A política sem segredos

Opinião|A mensagem do Comando do Exército que os generais investigados pela PF preferiram esquecer


Texto produzido pelo Centro de Comunicação da Força em 1988 expôs Jair Bolsonaro e o classificou como indigno de usar a farda de militar

Por Francisco Leali
Atualização:

General quatro estrelas tirado da cama cedo pela Polícia Federal é tudo o que o Exército não precisava. A Força, que teve parte de sua cúpula ocupando os principais postos da gestão de Jair Bolsonaro, acordou na semana passada sendo obrigada a sentir o gosto amargo de ter aderido ao capitão que um dia fora considerado indigno de vestir a farda.

A memória fez apagar o que, em 2021, o repórter Rubens Valente resgatou por meio da Lei de Acesso à Informação no acervo do Exército. Deve-se ao jornalista a publicidade do “Noticiário do Exército” divulgado em 25 de fevereiro de 1988 e que trazia o título “A verdade: um símbolo da honra militar”.

Bolsonaro em imagem de 1988, quando foi condenado pelo Exército e depois absolvido pelo STM Foto: LUIZ PINTO/AGÊNCIA O GLOBO - 4/8/1988
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O que está estampado na capa da publicação editada pelo Centro de Comunicação do então Ministério do Exército é lição de como a cartilha castrense preza a verdade e a hierarquia. Dito de outra forma, mentira e insubordinação são inadmissíveis na caserna. Se um subordinado mente, não pode estar ao lado dos seus. Numa guerra, como confiar a própria vida ao colega que não honra a palavra que dá? O ensinamento é levado às academias militares.

O episódio da década de 1980, para quem não se lembra, envolve o capitão Bolsonaro e um colega. Os dois deram entrevista à revista Veja e noticiou-se a ideia de um plano de explosão de uma bomba para causar tumulto. Bolsonaro era aquele que ousara reclamar publicamente dos baixos soldos ainda como militar. No mundo sem internet e redes sociais, falar à imprensa sem autorização do superior era conduta vedada nas Forças Armadas.

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Foi aberto um processo disciplinar e Bolsonaro condenado. Chamado a se explicar, mentiu para o comandante. E isso ficou registrado no texto do Noticiário do Exército para que toda a tropa soubesse que o comando estava naquele momento expulsando da Força o mentiroso. O mesmo que anos mais tarde subiria palanque usando texto bíblico falando da verdade que liberta.

O texto começa assim: “O cadete - futuro oficial do Exército - ao ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras, recebe uma miniatura da espada de Caxias, declarando solenemente: ‘recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar’. Dentro dessa máxima é formado o oficial do Exército brasileiro”. O editoral destaca o culto a valores como honestidade, lealdade e amor à verdade. Na época, uma investigação concluiu que Bolsonaro e seu colega mentiram ao seu comandante. “Conscientemente (Bolsonaro e seu colega) faltaram com a verdade e macularam a dignidade militar”, diz o texto do Centro de Comunicação do Exército.

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Depois disso, o caso subiu ao Supremo Tribunal Militar (STM) e o capitão safou-se apesar de laudos no processo atribuírem autoria a ele de croquis de bombas, como revelou mais tarde o jornalista Luiz Maklouf Carvalho no Estadão e em livro. Inocentado, ganhou de volta o direito de ser chamado de militar ainda que a decisão judicial tenha sido na contramão do que defendera o Ministério do Exército de então.

O salvo-conduto do STM deu a Bolsonaro álibi para voltar a ser recebido nos quarteis. Mas demorou um pouco até que a porta da frente lhe fosse aberta. Por anos, o capitão era só o parlamentar insignificante do baixo clero. Mas ganhou as ruas e as redes, virou um político pop e único com musculatura para derrotar o candidato petista em 2018.

Naquele ano, tinha chegado ao generalato uma geração que ouviu o capitão-deputado gritar por melhores soldos enquanto governo tucano de Fernando Henrique Cardoso arrochava as contas. O mesmo fora ao plenário defender a morte do então presidente, mas por conta da imunidade parlamentar e sua irrelevância política na época não foi punido.

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Com Lula preso e o PT enlameado por denúncias de corrupção, Bolsonaro surfou direto para o Planalto. No final daquele 2018, num café organizado no comando da Força, um general e três coronéis chamaram alguns jornalistas para conversar. Entre biscoitinhos e café adoçado a gosto, queriam medir até onde a imprensa vinculava Bolsonaro, recém-eleito, às Forças Armadas.

Ao ouvir de um dos convidados que os militares no governo Bolsonaro se equiparariam ao PFL dono da cadeira de vice de Fernando Henrique, levando ônus e bônus da gestão tucana, o general se irritou. Questionou como as Forças Armadas podiam ser comparadas com partidos.

O agastamento do general, que seguiria para atuar na Presidência da República na gestão Bolsonaro, traduzia a sensação compartilhada por parte dos militares de que têm uma missão de resguardar o País acima de tudo, e quem, sabe acima de todos. Ali estava o germe da vontade de poder voltar a mandar nos civis, ainda que sob as ordens de um comandante-em-chefe que não tinha passado do posto de capitão.

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As Forças são instituições de Estado e, teoricamente, não deveriam se inclinar na direção de legendas partidárias. A verdade que lecionam aos cadetes seguem sendo o alicerce da formação da tropa. Em 1988, a mensagem já era clara: “O Exército tem, tradicionalmente, utilizado todos os meios legais para extirpar de suas fileiras aqueles que, deliberada e comprovadamente, desmerecem a honra militar. A verdade é um símbolo da honra militar”.

A operação da Polícia Federal da semana passada pode ser, para boa parte dos que viam Bolsonaro como Messias, perseguição política engendrada pelo STF. Mas há quem considere lamentável para a imagem das Forças Armadas o fato de que ex-comandantes e oficiais generais tenham recebido visita da PF por terem, de fato, flertado com um golpe sob inspiração daquele que um dia foi chamado de indigno pelo Exército.

General quatro estrelas tirado da cama cedo pela Polícia Federal é tudo o que o Exército não precisava. A Força, que teve parte de sua cúpula ocupando os principais postos da gestão de Jair Bolsonaro, acordou na semana passada sendo obrigada a sentir o gosto amargo de ter aderido ao capitão que um dia fora considerado indigno de vestir a farda.

A memória fez apagar o que, em 2021, o repórter Rubens Valente resgatou por meio da Lei de Acesso à Informação no acervo do Exército. Deve-se ao jornalista a publicidade do “Noticiário do Exército” divulgado em 25 de fevereiro de 1988 e que trazia o título “A verdade: um símbolo da honra militar”.

Bolsonaro em imagem de 1988, quando foi condenado pelo Exército e depois absolvido pelo STM Foto: LUIZ PINTO/AGÊNCIA O GLOBO - 4/8/1988

O que está estampado na capa da publicação editada pelo Centro de Comunicação do então Ministério do Exército é lição de como a cartilha castrense preza a verdade e a hierarquia. Dito de outra forma, mentira e insubordinação são inadmissíveis na caserna. Se um subordinado mente, não pode estar ao lado dos seus. Numa guerra, como confiar a própria vida ao colega que não honra a palavra que dá? O ensinamento é levado às academias militares.

O episódio da década de 1980, para quem não se lembra, envolve o capitão Bolsonaro e um colega. Os dois deram entrevista à revista Veja e noticiou-se a ideia de um plano de explosão de uma bomba para causar tumulto. Bolsonaro era aquele que ousara reclamar publicamente dos baixos soldos ainda como militar. No mundo sem internet e redes sociais, falar à imprensa sem autorização do superior era conduta vedada nas Forças Armadas.

Foi aberto um processo disciplinar e Bolsonaro condenado. Chamado a se explicar, mentiu para o comandante. E isso ficou registrado no texto do Noticiário do Exército para que toda a tropa soubesse que o comando estava naquele momento expulsando da Força o mentiroso. O mesmo que anos mais tarde subiria palanque usando texto bíblico falando da verdade que liberta.

O texto começa assim: “O cadete - futuro oficial do Exército - ao ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras, recebe uma miniatura da espada de Caxias, declarando solenemente: ‘recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar’. Dentro dessa máxima é formado o oficial do Exército brasileiro”. O editoral destaca o culto a valores como honestidade, lealdade e amor à verdade. Na época, uma investigação concluiu que Bolsonaro e seu colega mentiram ao seu comandante. “Conscientemente (Bolsonaro e seu colega) faltaram com a verdade e macularam a dignidade militar”, diz o texto do Centro de Comunicação do Exército.

Depois disso, o caso subiu ao Supremo Tribunal Militar (STM) e o capitão safou-se apesar de laudos no processo atribuírem autoria a ele de croquis de bombas, como revelou mais tarde o jornalista Luiz Maklouf Carvalho no Estadão e em livro. Inocentado, ganhou de volta o direito de ser chamado de militar ainda que a decisão judicial tenha sido na contramão do que defendera o Ministério do Exército de então.

O salvo-conduto do STM deu a Bolsonaro álibi para voltar a ser recebido nos quarteis. Mas demorou um pouco até que a porta da frente lhe fosse aberta. Por anos, o capitão era só o parlamentar insignificante do baixo clero. Mas ganhou as ruas e as redes, virou um político pop e único com musculatura para derrotar o candidato petista em 2018.

Naquele ano, tinha chegado ao generalato uma geração que ouviu o capitão-deputado gritar por melhores soldos enquanto governo tucano de Fernando Henrique Cardoso arrochava as contas. O mesmo fora ao plenário defender a morte do então presidente, mas por conta da imunidade parlamentar e sua irrelevância política na época não foi punido.

Com Lula preso e o PT enlameado por denúncias de corrupção, Bolsonaro surfou direto para o Planalto. No final daquele 2018, num café organizado no comando da Força, um general e três coronéis chamaram alguns jornalistas para conversar. Entre biscoitinhos e café adoçado a gosto, queriam medir até onde a imprensa vinculava Bolsonaro, recém-eleito, às Forças Armadas.

Ao ouvir de um dos convidados que os militares no governo Bolsonaro se equiparariam ao PFL dono da cadeira de vice de Fernando Henrique, levando ônus e bônus da gestão tucana, o general se irritou. Questionou como as Forças Armadas podiam ser comparadas com partidos.

O agastamento do general, que seguiria para atuar na Presidência da República na gestão Bolsonaro, traduzia a sensação compartilhada por parte dos militares de que têm uma missão de resguardar o País acima de tudo, e quem, sabe acima de todos. Ali estava o germe da vontade de poder voltar a mandar nos civis, ainda que sob as ordens de um comandante-em-chefe que não tinha passado do posto de capitão.

As Forças são instituições de Estado e, teoricamente, não deveriam se inclinar na direção de legendas partidárias. A verdade que lecionam aos cadetes seguem sendo o alicerce da formação da tropa. Em 1988, a mensagem já era clara: “O Exército tem, tradicionalmente, utilizado todos os meios legais para extirpar de suas fileiras aqueles que, deliberada e comprovadamente, desmerecem a honra militar. A verdade é um símbolo da honra militar”.

A operação da Polícia Federal da semana passada pode ser, para boa parte dos que viam Bolsonaro como Messias, perseguição política engendrada pelo STF. Mas há quem considere lamentável para a imagem das Forças Armadas o fato de que ex-comandantes e oficiais generais tenham recebido visita da PF por terem, de fato, flertado com um golpe sob inspiração daquele que um dia foi chamado de indigno pelo Exército.

General quatro estrelas tirado da cama cedo pela Polícia Federal é tudo o que o Exército não precisava. A Força, que teve parte de sua cúpula ocupando os principais postos da gestão de Jair Bolsonaro, acordou na semana passada sendo obrigada a sentir o gosto amargo de ter aderido ao capitão que um dia fora considerado indigno de vestir a farda.

A memória fez apagar o que, em 2021, o repórter Rubens Valente resgatou por meio da Lei de Acesso à Informação no acervo do Exército. Deve-se ao jornalista a publicidade do “Noticiário do Exército” divulgado em 25 de fevereiro de 1988 e que trazia o título “A verdade: um símbolo da honra militar”.

Bolsonaro em imagem de 1988, quando foi condenado pelo Exército e depois absolvido pelo STM Foto: LUIZ PINTO/AGÊNCIA O GLOBO - 4/8/1988

O que está estampado na capa da publicação editada pelo Centro de Comunicação do então Ministério do Exército é lição de como a cartilha castrense preza a verdade e a hierarquia. Dito de outra forma, mentira e insubordinação são inadmissíveis na caserna. Se um subordinado mente, não pode estar ao lado dos seus. Numa guerra, como confiar a própria vida ao colega que não honra a palavra que dá? O ensinamento é levado às academias militares.

O episódio da década de 1980, para quem não se lembra, envolve o capitão Bolsonaro e um colega. Os dois deram entrevista à revista Veja e noticiou-se a ideia de um plano de explosão de uma bomba para causar tumulto. Bolsonaro era aquele que ousara reclamar publicamente dos baixos soldos ainda como militar. No mundo sem internet e redes sociais, falar à imprensa sem autorização do superior era conduta vedada nas Forças Armadas.

Foi aberto um processo disciplinar e Bolsonaro condenado. Chamado a se explicar, mentiu para o comandante. E isso ficou registrado no texto do Noticiário do Exército para que toda a tropa soubesse que o comando estava naquele momento expulsando da Força o mentiroso. O mesmo que anos mais tarde subiria palanque usando texto bíblico falando da verdade que liberta.

O texto começa assim: “O cadete - futuro oficial do Exército - ao ingressar na Academia Militar das Agulhas Negras, recebe uma miniatura da espada de Caxias, declarando solenemente: ‘recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar’. Dentro dessa máxima é formado o oficial do Exército brasileiro”. O editoral destaca o culto a valores como honestidade, lealdade e amor à verdade. Na época, uma investigação concluiu que Bolsonaro e seu colega mentiram ao seu comandante. “Conscientemente (Bolsonaro e seu colega) faltaram com a verdade e macularam a dignidade militar”, diz o texto do Centro de Comunicação do Exército.

Depois disso, o caso subiu ao Supremo Tribunal Militar (STM) e o capitão safou-se apesar de laudos no processo atribuírem autoria a ele de croquis de bombas, como revelou mais tarde o jornalista Luiz Maklouf Carvalho no Estadão e em livro. Inocentado, ganhou de volta o direito de ser chamado de militar ainda que a decisão judicial tenha sido na contramão do que defendera o Ministério do Exército de então.

O salvo-conduto do STM deu a Bolsonaro álibi para voltar a ser recebido nos quarteis. Mas demorou um pouco até que a porta da frente lhe fosse aberta. Por anos, o capitão era só o parlamentar insignificante do baixo clero. Mas ganhou as ruas e as redes, virou um político pop e único com musculatura para derrotar o candidato petista em 2018.

Naquele ano, tinha chegado ao generalato uma geração que ouviu o capitão-deputado gritar por melhores soldos enquanto governo tucano de Fernando Henrique Cardoso arrochava as contas. O mesmo fora ao plenário defender a morte do então presidente, mas por conta da imunidade parlamentar e sua irrelevância política na época não foi punido.

Com Lula preso e o PT enlameado por denúncias de corrupção, Bolsonaro surfou direto para o Planalto. No final daquele 2018, num café organizado no comando da Força, um general e três coronéis chamaram alguns jornalistas para conversar. Entre biscoitinhos e café adoçado a gosto, queriam medir até onde a imprensa vinculava Bolsonaro, recém-eleito, às Forças Armadas.

Ao ouvir de um dos convidados que os militares no governo Bolsonaro se equiparariam ao PFL dono da cadeira de vice de Fernando Henrique, levando ônus e bônus da gestão tucana, o general se irritou. Questionou como as Forças Armadas podiam ser comparadas com partidos.

O agastamento do general, que seguiria para atuar na Presidência da República na gestão Bolsonaro, traduzia a sensação compartilhada por parte dos militares de que têm uma missão de resguardar o País acima de tudo, e quem, sabe acima de todos. Ali estava o germe da vontade de poder voltar a mandar nos civis, ainda que sob as ordens de um comandante-em-chefe que não tinha passado do posto de capitão.

As Forças são instituições de Estado e, teoricamente, não deveriam se inclinar na direção de legendas partidárias. A verdade que lecionam aos cadetes seguem sendo o alicerce da formação da tropa. Em 1988, a mensagem já era clara: “O Exército tem, tradicionalmente, utilizado todos os meios legais para extirpar de suas fileiras aqueles que, deliberada e comprovadamente, desmerecem a honra militar. A verdade é um símbolo da honra militar”.

A operação da Polícia Federal da semana passada pode ser, para boa parte dos que viam Bolsonaro como Messias, perseguição política engendrada pelo STF. Mas há quem considere lamentável para a imagem das Forças Armadas o fato de que ex-comandantes e oficiais generais tenham recebido visita da PF por terem, de fato, flertado com um golpe sob inspiração daquele que um dia foi chamado de indigno pelo Exército.

Opinião por Francisco Leali

Coordenador na Sucursal do Estadão em Brasília. Jornalista, Mestre em Comunicação e pesquisador especializado em transparência pública.

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