Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

3 lições para um feliz Natal


Por REDAÇÃO

Romero Maia, Gestor de Pesquisas do IBGE e membro do Grupo de Métodos de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: romeromaia@gmail.com

Dalson Figueiredo, Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences e visiting scholar na Universidade de Oxford - 2021/2022 - E-mail: dalson.figueiredo@ufpe.br

Quando se pensa em ser feliz, o senso comum geralmente visualiza verão, praias, festas e, acima de tudo, "muito dinheiro no bolso e saúde para dar e vender". Bem o tom da estação que começou dia 21 de dezembro e que, por aqui no Brasil, coincide com as festas de fim de ano. Se esses são os pensamentos recorrentes sobre bem-estar, o Brasil deve ser um país de enorme alegria. Afinal, temos clima tropical, praias paradisíacas, cultura festiva, maior PIB da América Latina e o Sistema Único de Saúde, que é referência mundial. Só que não. Mas, como sabemos disso?

continua após a publicidade

A partir dos anos 60, um cientista social chamado Raymond Bauer, professor em Harvard e no MIT, percebeu que a análise de dados estritamente econômicos não descrevia muito bem o dia-a-dia das pessoas. Por isso, começou a elaborar novas formas de observar variáveis que representassem melhor as condições de vida a partir de múltiplas dimensões. Em 1966, a partir de um pedido da Nasa para aferir o impacto do programa espacial sobre a sociedade americana, ele editou "Social Indicators", primeiro livro totalmente dedicado a medir o que hoje entendemos por bem-estar.

Já na década seguinte, o IBGE fez a primeira publicação oficial sobre indicadores sociais do Brasil. Desde então, essa iniciativa, que ficou conhecida nas Universidades como "movimento dos indicadores sociais", virou central na elaboração e avaliação de políticas públicas. A mais recente publicação nesse sentido se deu no mesmo dia do início do verão, quando o IBGE publicou os resultados de sua pesquisa amostral sobre a saúde infantil na Atenção Primária do SUS. A pesquisa possibilitou o dimensionamento do Net Promoter Score, indicador derivado das respostas dos cuidadores das crianças moradoras dos domicílios brasileiros acerca de variáveis diversas que apontam o grau  de satisfação com o serviço prestado pelo SUS aos menores de 13 anos.

Gráfico 1 - Net Promoter Score por unidade da federação

continua após a publicidade

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A pesquisa, então, revelou, entre outras coisas, que o estado onde há maior satisfação com a porta de entrada da saúde infantil pública no país é o Rio Grande do Sul (41), seguido de Piauí (36) e Maranhão (36). Logo abaixo da média Brasil, estão São Paulo, Rondônia e Acre, empatados com escore 26. Os últimos lugares são ocupados pelo Distrito Federal (22), Amapá (17) e Rio Grande do Norte (13). Para os casos de crianças que chegaram a ser atendidas ao menos 2 vezes pelo mesmo profissional de saúde, a pesquisa concluiu que o país está inteiramente abaixo do padrão mínimo de qualidade.

Temos aqui a primeira lição sobre indicadores sociais. Eles devem estar a serviço de um objetivo político bem definido, de preferência republicano e democrático,  e mensurar algum fenômeno de interesse para alcançá-lo. Se para um médico é importante monitorar características nutricionais das crianças, para o formulador de políticas é necessário monitorar impactos das entregas públicas e a quantidade de pessoas elegíveis a participar de um determinado programa governamental. No caso acima, as 38 milhões de pessoas menores de 13 anos que moram no Brasil em 2022.

continua após a publicidade

A segunda lição diz respeito à qualidade da mensuração do que desejamos aferir. Os manuais de Estatística dão nomes mais elegantes para falar se informação está equivocada ou não: confiabilidade e validade. A confiabilidade diz respeito à consistência da medição em inúmeras repetições. Para ser confiável, a medida deve ser a mesma quando considerado o mesmo instrumento e o mesmo estímulo. Por sua vez, a validade diz respeito à correspondência entre o conceito teórico de interesse (o que realmente queremos medir) e a variável disponível (o que conseguimos mensurar na prática). Quanto maior essa correspondência, maior a validade do indicador.

Um dos indicadores sociais mais polêmicos no que diz respeito à qualidade da informação disponível é aquele que tenta nos revelar como anda a concentração de renda num determinado local. A mais famosa das polêmicas envolveu o economista francês T. Piketty. Ele reclamou publicamente da dificuldade de conseguir dados de qualidade sobre os rendimentos oficiais, atualizados e não amostrais no Brasil, o que dificultou muito sua pesquisa para escrita do best-seller "O Capital no século XXI". Para os dados amostrais, o IBGE encontra enorme dificuldade de acesso aos domicílios de alto padrão, ironicamente os cidadãos que mais fazem uso dos dados do Instituto para suas decisões diárias.

Em decorrência disso, os dados de rendimentos coletados pela anual amostral do IBGE tendem a revelar uma concentração de renda menor do que a que seria observada com dados da Receita Federal. A comprovação disso veio quando o pesquisador Dr. Marcelo Medeiros, da UnB, obteve dados da Receita Federal e descobriu o impacto que pessoas de alta renda causavam no cálculo do índice de Gini. Efeito esse que se aprofunda ainda mais quando se compara o grupo  de todos os declarantes do tipo pessoa física com o dos recebedores de lucros e dividendos. A conclusão é que a concentração se acentua ainda mais no topo da distribuição.

continua após a publicidade

A terceira lição refere-se à periodicidade e representatividade do indicador social. Para saber se as pessoas estão ou não empregadas e auferindo renda, é necessário repetir a aferição em momentos diferentes do tempo, digamos mensalmente ou trimestralmente até que se feche um ciclo e se tenha a sazonalidade da medida, como faz o IBGE com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Pouca gente sabe, mas antes do aperfeiçoamento da PNAD, que era uma pesquisa anual e acontecia apenas em alguns meses, passando a ser PNAD Contínua e ficar em campo todos os meses coletando dados mensais, trimestrais e anuais, as informações sobre ocupação da forma de trabalho no Brasil não eram exatamente de todo o Brasil.

Na verdade, a grande maioria dos estados ficavam de fora. Os dados eram coletados apenas nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre por meio da Pesquisa Mensal de Emprego. Como a variabilidade sazonal dos dados permitia que uma coleta em formato de rodízio trimestral de domicílios abarcasse um excelente nível de exatidão da medida, a PNAD Contínua passou a divulgar, desde 2012, informações sobre o mercado de trabalho mensalmente para o país como um todo, e trimestralmente para as Grandes Regiões, Unidades da Federação, Regiões Metropolitanas que contêm Municípios das Capitais, Regiões Integradas de Desenvolvimento e, finalmente, as capitais de cada estado. No 4º trimestre de cada ano, quando sempre entra "muito dinheiro no bolso" com a injeção do 13º salário, temos aí um útil "termômetro" de indicador social para medir a real temperatura do nosso bem-estar coletivo com a chegada do verão:

Gráfico 2 - Taxa de desocupação de pessoas com 14 anos ou mais de idade no Brasil

continua após a publicidade

Legenda: Barras azuis: Nível de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais de idade.

Barras laranjas: Variação em relação ao trimestre anterior.

Barras amarelas: Variação em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.

continua após a publicidade

Linha azul: média de desocupação na série histórica.

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A peculiaridade desse indicador social no Brasil é que de fato as festas de fim de ano e a chegada do verão, além do aumento da renda do trabalhador assalariado,  aumentam as oportunidades de trabalho. Do início da série em 2012 até o trimestre que encerrou em setembro de 2022, o período de menor desocupação foi até 2015, quando começou o processo de impeachment da Presidente D. Rousseff. Depois disso, veio a reforma trabalhista de M. Temer (em julho de 2017) e demais reformas de teor neoclássico cujo propósito, ao menos declarado, era aumentar as vagas de emprego e, assim, o bem-estar da força de trabalho. Rodou o país como um vírus, em novembro de 2018, a frase do recém-eleito J. Bolsonaro que "Aqui no Brasil tem direito para tudo, só não tem emprego". Justamente num período em que, de 2016 até início de 2022, o gráfico mostra um nível de desocupação acima da média da série da PNAD Contínua.

O mais interessante, no entanto, é observar que em anos de eleições presidenciais costuma acontecer a maior variação negativa do indicador de desocupação, tanto com relação ao trimestre anterior quanto ao mesmo trimestre do ano passado. E nestas últimas eleições aconteceu uma variação extremamente atípica de pessoas que conseguiram trabalho. O porquê desse acontecimento é algo que merece ser estudado com profundidade e estranheza acerca das circunstâncias da corrida eleitoral. Isso mostra que, ao menos no Brasil, quando falamos de felicidade e bem-estar, podemos listar todas aquelas coisas que o senso comum aprecia bastante, porém jamais devemos nos esquecer de um fenômeno que os indicadores sociais mostram como decisivo: a política, não como uma seara de poucos, mas como fator decisivo para as condições de vida de toda a sociedade. Atividade que precisa ser sempre monitorada por indicadores sociais para que seja possível desejar, sem cair no senso comum, um feliz Natal a todos.

Romero Maia, Gestor de Pesquisas do IBGE e membro do Grupo de Métodos de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: romeromaia@gmail.com

Dalson Figueiredo, Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences e visiting scholar na Universidade de Oxford - 2021/2022 - E-mail: dalson.figueiredo@ufpe.br

Quando se pensa em ser feliz, o senso comum geralmente visualiza verão, praias, festas e, acima de tudo, "muito dinheiro no bolso e saúde para dar e vender". Bem o tom da estação que começou dia 21 de dezembro e que, por aqui no Brasil, coincide com as festas de fim de ano. Se esses são os pensamentos recorrentes sobre bem-estar, o Brasil deve ser um país de enorme alegria. Afinal, temos clima tropical, praias paradisíacas, cultura festiva, maior PIB da América Latina e o Sistema Único de Saúde, que é referência mundial. Só que não. Mas, como sabemos disso?

A partir dos anos 60, um cientista social chamado Raymond Bauer, professor em Harvard e no MIT, percebeu que a análise de dados estritamente econômicos não descrevia muito bem o dia-a-dia das pessoas. Por isso, começou a elaborar novas formas de observar variáveis que representassem melhor as condições de vida a partir de múltiplas dimensões. Em 1966, a partir de um pedido da Nasa para aferir o impacto do programa espacial sobre a sociedade americana, ele editou "Social Indicators", primeiro livro totalmente dedicado a medir o que hoje entendemos por bem-estar.

Já na década seguinte, o IBGE fez a primeira publicação oficial sobre indicadores sociais do Brasil. Desde então, essa iniciativa, que ficou conhecida nas Universidades como "movimento dos indicadores sociais", virou central na elaboração e avaliação de políticas públicas. A mais recente publicação nesse sentido se deu no mesmo dia do início do verão, quando o IBGE publicou os resultados de sua pesquisa amostral sobre a saúde infantil na Atenção Primária do SUS. A pesquisa possibilitou o dimensionamento do Net Promoter Score, indicador derivado das respostas dos cuidadores das crianças moradoras dos domicílios brasileiros acerca de variáveis diversas que apontam o grau  de satisfação com o serviço prestado pelo SUS aos menores de 13 anos.

Gráfico 1 - Net Promoter Score por unidade da federação

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A pesquisa, então, revelou, entre outras coisas, que o estado onde há maior satisfação com a porta de entrada da saúde infantil pública no país é o Rio Grande do Sul (41), seguido de Piauí (36) e Maranhão (36). Logo abaixo da média Brasil, estão São Paulo, Rondônia e Acre, empatados com escore 26. Os últimos lugares são ocupados pelo Distrito Federal (22), Amapá (17) e Rio Grande do Norte (13). Para os casos de crianças que chegaram a ser atendidas ao menos 2 vezes pelo mesmo profissional de saúde, a pesquisa concluiu que o país está inteiramente abaixo do padrão mínimo de qualidade.

Temos aqui a primeira lição sobre indicadores sociais. Eles devem estar a serviço de um objetivo político bem definido, de preferência republicano e democrático,  e mensurar algum fenômeno de interesse para alcançá-lo. Se para um médico é importante monitorar características nutricionais das crianças, para o formulador de políticas é necessário monitorar impactos das entregas públicas e a quantidade de pessoas elegíveis a participar de um determinado programa governamental. No caso acima, as 38 milhões de pessoas menores de 13 anos que moram no Brasil em 2022.

A segunda lição diz respeito à qualidade da mensuração do que desejamos aferir. Os manuais de Estatística dão nomes mais elegantes para falar se informação está equivocada ou não: confiabilidade e validade. A confiabilidade diz respeito à consistência da medição em inúmeras repetições. Para ser confiável, a medida deve ser a mesma quando considerado o mesmo instrumento e o mesmo estímulo. Por sua vez, a validade diz respeito à correspondência entre o conceito teórico de interesse (o que realmente queremos medir) e a variável disponível (o que conseguimos mensurar na prática). Quanto maior essa correspondência, maior a validade do indicador.

Um dos indicadores sociais mais polêmicos no que diz respeito à qualidade da informação disponível é aquele que tenta nos revelar como anda a concentração de renda num determinado local. A mais famosa das polêmicas envolveu o economista francês T. Piketty. Ele reclamou publicamente da dificuldade de conseguir dados de qualidade sobre os rendimentos oficiais, atualizados e não amostrais no Brasil, o que dificultou muito sua pesquisa para escrita do best-seller "O Capital no século XXI". Para os dados amostrais, o IBGE encontra enorme dificuldade de acesso aos domicílios de alto padrão, ironicamente os cidadãos que mais fazem uso dos dados do Instituto para suas decisões diárias.

Em decorrência disso, os dados de rendimentos coletados pela anual amostral do IBGE tendem a revelar uma concentração de renda menor do que a que seria observada com dados da Receita Federal. A comprovação disso veio quando o pesquisador Dr. Marcelo Medeiros, da UnB, obteve dados da Receita Federal e descobriu o impacto que pessoas de alta renda causavam no cálculo do índice de Gini. Efeito esse que se aprofunda ainda mais quando se compara o grupo  de todos os declarantes do tipo pessoa física com o dos recebedores de lucros e dividendos. A conclusão é que a concentração se acentua ainda mais no topo da distribuição.

A terceira lição refere-se à periodicidade e representatividade do indicador social. Para saber se as pessoas estão ou não empregadas e auferindo renda, é necessário repetir a aferição em momentos diferentes do tempo, digamos mensalmente ou trimestralmente até que se feche um ciclo e se tenha a sazonalidade da medida, como faz o IBGE com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Pouca gente sabe, mas antes do aperfeiçoamento da PNAD, que era uma pesquisa anual e acontecia apenas em alguns meses, passando a ser PNAD Contínua e ficar em campo todos os meses coletando dados mensais, trimestrais e anuais, as informações sobre ocupação da forma de trabalho no Brasil não eram exatamente de todo o Brasil.

Na verdade, a grande maioria dos estados ficavam de fora. Os dados eram coletados apenas nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre por meio da Pesquisa Mensal de Emprego. Como a variabilidade sazonal dos dados permitia que uma coleta em formato de rodízio trimestral de domicílios abarcasse um excelente nível de exatidão da medida, a PNAD Contínua passou a divulgar, desde 2012, informações sobre o mercado de trabalho mensalmente para o país como um todo, e trimestralmente para as Grandes Regiões, Unidades da Federação, Regiões Metropolitanas que contêm Municípios das Capitais, Regiões Integradas de Desenvolvimento e, finalmente, as capitais de cada estado. No 4º trimestre de cada ano, quando sempre entra "muito dinheiro no bolso" com a injeção do 13º salário, temos aí um útil "termômetro" de indicador social para medir a real temperatura do nosso bem-estar coletivo com a chegada do verão:

Gráfico 2 - Taxa de desocupação de pessoas com 14 anos ou mais de idade no Brasil

Legenda: Barras azuis: Nível de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais de idade.

Barras laranjas: Variação em relação ao trimestre anterior.

Barras amarelas: Variação em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.

Linha azul: média de desocupação na série histórica.

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A peculiaridade desse indicador social no Brasil é que de fato as festas de fim de ano e a chegada do verão, além do aumento da renda do trabalhador assalariado,  aumentam as oportunidades de trabalho. Do início da série em 2012 até o trimestre que encerrou em setembro de 2022, o período de menor desocupação foi até 2015, quando começou o processo de impeachment da Presidente D. Rousseff. Depois disso, veio a reforma trabalhista de M. Temer (em julho de 2017) e demais reformas de teor neoclássico cujo propósito, ao menos declarado, era aumentar as vagas de emprego e, assim, o bem-estar da força de trabalho. Rodou o país como um vírus, em novembro de 2018, a frase do recém-eleito J. Bolsonaro que "Aqui no Brasil tem direito para tudo, só não tem emprego". Justamente num período em que, de 2016 até início de 2022, o gráfico mostra um nível de desocupação acima da média da série da PNAD Contínua.

O mais interessante, no entanto, é observar que em anos de eleições presidenciais costuma acontecer a maior variação negativa do indicador de desocupação, tanto com relação ao trimestre anterior quanto ao mesmo trimestre do ano passado. E nestas últimas eleições aconteceu uma variação extremamente atípica de pessoas que conseguiram trabalho. O porquê desse acontecimento é algo que merece ser estudado com profundidade e estranheza acerca das circunstâncias da corrida eleitoral. Isso mostra que, ao menos no Brasil, quando falamos de felicidade e bem-estar, podemos listar todas aquelas coisas que o senso comum aprecia bastante, porém jamais devemos nos esquecer de um fenômeno que os indicadores sociais mostram como decisivo: a política, não como uma seara de poucos, mas como fator decisivo para as condições de vida de toda a sociedade. Atividade que precisa ser sempre monitorada por indicadores sociais para que seja possível desejar, sem cair no senso comum, um feliz Natal a todos.

Romero Maia, Gestor de Pesquisas do IBGE e membro do Grupo de Métodos de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: romeromaia@gmail.com

Dalson Figueiredo, Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences e visiting scholar na Universidade de Oxford - 2021/2022 - E-mail: dalson.figueiredo@ufpe.br

Quando se pensa em ser feliz, o senso comum geralmente visualiza verão, praias, festas e, acima de tudo, "muito dinheiro no bolso e saúde para dar e vender". Bem o tom da estação que começou dia 21 de dezembro e que, por aqui no Brasil, coincide com as festas de fim de ano. Se esses são os pensamentos recorrentes sobre bem-estar, o Brasil deve ser um país de enorme alegria. Afinal, temos clima tropical, praias paradisíacas, cultura festiva, maior PIB da América Latina e o Sistema Único de Saúde, que é referência mundial. Só que não. Mas, como sabemos disso?

A partir dos anos 60, um cientista social chamado Raymond Bauer, professor em Harvard e no MIT, percebeu que a análise de dados estritamente econômicos não descrevia muito bem o dia-a-dia das pessoas. Por isso, começou a elaborar novas formas de observar variáveis que representassem melhor as condições de vida a partir de múltiplas dimensões. Em 1966, a partir de um pedido da Nasa para aferir o impacto do programa espacial sobre a sociedade americana, ele editou "Social Indicators", primeiro livro totalmente dedicado a medir o que hoje entendemos por bem-estar.

Já na década seguinte, o IBGE fez a primeira publicação oficial sobre indicadores sociais do Brasil. Desde então, essa iniciativa, que ficou conhecida nas Universidades como "movimento dos indicadores sociais", virou central na elaboração e avaliação de políticas públicas. A mais recente publicação nesse sentido se deu no mesmo dia do início do verão, quando o IBGE publicou os resultados de sua pesquisa amostral sobre a saúde infantil na Atenção Primária do SUS. A pesquisa possibilitou o dimensionamento do Net Promoter Score, indicador derivado das respostas dos cuidadores das crianças moradoras dos domicílios brasileiros acerca de variáveis diversas que apontam o grau  de satisfação com o serviço prestado pelo SUS aos menores de 13 anos.

Gráfico 1 - Net Promoter Score por unidade da federação

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A pesquisa, então, revelou, entre outras coisas, que o estado onde há maior satisfação com a porta de entrada da saúde infantil pública no país é o Rio Grande do Sul (41), seguido de Piauí (36) e Maranhão (36). Logo abaixo da média Brasil, estão São Paulo, Rondônia e Acre, empatados com escore 26. Os últimos lugares são ocupados pelo Distrito Federal (22), Amapá (17) e Rio Grande do Norte (13). Para os casos de crianças que chegaram a ser atendidas ao menos 2 vezes pelo mesmo profissional de saúde, a pesquisa concluiu que o país está inteiramente abaixo do padrão mínimo de qualidade.

Temos aqui a primeira lição sobre indicadores sociais. Eles devem estar a serviço de um objetivo político bem definido, de preferência republicano e democrático,  e mensurar algum fenômeno de interesse para alcançá-lo. Se para um médico é importante monitorar características nutricionais das crianças, para o formulador de políticas é necessário monitorar impactos das entregas públicas e a quantidade de pessoas elegíveis a participar de um determinado programa governamental. No caso acima, as 38 milhões de pessoas menores de 13 anos que moram no Brasil em 2022.

A segunda lição diz respeito à qualidade da mensuração do que desejamos aferir. Os manuais de Estatística dão nomes mais elegantes para falar se informação está equivocada ou não: confiabilidade e validade. A confiabilidade diz respeito à consistência da medição em inúmeras repetições. Para ser confiável, a medida deve ser a mesma quando considerado o mesmo instrumento e o mesmo estímulo. Por sua vez, a validade diz respeito à correspondência entre o conceito teórico de interesse (o que realmente queremos medir) e a variável disponível (o que conseguimos mensurar na prática). Quanto maior essa correspondência, maior a validade do indicador.

Um dos indicadores sociais mais polêmicos no que diz respeito à qualidade da informação disponível é aquele que tenta nos revelar como anda a concentração de renda num determinado local. A mais famosa das polêmicas envolveu o economista francês T. Piketty. Ele reclamou publicamente da dificuldade de conseguir dados de qualidade sobre os rendimentos oficiais, atualizados e não amostrais no Brasil, o que dificultou muito sua pesquisa para escrita do best-seller "O Capital no século XXI". Para os dados amostrais, o IBGE encontra enorme dificuldade de acesso aos domicílios de alto padrão, ironicamente os cidadãos que mais fazem uso dos dados do Instituto para suas decisões diárias.

Em decorrência disso, os dados de rendimentos coletados pela anual amostral do IBGE tendem a revelar uma concentração de renda menor do que a que seria observada com dados da Receita Federal. A comprovação disso veio quando o pesquisador Dr. Marcelo Medeiros, da UnB, obteve dados da Receita Federal e descobriu o impacto que pessoas de alta renda causavam no cálculo do índice de Gini. Efeito esse que se aprofunda ainda mais quando se compara o grupo  de todos os declarantes do tipo pessoa física com o dos recebedores de lucros e dividendos. A conclusão é que a concentração se acentua ainda mais no topo da distribuição.

A terceira lição refere-se à periodicidade e representatividade do indicador social. Para saber se as pessoas estão ou não empregadas e auferindo renda, é necessário repetir a aferição em momentos diferentes do tempo, digamos mensalmente ou trimestralmente até que se feche um ciclo e se tenha a sazonalidade da medida, como faz o IBGE com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Pouca gente sabe, mas antes do aperfeiçoamento da PNAD, que era uma pesquisa anual e acontecia apenas em alguns meses, passando a ser PNAD Contínua e ficar em campo todos os meses coletando dados mensais, trimestrais e anuais, as informações sobre ocupação da forma de trabalho no Brasil não eram exatamente de todo o Brasil.

Na verdade, a grande maioria dos estados ficavam de fora. Os dados eram coletados apenas nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre por meio da Pesquisa Mensal de Emprego. Como a variabilidade sazonal dos dados permitia que uma coleta em formato de rodízio trimestral de domicílios abarcasse um excelente nível de exatidão da medida, a PNAD Contínua passou a divulgar, desde 2012, informações sobre o mercado de trabalho mensalmente para o país como um todo, e trimestralmente para as Grandes Regiões, Unidades da Federação, Regiões Metropolitanas que contêm Municípios das Capitais, Regiões Integradas de Desenvolvimento e, finalmente, as capitais de cada estado. No 4º trimestre de cada ano, quando sempre entra "muito dinheiro no bolso" com a injeção do 13º salário, temos aí um útil "termômetro" de indicador social para medir a real temperatura do nosso bem-estar coletivo com a chegada do verão:

Gráfico 2 - Taxa de desocupação de pessoas com 14 anos ou mais de idade no Brasil

Legenda: Barras azuis: Nível de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais de idade.

Barras laranjas: Variação em relação ao trimestre anterior.

Barras amarelas: Variação em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.

Linha azul: média de desocupação na série histórica.

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A peculiaridade desse indicador social no Brasil é que de fato as festas de fim de ano e a chegada do verão, além do aumento da renda do trabalhador assalariado,  aumentam as oportunidades de trabalho. Do início da série em 2012 até o trimestre que encerrou em setembro de 2022, o período de menor desocupação foi até 2015, quando começou o processo de impeachment da Presidente D. Rousseff. Depois disso, veio a reforma trabalhista de M. Temer (em julho de 2017) e demais reformas de teor neoclássico cujo propósito, ao menos declarado, era aumentar as vagas de emprego e, assim, o bem-estar da força de trabalho. Rodou o país como um vírus, em novembro de 2018, a frase do recém-eleito J. Bolsonaro que "Aqui no Brasil tem direito para tudo, só não tem emprego". Justamente num período em que, de 2016 até início de 2022, o gráfico mostra um nível de desocupação acima da média da série da PNAD Contínua.

O mais interessante, no entanto, é observar que em anos de eleições presidenciais costuma acontecer a maior variação negativa do indicador de desocupação, tanto com relação ao trimestre anterior quanto ao mesmo trimestre do ano passado. E nestas últimas eleições aconteceu uma variação extremamente atípica de pessoas que conseguiram trabalho. O porquê desse acontecimento é algo que merece ser estudado com profundidade e estranheza acerca das circunstâncias da corrida eleitoral. Isso mostra que, ao menos no Brasil, quando falamos de felicidade e bem-estar, podemos listar todas aquelas coisas que o senso comum aprecia bastante, porém jamais devemos nos esquecer de um fenômeno que os indicadores sociais mostram como decisivo: a política, não como uma seara de poucos, mas como fator decisivo para as condições de vida de toda a sociedade. Atividade que precisa ser sempre monitorada por indicadores sociais para que seja possível desejar, sem cair no senso comum, um feliz Natal a todos.

Romero Maia, Gestor de Pesquisas do IBGE e membro do Grupo de Métodos de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: romeromaia@gmail.com

Dalson Figueiredo, Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences e visiting scholar na Universidade de Oxford - 2021/2022 - E-mail: dalson.figueiredo@ufpe.br

Quando se pensa em ser feliz, o senso comum geralmente visualiza verão, praias, festas e, acima de tudo, "muito dinheiro no bolso e saúde para dar e vender". Bem o tom da estação que começou dia 21 de dezembro e que, por aqui no Brasil, coincide com as festas de fim de ano. Se esses são os pensamentos recorrentes sobre bem-estar, o Brasil deve ser um país de enorme alegria. Afinal, temos clima tropical, praias paradisíacas, cultura festiva, maior PIB da América Latina e o Sistema Único de Saúde, que é referência mundial. Só que não. Mas, como sabemos disso?

A partir dos anos 60, um cientista social chamado Raymond Bauer, professor em Harvard e no MIT, percebeu que a análise de dados estritamente econômicos não descrevia muito bem o dia-a-dia das pessoas. Por isso, começou a elaborar novas formas de observar variáveis que representassem melhor as condições de vida a partir de múltiplas dimensões. Em 1966, a partir de um pedido da Nasa para aferir o impacto do programa espacial sobre a sociedade americana, ele editou "Social Indicators", primeiro livro totalmente dedicado a medir o que hoje entendemos por bem-estar.

Já na década seguinte, o IBGE fez a primeira publicação oficial sobre indicadores sociais do Brasil. Desde então, essa iniciativa, que ficou conhecida nas Universidades como "movimento dos indicadores sociais", virou central na elaboração e avaliação de políticas públicas. A mais recente publicação nesse sentido se deu no mesmo dia do início do verão, quando o IBGE publicou os resultados de sua pesquisa amostral sobre a saúde infantil na Atenção Primária do SUS. A pesquisa possibilitou o dimensionamento do Net Promoter Score, indicador derivado das respostas dos cuidadores das crianças moradoras dos domicílios brasileiros acerca de variáveis diversas que apontam o grau  de satisfação com o serviço prestado pelo SUS aos menores de 13 anos.

Gráfico 1 - Net Promoter Score por unidade da federação

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A pesquisa, então, revelou, entre outras coisas, que o estado onde há maior satisfação com a porta de entrada da saúde infantil pública no país é o Rio Grande do Sul (41), seguido de Piauí (36) e Maranhão (36). Logo abaixo da média Brasil, estão São Paulo, Rondônia e Acre, empatados com escore 26. Os últimos lugares são ocupados pelo Distrito Federal (22), Amapá (17) e Rio Grande do Norte (13). Para os casos de crianças que chegaram a ser atendidas ao menos 2 vezes pelo mesmo profissional de saúde, a pesquisa concluiu que o país está inteiramente abaixo do padrão mínimo de qualidade.

Temos aqui a primeira lição sobre indicadores sociais. Eles devem estar a serviço de um objetivo político bem definido, de preferência republicano e democrático,  e mensurar algum fenômeno de interesse para alcançá-lo. Se para um médico é importante monitorar características nutricionais das crianças, para o formulador de políticas é necessário monitorar impactos das entregas públicas e a quantidade de pessoas elegíveis a participar de um determinado programa governamental. No caso acima, as 38 milhões de pessoas menores de 13 anos que moram no Brasil em 2022.

A segunda lição diz respeito à qualidade da mensuração do que desejamos aferir. Os manuais de Estatística dão nomes mais elegantes para falar se informação está equivocada ou não: confiabilidade e validade. A confiabilidade diz respeito à consistência da medição em inúmeras repetições. Para ser confiável, a medida deve ser a mesma quando considerado o mesmo instrumento e o mesmo estímulo. Por sua vez, a validade diz respeito à correspondência entre o conceito teórico de interesse (o que realmente queremos medir) e a variável disponível (o que conseguimos mensurar na prática). Quanto maior essa correspondência, maior a validade do indicador.

Um dos indicadores sociais mais polêmicos no que diz respeito à qualidade da informação disponível é aquele que tenta nos revelar como anda a concentração de renda num determinado local. A mais famosa das polêmicas envolveu o economista francês T. Piketty. Ele reclamou publicamente da dificuldade de conseguir dados de qualidade sobre os rendimentos oficiais, atualizados e não amostrais no Brasil, o que dificultou muito sua pesquisa para escrita do best-seller "O Capital no século XXI". Para os dados amostrais, o IBGE encontra enorme dificuldade de acesso aos domicílios de alto padrão, ironicamente os cidadãos que mais fazem uso dos dados do Instituto para suas decisões diárias.

Em decorrência disso, os dados de rendimentos coletados pela anual amostral do IBGE tendem a revelar uma concentração de renda menor do que a que seria observada com dados da Receita Federal. A comprovação disso veio quando o pesquisador Dr. Marcelo Medeiros, da UnB, obteve dados da Receita Federal e descobriu o impacto que pessoas de alta renda causavam no cálculo do índice de Gini. Efeito esse que se aprofunda ainda mais quando se compara o grupo  de todos os declarantes do tipo pessoa física com o dos recebedores de lucros e dividendos. A conclusão é que a concentração se acentua ainda mais no topo da distribuição.

A terceira lição refere-se à periodicidade e representatividade do indicador social. Para saber se as pessoas estão ou não empregadas e auferindo renda, é necessário repetir a aferição em momentos diferentes do tempo, digamos mensalmente ou trimestralmente até que se feche um ciclo e se tenha a sazonalidade da medida, como faz o IBGE com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Pouca gente sabe, mas antes do aperfeiçoamento da PNAD, que era uma pesquisa anual e acontecia apenas em alguns meses, passando a ser PNAD Contínua e ficar em campo todos os meses coletando dados mensais, trimestrais e anuais, as informações sobre ocupação da forma de trabalho no Brasil não eram exatamente de todo o Brasil.

Na verdade, a grande maioria dos estados ficavam de fora. Os dados eram coletados apenas nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre por meio da Pesquisa Mensal de Emprego. Como a variabilidade sazonal dos dados permitia que uma coleta em formato de rodízio trimestral de domicílios abarcasse um excelente nível de exatidão da medida, a PNAD Contínua passou a divulgar, desde 2012, informações sobre o mercado de trabalho mensalmente para o país como um todo, e trimestralmente para as Grandes Regiões, Unidades da Federação, Regiões Metropolitanas que contêm Municípios das Capitais, Regiões Integradas de Desenvolvimento e, finalmente, as capitais de cada estado. No 4º trimestre de cada ano, quando sempre entra "muito dinheiro no bolso" com a injeção do 13º salário, temos aí um útil "termômetro" de indicador social para medir a real temperatura do nosso bem-estar coletivo com a chegada do verão:

Gráfico 2 - Taxa de desocupação de pessoas com 14 anos ou mais de idade no Brasil

Legenda: Barras azuis: Nível de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais de idade.

Barras laranjas: Variação em relação ao trimestre anterior.

Barras amarelas: Variação em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.

Linha azul: média de desocupação na série histórica.

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A peculiaridade desse indicador social no Brasil é que de fato as festas de fim de ano e a chegada do verão, além do aumento da renda do trabalhador assalariado,  aumentam as oportunidades de trabalho. Do início da série em 2012 até o trimestre que encerrou em setembro de 2022, o período de menor desocupação foi até 2015, quando começou o processo de impeachment da Presidente D. Rousseff. Depois disso, veio a reforma trabalhista de M. Temer (em julho de 2017) e demais reformas de teor neoclássico cujo propósito, ao menos declarado, era aumentar as vagas de emprego e, assim, o bem-estar da força de trabalho. Rodou o país como um vírus, em novembro de 2018, a frase do recém-eleito J. Bolsonaro que "Aqui no Brasil tem direito para tudo, só não tem emprego". Justamente num período em que, de 2016 até início de 2022, o gráfico mostra um nível de desocupação acima da média da série da PNAD Contínua.

O mais interessante, no entanto, é observar que em anos de eleições presidenciais costuma acontecer a maior variação negativa do indicador de desocupação, tanto com relação ao trimestre anterior quanto ao mesmo trimestre do ano passado. E nestas últimas eleições aconteceu uma variação extremamente atípica de pessoas que conseguiram trabalho. O porquê desse acontecimento é algo que merece ser estudado com profundidade e estranheza acerca das circunstâncias da corrida eleitoral. Isso mostra que, ao menos no Brasil, quando falamos de felicidade e bem-estar, podemos listar todas aquelas coisas que o senso comum aprecia bastante, porém jamais devemos nos esquecer de um fenômeno que os indicadores sociais mostram como decisivo: a política, não como uma seara de poucos, mas como fator decisivo para as condições de vida de toda a sociedade. Atividade que precisa ser sempre monitorada por indicadores sociais para que seja possível desejar, sem cair no senso comum, um feliz Natal a todos.

Romero Maia, Gestor de Pesquisas do IBGE e membro do Grupo de Métodos de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: romeromaia@gmail.com

Dalson Figueiredo, Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Catalisador do Berkeley Initiative for Transparency in the Social Sciences e visiting scholar na Universidade de Oxford - 2021/2022 - E-mail: dalson.figueiredo@ufpe.br

Quando se pensa em ser feliz, o senso comum geralmente visualiza verão, praias, festas e, acima de tudo, "muito dinheiro no bolso e saúde para dar e vender". Bem o tom da estação que começou dia 21 de dezembro e que, por aqui no Brasil, coincide com as festas de fim de ano. Se esses são os pensamentos recorrentes sobre bem-estar, o Brasil deve ser um país de enorme alegria. Afinal, temos clima tropical, praias paradisíacas, cultura festiva, maior PIB da América Latina e o Sistema Único de Saúde, que é referência mundial. Só que não. Mas, como sabemos disso?

A partir dos anos 60, um cientista social chamado Raymond Bauer, professor em Harvard e no MIT, percebeu que a análise de dados estritamente econômicos não descrevia muito bem o dia-a-dia das pessoas. Por isso, começou a elaborar novas formas de observar variáveis que representassem melhor as condições de vida a partir de múltiplas dimensões. Em 1966, a partir de um pedido da Nasa para aferir o impacto do programa espacial sobre a sociedade americana, ele editou "Social Indicators", primeiro livro totalmente dedicado a medir o que hoje entendemos por bem-estar.

Já na década seguinte, o IBGE fez a primeira publicação oficial sobre indicadores sociais do Brasil. Desde então, essa iniciativa, que ficou conhecida nas Universidades como "movimento dos indicadores sociais", virou central na elaboração e avaliação de políticas públicas. A mais recente publicação nesse sentido se deu no mesmo dia do início do verão, quando o IBGE publicou os resultados de sua pesquisa amostral sobre a saúde infantil na Atenção Primária do SUS. A pesquisa possibilitou o dimensionamento do Net Promoter Score, indicador derivado das respostas dos cuidadores das crianças moradoras dos domicílios brasileiros acerca de variáveis diversas que apontam o grau  de satisfação com o serviço prestado pelo SUS aos menores de 13 anos.

Gráfico 1 - Net Promoter Score por unidade da federação

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A pesquisa, então, revelou, entre outras coisas, que o estado onde há maior satisfação com a porta de entrada da saúde infantil pública no país é o Rio Grande do Sul (41), seguido de Piauí (36) e Maranhão (36). Logo abaixo da média Brasil, estão São Paulo, Rondônia e Acre, empatados com escore 26. Os últimos lugares são ocupados pelo Distrito Federal (22), Amapá (17) e Rio Grande do Norte (13). Para os casos de crianças que chegaram a ser atendidas ao menos 2 vezes pelo mesmo profissional de saúde, a pesquisa concluiu que o país está inteiramente abaixo do padrão mínimo de qualidade.

Temos aqui a primeira lição sobre indicadores sociais. Eles devem estar a serviço de um objetivo político bem definido, de preferência republicano e democrático,  e mensurar algum fenômeno de interesse para alcançá-lo. Se para um médico é importante monitorar características nutricionais das crianças, para o formulador de políticas é necessário monitorar impactos das entregas públicas e a quantidade de pessoas elegíveis a participar de um determinado programa governamental. No caso acima, as 38 milhões de pessoas menores de 13 anos que moram no Brasil em 2022.

A segunda lição diz respeito à qualidade da mensuração do que desejamos aferir. Os manuais de Estatística dão nomes mais elegantes para falar se informação está equivocada ou não: confiabilidade e validade. A confiabilidade diz respeito à consistência da medição em inúmeras repetições. Para ser confiável, a medida deve ser a mesma quando considerado o mesmo instrumento e o mesmo estímulo. Por sua vez, a validade diz respeito à correspondência entre o conceito teórico de interesse (o que realmente queremos medir) e a variável disponível (o que conseguimos mensurar na prática). Quanto maior essa correspondência, maior a validade do indicador.

Um dos indicadores sociais mais polêmicos no que diz respeito à qualidade da informação disponível é aquele que tenta nos revelar como anda a concentração de renda num determinado local. A mais famosa das polêmicas envolveu o economista francês T. Piketty. Ele reclamou publicamente da dificuldade de conseguir dados de qualidade sobre os rendimentos oficiais, atualizados e não amostrais no Brasil, o que dificultou muito sua pesquisa para escrita do best-seller "O Capital no século XXI". Para os dados amostrais, o IBGE encontra enorme dificuldade de acesso aos domicílios de alto padrão, ironicamente os cidadãos que mais fazem uso dos dados do Instituto para suas decisões diárias.

Em decorrência disso, os dados de rendimentos coletados pela anual amostral do IBGE tendem a revelar uma concentração de renda menor do que a que seria observada com dados da Receita Federal. A comprovação disso veio quando o pesquisador Dr. Marcelo Medeiros, da UnB, obteve dados da Receita Federal e descobriu o impacto que pessoas de alta renda causavam no cálculo do índice de Gini. Efeito esse que se aprofunda ainda mais quando se compara o grupo  de todos os declarantes do tipo pessoa física com o dos recebedores de lucros e dividendos. A conclusão é que a concentração se acentua ainda mais no topo da distribuição.

A terceira lição refere-se à periodicidade e representatividade do indicador social. Para saber se as pessoas estão ou não empregadas e auferindo renda, é necessário repetir a aferição em momentos diferentes do tempo, digamos mensalmente ou trimestralmente até que se feche um ciclo e se tenha a sazonalidade da medida, como faz o IBGE com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Pouca gente sabe, mas antes do aperfeiçoamento da PNAD, que era uma pesquisa anual e acontecia apenas em alguns meses, passando a ser PNAD Contínua e ficar em campo todos os meses coletando dados mensais, trimestrais e anuais, as informações sobre ocupação da forma de trabalho no Brasil não eram exatamente de todo o Brasil.

Na verdade, a grande maioria dos estados ficavam de fora. Os dados eram coletados apenas nas regiões metropolitanas de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre por meio da Pesquisa Mensal de Emprego. Como a variabilidade sazonal dos dados permitia que uma coleta em formato de rodízio trimestral de domicílios abarcasse um excelente nível de exatidão da medida, a PNAD Contínua passou a divulgar, desde 2012, informações sobre o mercado de trabalho mensalmente para o país como um todo, e trimestralmente para as Grandes Regiões, Unidades da Federação, Regiões Metropolitanas que contêm Municípios das Capitais, Regiões Integradas de Desenvolvimento e, finalmente, as capitais de cada estado. No 4º trimestre de cada ano, quando sempre entra "muito dinheiro no bolso" com a injeção do 13º salário, temos aí um útil "termômetro" de indicador social para medir a real temperatura do nosso bem-estar coletivo com a chegada do verão:

Gráfico 2 - Taxa de desocupação de pessoas com 14 anos ou mais de idade no Brasil

Legenda: Barras azuis: Nível de desocupação, na semana de referência, das pessoas de 14 anos ou mais de idade.

Barras laranjas: Variação em relação ao trimestre anterior.

Barras amarelas: Variação em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.

Linha azul: média de desocupação na série histórica.

Fonte: elaboração própria a partir dos dados IBGE.

A peculiaridade desse indicador social no Brasil é que de fato as festas de fim de ano e a chegada do verão, além do aumento da renda do trabalhador assalariado,  aumentam as oportunidades de trabalho. Do início da série em 2012 até o trimestre que encerrou em setembro de 2022, o período de menor desocupação foi até 2015, quando começou o processo de impeachment da Presidente D. Rousseff. Depois disso, veio a reforma trabalhista de M. Temer (em julho de 2017) e demais reformas de teor neoclássico cujo propósito, ao menos declarado, era aumentar as vagas de emprego e, assim, o bem-estar da força de trabalho. Rodou o país como um vírus, em novembro de 2018, a frase do recém-eleito J. Bolsonaro que "Aqui no Brasil tem direito para tudo, só não tem emprego". Justamente num período em que, de 2016 até início de 2022, o gráfico mostra um nível de desocupação acima da média da série da PNAD Contínua.

O mais interessante, no entanto, é observar que em anos de eleições presidenciais costuma acontecer a maior variação negativa do indicador de desocupação, tanto com relação ao trimestre anterior quanto ao mesmo trimestre do ano passado. E nestas últimas eleições aconteceu uma variação extremamente atípica de pessoas que conseguiram trabalho. O porquê desse acontecimento é algo que merece ser estudado com profundidade e estranheza acerca das circunstâncias da corrida eleitoral. Isso mostra que, ao menos no Brasil, quando falamos de felicidade e bem-estar, podemos listar todas aquelas coisas que o senso comum aprecia bastante, porém jamais devemos nos esquecer de um fenômeno que os indicadores sociais mostram como decisivo: a política, não como uma seara de poucos, mas como fator decisivo para as condições de vida de toda a sociedade. Atividade que precisa ser sempre monitorada por indicadores sociais para que seja possível desejar, sem cair no senso comum, um feliz Natal a todos.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.