A história que se relata a seguir durou apenas dois meses. Serve de cartilha para quem quer entender como o Congresso Nacional fabrica um projeto, vota e aprova uma nova lei sem ninguém chiar. Nem mesmo o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Enquanto todo mundo anda se preocupando com as votações que tratam da pauta econômica, Câmara e Senado chancelaram um texto que pode abrir a porteira para a importação de lixo tóxico no País.
Como todo mundo já sabe, nem do nosso próprio lixo damos conta de gerir. Mesmo assim, o Senado aprovou na última terça-feira, 17, projeto de lei que, na formalidade, é descrito como aquele que proíbe a importação de resíduos sólidos para terras brasileiras. Essa era a ideia original de um deputado do MDB de Goiás que apresentou seu projeto em outubro deste ano. O texto era simples. Tinha apenas dois artigos. O primeiro dizia: “É proibida a importação de resíduos sólidos.” O segundo: “esta lei entra em vigor na data de sua publicação”.
Na origem, tentava o parlamentar deixar explícito que a legislação que instituiu a política de tratamento de lixo não tivesse brecha alguma para o País virar depósito de rejeitos do mundo todo, criando um problema ambiental por aqui. Um mês após a apresentação da proposta, sem que ela precisasse tramitar em nenhuma comissão, o deputado Elmar Nascimento, líder do União Brasil, apresentou requerimento de urgência para que o caso fosse direto ao plenário.
A coisa começa assim. A lei dos resíduos é de 2010. Passados 14 anos, um deputado sugere uma mudança. Empurrada por interesses ainda não explicitados, a proposta vira urgentíssima. O requerimento foi aprovado no dia 19 de novembro. No dia 28, o texto foi à votação no plenário da Câmara. Por sugestão do mesmo Elmar Nascimento, a versão original muda. O que era para apenas proibir, ganha exceções. Ou seja, não pode, mas isso e mais isso pode e isso aqui também.
O projeto passou a permitir a importação de “resíduos utilizados na transformação de minerais críticos e de material estratégico”. Também abriu a porta para o pessoal do setor de autopeças importar “resíduos sólidos derivados de produtos nacionais previamente exportados, para fins exclusivos de logística reversa e reciclagem integral, ainda que classificados como resíduos perigosos”. Se ainda não ficou claro da leitura, a tradução veio num parecer do Ibama, como revelou o Estadão. Ao analisar o texto, a área técnica da agência ambiental alertou que estava ali claro o risco de estar aberta a possibilidade para importar “resíduos perigosos”.
Na sessão que aprovou o projeto, um deputado do União pediu a palavra para falar em nome do governo Lula. Elogiou as alterações de Elmar Nascimento, mas comunicou que o Ministério do Meio Ambiente gostaria de fazer alguns ajustes no texto durante a tramitação no Senado. Procurado pelo Estadão no início da semana, a Pasta de Marina Silva disse que “se preocupa com eventuais exceções à Política Nacional de Resíduos que possam causar impactos negativos ao meio ambiente ou à saúde pública”.
A equipe da ministra Marina Silva, que poderia ter vindo a público falar dos riscos, não o fez. Preferiu deixar o barco andar e mexer no texto com ajuda de senadores. E assim foi feito. No último dia 17 de dezembro, lá estava de novo o projeto em tramitação acelerada sendo apreciado no plenário do Senado. Um ajuste incluiu que as exceções não valem para trazer pneu usado ao Brasil, uma briga antiga dos ambientalistas. E outro estabelecia que regras serão definidas por regulamentação do próprio governo.
Na sessão, o relator da matéria, o senador Weverton Rocha (PDT-MA) e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) tiveram diálogo ilustrativo. Estava tudo certo para votar o texto sem novas emendas. Weverton havia incluído ajustes que pareciam ter sido inspirados pela Pasta de Marina Silva. Pacheco citou mais uma exceção. Perguntou se não poderia incluir no texto final permissão para um certo tipo de papel que serviria para a indústria nacional de reciclagem.
“Eu considero que o melhor texto - peço a atenção do Plenário, é só uma sugestão - seria: ‘Fica ressalvada da proibição prevista no caput deste artigo a importação de resíduos utilizados na transformação de materiais e minerais estratégicos, inclusive aparas de papel’”, declarou Pacheco. Weverton ponderou que seria melhor permitir apenas “aparas de papel de fibra longa”.
Pacheco brincou: “Aí está avançando muito no conhecimento que eu não tenho. Mas essa ‘fibra longa’ precisa?” Weverton insistiu que sim para restringir o tipo de sobra de papel permitido para importação para não abrir brecha para qualquer um. Pacheco concordou e Weverton comemorou: “Habemus papam!”
Por conta da mudança no Senado, o texto terá que retornar à Câmara. Mas do jeito que o projeto, de uma hora para outra, virou prioridade das prioridades, não se espante se chegarmos ao fim do ano com uma nova lei que proíbe, mas nem tanto.