Vamos imaginar um experimento científico de pensamento. Entrar na mente de um bolsonarista fervoroso. Imaginariamente, por meio de um duto ligado a um microscópio eletrônico de alta tecnologia, espionar suas conexões cerebrais peculiares para tentar entender sua visão dos últimos acontecimentos no Brasil. Sem julgar a adequação do que ele pensa com o que chamamos de fatos, já é possível adiantar que é possível perceber indignação, ódio, revolta contida e, sobretudo, inocência.
Por anos, a cobaia desse experimento proposto, vamos chamá-lo de Joaquim, recebeu enxurradas de notícias sobre a corrupção da classe política brasileira. A Operação Lava Jato foi o auge desse processo com bilhões de reais sendo desviados dos cofres públicos. Políticos de quase todos os matizes ideológicos sofrendo acusações diárias de puro e simples roubo do erário.
Nesse cenário de terra arrasada, a esperança de Joaquim acabou por surgir num ex-capitão de maus modos, porém “incorruptível”. Um cristão nostálgico dos tempos da ditadura, um tempo de mais ordem e menos tumulto na visão de nosso conhecido. Alguém que estava há quase três décadas no Parlamento, mas nunca se contaminou com os colegas, era repelido por eles.
Um interlocutor poderia alegar a Joaquim que o tal ex-capitão sempre mudava de partidos e mal conseguia aprovar projetos. Ouvia de volta que era boicotado por sua autenticidade. Citava até uma frase do ex-ministro do STF, o xará Joaquim Barbosa, defendendo o sujeito (era uma fake news que Joaquin acreditava, mas a ideia prosperou).
Num cenário de caos econômico gestado pelo PT, as gigantescas engrenagens da corrupção finalmente estavam sendo minadas pela Lava Jato. Milhares nas ruas pediram a queda de um governo corrupto. A saída de Dilma, entretanto, deu lugar a outra gestão venal e fisiológica. A elite política se desfazia como um castelo de areia na subida da maré. O líder da oposição caía numa história envolvendo dinheiro vivo reprisada todos os dias na TV. O presidente Temer dava aval para o empresário Joesley comprar o silêncio de Eduardo Cunha, o também corrupto ex-presidente da Câmara, preso. O ex-presidente Lula era encarcerado, condenado por receber um apartamento como propina.
Estava cada vez mais escancarado que PT, PSDB e demais partidos eram a mesma coisa. “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão”, cantava o general da reserva que apoiava Bolsonaro, e Joaquim concordava animado. O sistema que governou o Brasil por décadas finalmente podia cair. Joaquim antes votava no PSDB, mas com a mão tapando nariz para aqueles intelectuais almofadinhas. Bolsonaro é eleito e o PT perde para a alegria de nosso personagem fictício, porém exemplificativo.
O guru Olavo de Carvalho não deixava de alertar em seus cursos no YouTube frequentados por Joaquim que quase nada havia sido conquistado com a vitória do ex-capitão, que muito precisava ser feito. Que a mídia, as universidades, a classe artística, parte da classe média, os usuários de drogas seriam foco da resistência ao novo estado de coisas.
O Supremo Tribunal Federal, também um bastião de resistência daquele Brasil que surgia, precisava ser controlado. “Se quiser fechar o STF, sabe o que você faz? Não manda nem um jipe. Manda um soldado e um cabo”, ensinava o filho do presidente, deputado eleito com um caminhão de votos.
Jair Bolsonaro tentou governar seguindo seu programa: revigorar a família, Deus, a pátria, os valores reais dos brasileiros que sempre foram desprezados pela falsa disjunção tucano-petista. Mas é constantemente boicotado pelo sistema. Contra o “mito” estavam a imprensa, os artistas, os parasitas do sistema.
Vem a pandemia de covid-19 e um presidente preocupado com os pobres sem ter como se sustentar por estarem encarcerados em casa é também sabotado pelos governadores, atacado diariamente pela Rede Globo, e cerceado pelo Supremo.
Sua solução brilhante para acabar com a doença, a cloroquina, é ridicularizada. Suas sinceras preocupações contra os perigosos efeitos colaterais da vacina são criminalizadas. Não usar máscara se torna um ato de resistência. O mito é xingado de genocida.
Surgem as denúncias “falsas” contra Bolsonaro e sua família. Rachadinhas, compras de apartamentos suspeitos, desvio de recursos públicos, envolvimento com milícia. Tudo mentira na cabeça de Joaquim. Tão perseguido, só restava ao presidente fazer uma aliança como o Centrão para sobreviver.
Mas o pior ainda estava para acontecer: as urnas eletrônicas poderiam ser fraudadas para tirar reeleição do presidente. O sistema movia para se defender da purificação.
Ainda tem mais. O mesmo Supremo “descondena” Lula, que está livre para concorrer à Presidência. O ministro Alexandre de Moraes, o Xandão, abre um inquérito para perseguir todos que estão do lado de Bolsonaro pela “liberdade”. Ações ilegais de hackers tentam desmoralizar a Lava Jato divulgando conversas nunca periciadas. Sérgio Moro, tal qual um judas, trai o presidente, porém, como filho pródigo, volta ao seio dos patriotas na véspera do pleito eleitoral, no segundo turno, agora como senador eleito.
No resultado da eleição presidencial, vitória de Lula por uma margem mínima. “Eleição fraudada”, segundo Joaquim. Patriotas vão para as portas dos quartéis pedindo uma intervenção militar que não vem. O mito teria sido traído pela cúpula do Exército que nada fez? Joaquim assim pensa.
Dia 8 de janeiro, em pânico com a falta de perspectivas de justiça, os patriotas que acampavam na frente do quartel em Brasília descem até a Esplanada e sofrem o golpe final. Ardilosamente infiltrados, esquerdistas fingem aderir ao movimento e começam a quebrar tudo. Depredam o Congresso, o Palácio do Planalto, o STF. Surpreendidos pelo maquiavelismo dos simpatizantes petistas, dezenas de bolsonaristas são presos injustamente no presídio da Papuda.
Mas o sistema não se cansa de sua fúria pela vingativa. Cassam os direitos políticos de Bolsonaro de maneira infame, pelas verdades que falou das urnas. O STF decide também que a Lava Jato tinha sido uma farsa depois de anos a apoiando. E, após uma prisão desumana, os pacíficos manifestantes do dia 8/1 (fora um abuso escatológico ou outro) começam a ser condenados. Sofrem julgamentos indiferenciados, recebem penas injustas, muito mais altas do que quem comete roubos, assassinatos e esquartejamentos. E, como desenlace final, Bolsonaro preso por um crime comum, que podem bem ser joias roubadas, em mais uma acusação forjada contra o mito – o ajudante de ordens obrigado a confessar.
O que temos acima é um resumo bastante apressado de como os “bolsomínions” assistiram aos episódios recentes no Brasil. Teoria da conspiração, delírio, alucinação? Talvez tudo isso. A questão é que essa tem sido uma história compartilhada por milhões de brasileiros. O sentimento de pertencimento de tantos Joaquins é estar unidos nessa fábula que, para a outra parcela da população é apenas um desvario absurdo (essa outra parcela também tem seus desvarios, mas não cabe se aprofundar nisso agora).
Durante a história da humanidade, grupos que resolveram enfrentar poderes institucionalizados e não venceram, em qualquer lugar do mundo, foram exemplarmente punidos. E os que não foram, muitas vezes, se reorganizaram e tentaram tomar o poder novamente à força, algumas vezes bem-sucedidos, outras não – daí talvez o Estado-Leviatã castigar com tanto rigor tais iniciativas insurgentes. O livro do jornalista do Estadão Leonencio Nossa Guerras da Independência do Brasil mostra que as penas para os revolucionários costumavam ser enforcamento, fuzilamento, degredo ou uma prisão fétida com ratos e baratas.
Pode ser que a história dê reviravoltas e os vilões sejam heróis. Mas a punição fortíssima em geral é apenas o que costuma acontecer desde sempre, desde o início das civilizações, quando se enfrenta um poder constituído com a intenção, mesmo que absolutamente ilusória, de derrubá-lo. Em toda sua formidável alienação exemplificada aqui pelo fictício Joaquim, os vândalos de 8/1 sentem o peso da história.