O Supremo Tribunal Federal (STF) intensificou a pressão sobre o Congresso Nacional com uma série de movimentos que têm atropelado deputados federais e senadores desde o início deste ano. A mais recente investida da Corte se dá no debate sobre a regulação das plataformas digitais e a disseminação de fake news. Enquanto oposição e base do governo Luiz Inácio Lula da Silva duelam na Câmara sem avançar na votação Projeto de Lei 2.630, a presidente do Tribunal, ministra Rosa Weber, marcou para a próxima semana a análise de trechos do Marco Civil da Internet – o que, na prática, encurrala o Parlamento a acelerar a tramitação do texto.
Em jogo estão medidas para endurecer as regras de funcionamento das big techs no Brasil, como Facebook, Instagram, Twitter, TikTok, WhatsApp, Telegram e Google. Em outras frentes, os ministros ainda agem em temas como a Lei das Estatais, as chamadas sobras partidárias, que definem a distribuição de cadeiras de deputados federais, estaduais e vereadores, e a correção do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), além de reabrir a discussão da constitucionalidade da contribuição sindical aprovada em assembleia de trabalhadores.
Encerrado o processo eleitoral, quando o chamado “ativismo judicial” foi um dos motes de críticas de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), uma série de decisões e julgamentos mantém aceso o debate a respeito das atribuições dos Poderes da República. A ideia na Corte é forçar que o Congresso se posicione sobre assuntos polêmicos e evite a chamada judicialização da política.
O governo de leis ou de homens?
“O balanço geral dos últimos anos não é negativo, mas neste ano está havendo um exagero de alguns ministros que colocam em risco a legitimidade social da Corte”, diz Luciano Timm, advogado e professor de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV). “A Corte devia pensar em autocontenção, inclusive passou um novo regimento para isso. Ele precisa ser aplicado”, afirma. Um dos pontos dessa reforma é o prazo para o limite de vista. Agora, se um ministro ficar mais de 90 dias com um processo parado em seu gabinete, ele volta para o plenário para julgamento, independentemente de a vista ter ou não sido concluída.
“O que é mais recente é uma tomada de decisão não da Corte, mas dos ministros em decisões monocráticas, com grande implicação política e moral em que não há consenso ainda entre a sociedade”, diz Timm. O professor afirma que, quando um ministro decide sobre temas sem definições claras em sentenças anteriores no sistema jurídico, na Constituição ou nas leis, ele faz escolhas políticas, econômicas e morais que não são legitimadas de forma política e democrática pelo Congresso.
No entanto, segundo o pesquisador, eventuais “sobreposições” do Judiciário não eliminam o papel da Corte máxima no chamado sistema de pesos e contrapesos do sistema político brasileiro. Timm cita o exemplo do orçamento secreto, mecanismo de troca de apoio parlamentar com base em emendas liberadas pelo Executivo, relevado pelo Estadão. O esquema foi alvo de decisão do STF, que apontou a inconstitucionalidade do modelo de barganha que mobilizou bilhões de reais no governo Bolsonaro.
O jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que foi diretor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, avalia que “o ativismo de tribunais é descabido, especialmente quando a matéria está em discussão no Congresso Nacional”. As posturas do Supremo, na sua perspectiva, fazem com que o Congresso questione a si mesmo. Defensor do livre debate, o professor arremata: “É o Congresso Nacional que é o ‘juiz’, ironicamente falando, para apreciar se determinadas normas devem ser mantidas, ou devem ser modificadas. “O governo é um governo de lei, e não de homens.”
Manoel Gonçalves Ferreira Filho, jurista
Floriano de Azevedo Marques Neto, professor de Direito Público da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela mesma instituição, traz um contraponto: “A judicialização da política não é feita a partir do do Judiciário, mas pela incapacidade do sistema político de resolver seus conflitos”.
Veja decisões importantes do Supremo deste ano
1. Fake News
Dias depois de a Câmara dos Deputados adiar a votação do PL das Fake News, o ministro do STF Dias Toffoli liberou para julgamento a ação que questiona a constitucionalidade de trechos do Marco Civil da Internet, em especial o artigo 19, que discorre sobre a necessidade de prévia ordem judicial para a exclusão de conteúdo pelo provedor de internet e redes sociais após danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. Pouco depois, a presidente do STF, Rosa Weber, marcou a retomada para o dia 17, na semana que vem, o que foi entendido como uma resposta do Judiciário ao atraso na votação.
Enquanto isso, as big tech têm buscado meios de se posicionar contra o tema. Uma dessas ações mais recentes foi a do Telegram, que disparou para todos os seus usuários no Brasil uma mensagem que distorce pontos do PL. Diante do caso, o ministro do STF Alexandre de Moraes determinou que o aplicativo excluísse mensagem com “flagrante e ilícita desinformação” sobre o PL das Fake News e publicasse uma retratação.
2. Lei das Estatais
O debate em torno da Lei das Estatais ressurgiu em 2023 após as nomeações pelo presidente Lula de Aloizio Mercadante para a presidência do BNDES e do senador Jean Paul Prates para a presidência da Petrobras. A polêmica na época envolvia o fato de que a lei, no seu artigo 17, vetava nomeações de diretores e conselheiros que tivessem participado de campanhas políticas ou ocupado direção de partidos nos últimos 36 meses.
Foi então que, a partir desse cenário, o governo passou a articular uma base de sustentação no Congresso, principalmente no Senado, para o primeiro movimento político do governo, focado em mudança significativa na Lei das Estatais. Em dezembro do ano passado, os deputados federais chegaram a aprovar um projeto de lei para afrouxar a legislação sobre o tema, mas a proposta enfrentava resistência dos senadores.
Inicialmente, o texto que passou no plenário da Câmara tratava inicialmente apenas de alterações nas regras sobre gastos das empresas públicas com publicidade, mas foi modificado de última hora para incluir uma redução de três anos para 30 dias no tempo de quarentena para indicados ao comando de estatais que tenham participado de campanhas eleitorais.
Enquanto isso, o STF iniciou o julgamento de uma ação movida pelo PCdoB contra as restrições à indicação de políticos para cargos de comando em empresas públicas previstas na Lei das Estatais. Na época, o relator do caso, o ministro Ricardo Lewandowski, votou por flexibilizar a legislação no que diz respeito à nomeação de políticos para cargos de direção nas estatais. A discussão, entretanto, foi paralisada após pedido de vista do ministro André Mendonça.
Em março deste ano, Lewandowski suspendeu os trechos em questão da Lei das Estatais, em resposta a um pedido de liminar do PCdoB. A decisão vale até o julgamento ser concluído no STF. No Senado, a discussão sobre o tema segue parada.
3. Sobras partidárias
Em fevereiro, o procurador-geral da República, Augusto Aras, apresentou ao STF parecer favorável às ações que podem alterar a composição da Câmara dos Deputados. Sob o argumento de defesa da representação das “minorias” partidárias, ele pediu a derrubada de uma regra que limita a distribuição das chamadas “sobras” – vagas restantes nas eleições proporcionais após a definição dos nomes e partidos mais votados. O parecer foi parcialmente favorável às ações. Se julgadas inteiramente procedentes, elas podem levar à perda de mandato de sete deputados federais eleitos por este critério.
A Rede Sustentabilidade questiona a constitucionalidade de mudança aprovada no Código Eleitoral pelo Congresso em 2021, tornando mais rígida a distribuição das chamadas “sobras”, vagas restantes nas eleições proporcionais após a definição dos nomes e partidos mais votados. Já PSB e Podemos pedem a anulação de parte de uma resolução do TSE que acrescenta critérios a essa mesma lei para repartição dessas cadeiras.
4. FGTS
O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) é corrigido pela Taxa Referencial (TR) desde o início dos anos 1990. O Supremo voltou a julgar, no último dia 20 de abril, uma ação proposta pelo Solidariedade em 2014, que pede que o FGTS passe a ser atualizado de acordo com a poupança – o que implica um eventual impacto de R$ 661 bilhões aos cofres públicos.
Barroso e Mendonça votaram para que o FGTS seja remunerado pelo menos no mesmo índice da poupança. Pela quinta vez o julgamento foi interrompido: no dia 27 de abril o ministro Nunes Marques fez um pedido de vista. Ele poderá ficar até 90 dias com o processo parado em seu gabinete.
5. Contribuição sindical
Está ainda nas mãos do Supremo o poder de liberar uma contribuição sindical obrigatória para trabalhadores não sindicalizados, desde que a taxa seja aprovada em assembleia e permitido o direito de oposição. O fim do imposto sindical foi uma das bandeiras da reforma trabalhista de Michel Temer (MDB), em 2017, e também foi avalizada pelo Supremo, que declarou a constitucionalidade do fim da cobrança no fim de 2018.
No julgamento de uma ação sobre o tema em abril deste ano, Gilmar Mendes mudou seu entendimento e votou a favor do restabelecimento da taxa. Alexandre de Moraes pediu vista dos autos e interrompeu a sessão.
Caso prevaleça o entendimento de Gilmar, que já tem o apoio de quatro ministros da Corte – ou seja, falta um voto para formar maioria –, os sindicatos ganham uma fonte de recursos, que secou depois da reforma. O tema é discutido internamente no governo e a volta de uma contribuição obrigatória enfrenta resistências no Congresso.