e de outras agremiações “progressistas” no primeiro turno das eleições, a discussão do momento é sobre encontrar a fórmula mágica para convencer a população mais pobre, e mesmo a parcela menos favorecida das classes médias, a votar na esquerda. A política identitária, ao dividir a população em uma série de subgrupos de gênero e raça, mesmo entre a pobreza, acabou por fortalecer a “extrema” direita. Mas o problema talvez seja ainda mais profundo. Uma série de valores e pontos dogmáticos da esquerda precisarão ser deixados de lado para que mentes e corações do eleitorado sejam dominados.
Em primeiro lugar, o conceito de luta de classes, tratado quase como se fosse um integrante da santíssima trindade para um militante esquerdista, não tem aderência entre os atuais emergentes brasileiros. Não se busca mais ser contra o rico, antes explorador e beneficiário da mais valia. O que se quer é entrar no clube dos mais prósperos também. O susto que Pablo Marçal deu no primeiro turno de São Paulo é uma evidência da força desse tipo de ponto de vista, também chamado de teologia da prosperidade. Por mais que a esquerda torça o nariz, um motorista de Uber se considera um empreendedor e, às vezes, tem orgulho de trabalhar 15 horas por dia num trânsito infernal. Façam a prova dos nove e perguntem aos próprios.
Na verdade, para a sobrevivência da esquerda, a nostalgia de se implantar algum tipo de socialismo no Brasil, que sobrevive aqui e ali entre veteranos, acadêmicos e mesmo estudantes, artistas consagrados pela crítica e hoje com baixa vendagem, precisa ser deixada de lado em nome de um capitalismo popular inclusivo. Nos moldes do defendido pelos atuais vencedores do prêmio Nobel de economia, Daron Acemoglu e James Robinson, na bem argumentada obra “Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza”.
Outro dogma que precisará ser deixado de lado é ver o criminoso como uma vítima da sociedade. Quem sofre com a violência é fundamentalmente o mais pobre. Quem tem sua moto e celular roubado em um sinal de trânsito de Fortaleza, por exemplo, não suporta mais o discurso de que o infrator não deve ser rigorosamente punido. Se não rever esse valor serão mais derrotas em série na esquerda. Quem tem ódio à polícia, mesmo com seus abusos, é intelectual, não a população que vê os agentes da segurança atuando na rua como da mesma classe. Fala-se até muito da volta do discurso universal do combate à desigualdade para se alcançar uma sociedade de paz. Mas o eleitor não quer igualdade no andar de baixo, quer também prosperidade. Quer comprar.
Aliás, também contra nossa esquerda, o brasileiro é conservador nos costumes. Massivamente se posiciona de maneira contrária à liberação das drogas e do aborto – e nisso resiste até à tendência mundial da prevalência das liberdades individuais. Também valoriza a família e religião, o que se vê com a força crescente das igrejas evangélicas. Essa posição da população, no vácuo deixado por esquerdistas e mesmo centristas, acaba por se tornar terreno fértil para os políticos populistas de ultradireita.
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Hoje, a maior fonte de votos do Partido dos Trabalhadores no âmbito federal está na região Nordeste, principalmente no interior (Lula, é preciso sempre lembrar, só venceu Bolsonaro em 2022 nas faixas de renda de até dois salários mínimos). Mas é ilusão considerar que o voto do nordestino se deve em acreditar nos valores do PT. Trata-se mais de uma decisão pragmática de quem foi fortemente beneficiado pelo boom econômico dos últimos anos do governo Lula.
Tomemos um contraexemplo. Em Roraima, onde os mais pobres se consideram prejudicados pelas políticas petistas de proteção às populações originárias, que resultaram em cerca de 45% do estado ter se tornado reservas indígenas, votam massivamente na direita. Para se ter uma ideia, o candidato Mauro Nakashima, do PV-PT, não utilizou as gravações de Lula a seu favor em seu horário eleitoral para a prefeitura de Boa Vista. Só teve 1% dos votos, mas achava que se vinculasse seu nome ao do presidente se sairia ainda menor. Em resumo: mesmo entre os mais carentes, quem não se considera beneficiário das políticas econômicas petistas (e não de seus valores), votam contra o partido.
Também temos a atávica má vontade da esquerda com as classes intermediárias. “Eu odeio a classe média”, já vociferou a filósofa Marilena Chauí, numa reminiscência de uma repugnância a um grupo social que, na visão de quem sonha com regimes socialistas aos moldes da cortina de ferro, preferiu se aliar à burguesia reacionária do que aos proletários revolucionários. Mas a esquerda precisa entender que o progressivo enriquecimento de uma nação fará os mais pobres irem em direção à classe média – é preciso conquistá-los. Existe até certo ressentimento no seguinte sentido: de que Lula trouxe prosperidade a pessoas que agora o abandonam. Mas se mantiverem a má vontade e mesmo alguma hostilidade com a classe C, como conseguir seus votos?
Por fim temos o caso de Lula. Afinal o maior líder da esquerda latino-americana foi eleito presidente da República três vezes além de eleger a sucessora. O sucesso de Lula, entretanto, se deve mais à inclusão de um contingente de milhões ao mercado de consumo do que a políticas esquerdistas (se seu êxito foi decorrência de políticas internas ou do boom de commodities que beneficiou os países produtores de matéria-prima, essa é outra discussão). A própria concepção do Bolsa Família, que dá as pessoas o direito de gastar os recursos recebidos do Estado como queiram, foi fortemente criticado pelo então aspirante à presidente, antes de 2002. Por sorte, Lula, metamorfose ambulante, mudou de ideia e reforçou um programa antes tido como liberal. De alguma maneira, Lula sobrevive porque sabe nos momentos chaves se distanciar de suas convicções esquerdistas que afastam os eleitores médios.