Camila Jordan, Mestre em Administração Pública (Columbia University), Engenheira Ambiental (Universidade Nova de Lisboa). Diretora Executiva da TETO Brasil. E-mail: camila.jordan@teto.org.br. TETO: doe.teto.org.br
Durante a pandemia da covid-19, a frase que mais ouvimos foi: "Fique em casa". Mas, muitas pessoas se perguntaram: em quais condições?
A pandemia reforçou o sentimento de que a nossa moradia, nossa casa, serve de abrigo do mundo exterior, deve ser minimamente segura, habitável e confortável. A camada mais privilegiada e trabalhando de casa saiu das cidades e se refugiou em suas segundas casas, outras, ainda investiram em seus lares. Todos escutamos o barulho quase interminável das obras e, de fato, o número de reformas habitacionais cresceu significativamente nos últimos 24 meses.
Imagem: Voluntariado TETO Brasil.
No entanto, essa é só uma parte da realidade. Segundo o Mapa de Direitos, nas favelas precárias, mais de 36% das pessoas vivem em barracos feitos de madeira reaproveitada, lonas, retalhos de plástico e outros materiais. 22% vivem sem banheiro ou chuveiro e mais de 83% acessam a água de forma irregular (gato).
A pandemia acentuou as desigualdades estruturais existentes na nossa sociedade e, como em outras crises, afetou os grupos vulneráveis de forma mais crítica.
No estudo feito em parceria entre TETO e FGV, divulgado em novembro de 2021, um novo dado se destaca: soluções emergenciais como a construção de uma moradia de emergência impacta na sensação de bem-estar das famílias que hoje vivem em situação de extrema vulnerabilidade.
A pesquisa aponta que a pandemia impactou diretamente na saúde e no bolso das pessoas, além de afetar a autoestima, perspectivas de futuro e moral das comunidades. Com o isolamento, a falta de emprego e o número maior de casos e mortes nas periferias por causa da Covid-19, as famílias que vivem em favelas precárias sofreram perdas físicas e emocionais graves e, portanto, sentimentos como o de solidão, medo, angústia e tristeza foram agravados pela ausência de uma moradia adequada.
No entanto, entre as famílias beneficiárias das moradias de emergência, os resultados são claros: as que fizeram parte do programa da TETO identificam uma melhora no sentimento de solidão e uma diminuição nos níveis de preocupação. Mesmo nos casos em que houve deterioração emocional, ela foi menos impactante entre os grupos que haviam recebido as moradias de emergência, e notou-se uma significativa diminuição na necessidade de uso de medicamentos para depressão ou ansiedade, bem como diminuição no nível de estresse diário.
A moradia como a solução para a Saúde Pública
Essa pesquisa corrobora a tendência internacional de que a moradia deve ser vista como a base das políticas de saúde pública para as nossas cidades.
Temos o exemplo do Boston Medical Center, nos EUA, que se comprometeu a investir USD 6,5 milhões em habitação social como solução de saúde pública para a comunidade de Boston. A iniciativa vai apoiar diversas organizações da sociedade civil na construção de moradias para populações de baixa renda.
Condições inadequadas de moradia são associadas a doenças debilitantes, como doenças respiratórias e infecciosas: tuberculose, gripe e diarreia, sendo esta última uma das principais causas de morte infantil em todo o mundo.
Imagem: Voluntariado TETO Brasil.
No Brasil, temos um número alto de moradias que são autoconstruídas [1], com poucos recursos e sem o apoio técnico necessário para seguir as normas, dimensionamentos, ventilação e iluminação adequadas. Todos estes aspectos têm impacto direto na saúde física e mental de seus habitantes. Além disso, esse tipo de moradia tende a ser construído em locais insalubres e perigosos, como por exemplo junto a córregos, encostas e embaixo de linhas de alta-tensão. As pessoas que não possuem recursos para participar do mercado de habitação, seja aluguel ou compra, acabam por morar em locais insalubres por serem as únicas alternativas.
O Brasil possui soluções para essas questões, como, por exemplo, a lei federal de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (Athis), que garante que famílias com renda de até três salários mínimos, em áreas urbanas e rurais, recebam assistência técnica pública e gratuita, prestada por profissionais habilitados, para a elaboração de projetos, acompanhamento e execução de obras necessárias para a edificação, reforma, ampliação ou regularização fundiária de suas moradias.
Essa lei, de 2008, cria um caminho para moradia adequada e segura, movimenta a economia e o comércio local, gera empregos e renda na área da construção civil, melhorando a qualidade de vida, e diminuindo os gastos com saúde pública associados às condições de salubridade da habitação.
Infelizmente, entre os mais de 5.500 municípios brasileiros, apenas 20 têm leis de Athis (menos de 1%). Uma das razões principais é que a lei federal não obriga estados e municípios a implementarem a lei e nem atrela o orçamento estadual e municipal à lei. No mais, poucos são os potenciais beneficiários (estimado em 11 milhões de pessoas), que conhecem essa possibilidade. O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU) tem buscado informar, capacitar e financiar projetos, mas ainda são esforços pontuais e não atingem a escala necessária.
Uma ação que teria mais impacto seria um movimento sério de um pacote de incentivos do governo federal para que as leis fossem sancionadas localmente, estimulando, assim, os governos locais a prover formas concretas de apoio a essa parte da população que constrói com o que está disponível nas suas moradias.
O Brasil não pode mais ignorar a questão da moradia. Como sociedade, moradia precisa ser a nossa prioridade. Precisamos investir em diversas frentes, públicos e tipos de solução. Todos precisam ter acesso à moradia adequada. Isso pode e deve se dar por múltiplos caminhos, desde aluguel, casa própria, termos territoriais coletivos, autoconstrução, moradia pública, entre outros.
Devemos investigar e atuar na complexidade em conjunto. Praticando de forma autêntica a escuta e a participação cidadã das populações mais afetadas, usando a estrutura do Estado para articular com os mais diversos atores.
Após uma pandemia que nos fez sentir na pele a importância de morar em um lugar digno e seguro, pouco se avançou no Brasil no quesito de moradia digna. Se nem a pandemia foi suficiente para pautar habitação, num país com um déficit habitacional de quase 6 milhões de moradias [2] o que mais precisa acontecer para olharmos com atenção para esse problema?
Notas
[1] Segundo a pesquisa da CAU/BR, realizada com 2.419 pessoas em todo o Brasil, 54% da população economicamente ativa já construiu ou reformou imóvel residencial ou comercial. Desse grupo, 85,40% fizeram o serviço por conta própria ou com pedreiros e mestres de obras, amigos e parentes. Apenas 14,60% contratou arquitetos ou engenheiros. Fonte
[2] Material disponível em: http://fjp.mg.gov.br/wp-content/uploads/2020/12/04.03_Cartilha_DH_compressed.pdf