Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

A naturalização do racismo nos anos iniciais do ensino fundamental: entre os privilégios e as ausências


Por Redação

O combate ao racismo só surtirá efeito quando todas as suas manifestações foram combatidas com rigor, e, principalmente, as "sutis" do cotidiano: a naturalização do racismo entre crianças dos anos iniciais do ensino fundamental causa danos a formação da autoestima, na aprendizagem e no acesso e permanência na escola com direito de fato a aprendizagem. Não basta apenas a criação de leis: o combate se dá pela formação de professoras efetivamente comprometidas com a educação antirracista.

 Foto: arquivo pessoal.

Rosangela Aparecida Hilário, Pós- doutora em Educação (FEUSP). Líder do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde.  Membra da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, Membra do GAEPE/Igualdade Racial

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Arthur Paku Ottoni Balbani, Advogado. Membro do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde. Mestrando no Programa de Direito, subárea Direito do Estado, área de concentração Teoria do Direito (FD-USP, Largo São Francisco). Membro do GA. Integrante do Instituto Articule no projeto dos Gabinetes de Articulação para Efetividade da Política em Educação/GAEPE. Colaborador no Instituto Valdênia Menegon

Miriam Rodrigues Pedrosa, Graduada em Física pelo IFRO e em Tecnologia em Sistemas para Internet pela Faculdade de Tecnologia São Mateus. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde/Certificado pela UNIR. Professora de Física da SEDUC/Rondônia. Membra do Grupo "Mulheres em Steam" da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

Nesse ano, a Lei 10.639/2003 completa 20 anos. Em tese, é uma legislação que objetiva trazer para as rotinas escolares a memória, a história, a cultura e a história do povo preto, parte importante da história do Brasil negligenciado em livros didáticos e na própria organização de planejamentos escolares e formação de professoras.  De início, poucos estados criaram projetos pioneiros que pareciam que iam equiparar o jogo das oportunidades por meio do conhecimento formal: o estado de São Paulo criou o Projeto "A Cor da Cultura",que articulava diferentes mídias a favor do (re) conhecimento do quanto a cultura africana inspirou a fé, a gastronomia, a música, a filosofia, a mitologia brasileira. Mas, passado o primeiro momento de ânimo com a nova legislação e a perspectiva de que o jogo finalmente viraria a favor de todas as pessoas não pertencentes ao padrão "universal" de ser humano, retornamos ao estágio anterior de "lei que não pegou"

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O que se percebe após quatro anos de um governo de extrema direita é que os direitos das pessoas negras foram sequestrados e as crianças negras voltaram a ser silenciadas, sua cultura apequenada e sua fé demonizada todos os dias em escolas públicas e livros didáticos do Brasil afora: crianças brancas gordinhas e que usam óculos e são perturbadas por colegas da mesma idade são protegidas pela escola, seus detratores penalizados e os pais convidados a comparecer a escola para receber um pedido formal de desculpas.

Crianças negras que praticam o candomblé e precisam cobrir a cabeça em função dos preceitos de sua fé são atormentadas com apelidos cruéis, inclusive, a partir das próprias professoras e o destrato entendido como "brincadeira de criança". Meninas Pretas que são objetificadas desde muito cedo e cujos cabelos são tocados sem autorização quando comparecem nas instâncias adequadas para registrar a reclamação são tratadas como agressivas, chatas e que não compreendem "uma brincadeira", admiração.

Será? Ou, estaria naturalizado e consagrado o racismo nas rotinas escolares por meio de palavras, brincadeiras e ações? Qual criança preta já não se sentiu desconfortável ao ser confrontada com a lista negra, livro negro da diretora, inveja branca como sinônimo de inveja "boa" como se isso fosse possível, nuvem negra sobre a cabeça sobre um dia ruim, serviço de preto ou deixou de ser escolhida para brincadeiras, para noiva da quadrilha ou na lista das mais "bonitas".

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Meninos e adolescentes negros, sobretudo os pretos retintos, já no início do período letivo são titulados como problemáticos, quando na verdade, em grande medida, são pobres: chegam atrasados em função de serem responsáveis por irmãos mais novos ou serem eles próprios os irmãos mais novos e, portanto, precisam organizar suas rotinas de acordo com outras crianças, de modo que suas histórias, que envolvem ausências e constantes dores, não são desejáveis nos ambientes escolares.

Além disso, essas crianças, ao contrário dos descendentes de espanhóis, italianos, japoneses têm a história de sua ancestralidade contada a partir do sequestro na África, da dor, da tortura: seus antepassados não são louvados, suas conquistas são apagadas e seu passado é deliberadamente esquecido. Depois, ao final de um percurso assimétrico não coberto por políticas públicas amplamente burocratizadas, essas crianças são descritas como "evadidas" ou como aquelas que não atingem a "meritocracia" necessária para alcançar postos de poder e autoridade que lhes permitam sonhar com equidade para assunção aos espaços de autoridade e decisão, seja para eles próprios, seja para todo o seu povo.

A ideia inicial desta reflexão era analisarmos a relação entre políticas de promoção de igualdade racial, produção de material didático para as rotinas escolares e a produção disponível para consumo nas mídias e plataformas de streamings em relação a representatividade de mais de 50% da população brasileira. Um esboço preliminar desta reflexão chegou a ser redigido. Contudo, vislumbramos a necessidade de dar um passo atrás e abordar a temática que está por detrás daquela reflexão: o racismo indireto (vicarious racism) sofrido por crianças e adolescentes pretos e o impacto por eles sofrido ao longo de suas vidas e a insuficiência das leis brasileiras para combatê-lo.

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O racismo indireto pode ser conceituado como a utilização da norma gramatical e de práticas do cotidiano para perpetuar práticas racistas, mediante a relação de associações subjetivas entre um determinado signo linguístico ou situação fática (atrelados a determinado grupo social) e uma característica negativa que se pretende imputar ao grupo em questão - é o caso do uso das expressões "denegrir", "ovelha negra", "chuta que é macumba" para se referir sempre a um fato negativo -, bem como a construção de imaginários coletivos que deixe em segundo plano o grupo social que se pretende atingir - como a supressão de protagonistas negros e negras de séries de televisão.

Em uma primeira análise, pode-se até mesmo afirmar que essas práticas não possuem qualquer impacto na vida de crianças e adolescentes; contudo, estudos realizados nos Estados Unidos já demonstraram que o racismo indireto perpetua o racismo estrutural e impacta no desenvolvimento das crianças pretas, ameaçando seu senso de pertencimento social e lhe projetando um desamparo e minua valia que impede a sua plena inclusão.

O questionamento que fazemos é: não seria necessário um projeto de combate ao racismo que alcançasse todos os espaços? Nossas crianças não teriam que estar protegidas por uma legislação que equiparasse racismo a bullying e previsse penalidades educativas para evitar que o racismo se prolifere?

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O direito brasileiro tem se movimentado, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, e especialmente no período de 2003 a 2015, a buscar mecanismos efetivos de combate ao racismo - não só do povo preto, mas também o religioso. Vimos, nesse período, a título de exemplo, o reconhecimento da imprescritibilidade do crime de racismo (a condenação pode ser obtida a qualquer tempo), o reconhecimento da validade dos casamentos realizados em templos religiosos de matriz africana (e não apenas nos templos cristãos), a criação de políticas de ação afirmativa para o Ensino Superior e a equiparação entre o tratamento jurídico dos crimes de injúria racial e racismo.

Todas essas conquistas devem ser celebradas - afinal, todas elas criaram mecanismos de ação importantes para reprimir a discriminação do povo preto e tentar promover a equidade, sendo sempre acompanhadas tais medidas de uma sanção. Porém, nem todas as leis editadas nesse período merecem a mesma celebração. Sem uma sanção efetiva para quem descumpra a lei - ou seja, uma consequência expressa que repercuta na esfera jurídica de direitos do "ofensor" da lei -, políticas públicas bem-intencionadas podem se tornar letra morta - contribuindo para a manutenção das práticas indiretamente racistas. E, consequentemente, mais distante se estará do começo de um capítulo inclusivo e equânime da história nacional.

A falta de mecanismos jurídicos para coibir o racismo indireto também é digna de nota, principalmente no âmbito educacional. Neste ponto, voltamos à Lei n° 10.639/03 e ao propósito que orientou a sua criação: evidenciar que a verdadeira história do povo preto é tão bonita de ser contada como aquela de todas as outras grandes civilizações do mundo e que aquilo que é feito hoje - de limitar essa história a apenas um capítulo - é um equívoco tão grande como limitar a história da Itália aos anos do fascismo de Mussolini.

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Compreendendo esse cenário e a sua proposta de valorizar a história, a cultura e a memória do povo preto pode reduzir a incidência do racismo indireto, pois se permitiria a ressignificação (e mesmo a supressão) de muitas expressões racistas do cotidiano e evitaria a marginalização da história do povo preto.

Tudo isso é parece fácil na narrativa, no texto e na teoria, porém, na prática, nada aconteceu - até mesmo porque não existem sanções para o descumprimento desta lei. Não se tem (até o momento) nenhuma proposta efetiva de desenvolvimento de uma educação antirracista no ambiente escolar, e tampouco a reestruturação da formação de professores para que ela própria se torne antirracista - rememorando, aqui, que a própria escola é por excelência um ambiente racista, ante o seu reflexo das estruturas de nossa sociedade.

Precisamos, urgentemente, de um plano concreto de materialização e implementação dos reais objetivos da Lei n° 10.639/03 e de uma reestruturação da formação de nossos professores. É necessário dar um basta na crença de que simplesmente a criação de leis a esmo permitirá combater em definitivo o racismo - seja ele direto ou indireto, na escola ou fora dela -, pois leis temos de monte, falta dar a elas concretude material e aplicabilidade. Como bem aponta Nilma Lino Gomes, é de longa data - desde a década de 1950 - as críticas sobre os discursos racistas nos livros didáticos e paradidáticos e o impacto que estes discursos têm causado na sociedade brasileira, a evidenciar que, embora muitos governos tenham passado e muitas leis sido editadas, até hoje não houve preocupação efetiva em criar ações concretas para erradicar todas as práticas racistas (e punir seus agentes praticantes) dentro da escola.

Assim, o que as crianças pretas precisam, como de resto todas as crianças que não pertencem a categoria da "criança universal", é de uma escola que lhes restitua o direito de se orgulhar de sua ancestralidade, conhecer sua memória e história e se sentir parte da formação cultural e social brasileira. A diversidade étnica e cultural precisa deixar de ser um fardo, uma mácula que envergonha,para ser valor a ser agregado à nossa identidade como nação.

Referência

HEARD-GARRIS, N. J. et al. Transmitting Trauma: a systematic review of vicarious racism and child health. Social Science & Medicine, p. 01-11, 2017.

O combate ao racismo só surtirá efeito quando todas as suas manifestações foram combatidas com rigor, e, principalmente, as "sutis" do cotidiano: a naturalização do racismo entre crianças dos anos iniciais do ensino fundamental causa danos a formação da autoestima, na aprendizagem e no acesso e permanência na escola com direito de fato a aprendizagem. Não basta apenas a criação de leis: o combate se dá pela formação de professoras efetivamente comprometidas com a educação antirracista.

 Foto: arquivo pessoal.

Rosangela Aparecida Hilário, Pós- doutora em Educação (FEUSP). Líder do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde.  Membra da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, Membra do GAEPE/Igualdade Racial

Arthur Paku Ottoni Balbani, Advogado. Membro do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde. Mestrando no Programa de Direito, subárea Direito do Estado, área de concentração Teoria do Direito (FD-USP, Largo São Francisco). Membro do GA. Integrante do Instituto Articule no projeto dos Gabinetes de Articulação para Efetividade da Política em Educação/GAEPE. Colaborador no Instituto Valdênia Menegon

Miriam Rodrigues Pedrosa, Graduada em Física pelo IFRO e em Tecnologia em Sistemas para Internet pela Faculdade de Tecnologia São Mateus. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde/Certificado pela UNIR. Professora de Física da SEDUC/Rondônia. Membra do Grupo "Mulheres em Steam" da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

Nesse ano, a Lei 10.639/2003 completa 20 anos. Em tese, é uma legislação que objetiva trazer para as rotinas escolares a memória, a história, a cultura e a história do povo preto, parte importante da história do Brasil negligenciado em livros didáticos e na própria organização de planejamentos escolares e formação de professoras.  De início, poucos estados criaram projetos pioneiros que pareciam que iam equiparar o jogo das oportunidades por meio do conhecimento formal: o estado de São Paulo criou o Projeto "A Cor da Cultura",que articulava diferentes mídias a favor do (re) conhecimento do quanto a cultura africana inspirou a fé, a gastronomia, a música, a filosofia, a mitologia brasileira. Mas, passado o primeiro momento de ânimo com a nova legislação e a perspectiva de que o jogo finalmente viraria a favor de todas as pessoas não pertencentes ao padrão "universal" de ser humano, retornamos ao estágio anterior de "lei que não pegou"

O que se percebe após quatro anos de um governo de extrema direita é que os direitos das pessoas negras foram sequestrados e as crianças negras voltaram a ser silenciadas, sua cultura apequenada e sua fé demonizada todos os dias em escolas públicas e livros didáticos do Brasil afora: crianças brancas gordinhas e que usam óculos e são perturbadas por colegas da mesma idade são protegidas pela escola, seus detratores penalizados e os pais convidados a comparecer a escola para receber um pedido formal de desculpas.

Crianças negras que praticam o candomblé e precisam cobrir a cabeça em função dos preceitos de sua fé são atormentadas com apelidos cruéis, inclusive, a partir das próprias professoras e o destrato entendido como "brincadeira de criança". Meninas Pretas que são objetificadas desde muito cedo e cujos cabelos são tocados sem autorização quando comparecem nas instâncias adequadas para registrar a reclamação são tratadas como agressivas, chatas e que não compreendem "uma brincadeira", admiração.

Será? Ou, estaria naturalizado e consagrado o racismo nas rotinas escolares por meio de palavras, brincadeiras e ações? Qual criança preta já não se sentiu desconfortável ao ser confrontada com a lista negra, livro negro da diretora, inveja branca como sinônimo de inveja "boa" como se isso fosse possível, nuvem negra sobre a cabeça sobre um dia ruim, serviço de preto ou deixou de ser escolhida para brincadeiras, para noiva da quadrilha ou na lista das mais "bonitas".

Meninos e adolescentes negros, sobretudo os pretos retintos, já no início do período letivo são titulados como problemáticos, quando na verdade, em grande medida, são pobres: chegam atrasados em função de serem responsáveis por irmãos mais novos ou serem eles próprios os irmãos mais novos e, portanto, precisam organizar suas rotinas de acordo com outras crianças, de modo que suas histórias, que envolvem ausências e constantes dores, não são desejáveis nos ambientes escolares.

Além disso, essas crianças, ao contrário dos descendentes de espanhóis, italianos, japoneses têm a história de sua ancestralidade contada a partir do sequestro na África, da dor, da tortura: seus antepassados não são louvados, suas conquistas são apagadas e seu passado é deliberadamente esquecido. Depois, ao final de um percurso assimétrico não coberto por políticas públicas amplamente burocratizadas, essas crianças são descritas como "evadidas" ou como aquelas que não atingem a "meritocracia" necessária para alcançar postos de poder e autoridade que lhes permitam sonhar com equidade para assunção aos espaços de autoridade e decisão, seja para eles próprios, seja para todo o seu povo.

A ideia inicial desta reflexão era analisarmos a relação entre políticas de promoção de igualdade racial, produção de material didático para as rotinas escolares e a produção disponível para consumo nas mídias e plataformas de streamings em relação a representatividade de mais de 50% da população brasileira. Um esboço preliminar desta reflexão chegou a ser redigido. Contudo, vislumbramos a necessidade de dar um passo atrás e abordar a temática que está por detrás daquela reflexão: o racismo indireto (vicarious racism) sofrido por crianças e adolescentes pretos e o impacto por eles sofrido ao longo de suas vidas e a insuficiência das leis brasileiras para combatê-lo.

O racismo indireto pode ser conceituado como a utilização da norma gramatical e de práticas do cotidiano para perpetuar práticas racistas, mediante a relação de associações subjetivas entre um determinado signo linguístico ou situação fática (atrelados a determinado grupo social) e uma característica negativa que se pretende imputar ao grupo em questão - é o caso do uso das expressões "denegrir", "ovelha negra", "chuta que é macumba" para se referir sempre a um fato negativo -, bem como a construção de imaginários coletivos que deixe em segundo plano o grupo social que se pretende atingir - como a supressão de protagonistas negros e negras de séries de televisão.

Em uma primeira análise, pode-se até mesmo afirmar que essas práticas não possuem qualquer impacto na vida de crianças e adolescentes; contudo, estudos realizados nos Estados Unidos já demonstraram que o racismo indireto perpetua o racismo estrutural e impacta no desenvolvimento das crianças pretas, ameaçando seu senso de pertencimento social e lhe projetando um desamparo e minua valia que impede a sua plena inclusão.

O questionamento que fazemos é: não seria necessário um projeto de combate ao racismo que alcançasse todos os espaços? Nossas crianças não teriam que estar protegidas por uma legislação que equiparasse racismo a bullying e previsse penalidades educativas para evitar que o racismo se prolifere?

O direito brasileiro tem se movimentado, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, e especialmente no período de 2003 a 2015, a buscar mecanismos efetivos de combate ao racismo - não só do povo preto, mas também o religioso. Vimos, nesse período, a título de exemplo, o reconhecimento da imprescritibilidade do crime de racismo (a condenação pode ser obtida a qualquer tempo), o reconhecimento da validade dos casamentos realizados em templos religiosos de matriz africana (e não apenas nos templos cristãos), a criação de políticas de ação afirmativa para o Ensino Superior e a equiparação entre o tratamento jurídico dos crimes de injúria racial e racismo.

Todas essas conquistas devem ser celebradas - afinal, todas elas criaram mecanismos de ação importantes para reprimir a discriminação do povo preto e tentar promover a equidade, sendo sempre acompanhadas tais medidas de uma sanção. Porém, nem todas as leis editadas nesse período merecem a mesma celebração. Sem uma sanção efetiva para quem descumpra a lei - ou seja, uma consequência expressa que repercuta na esfera jurídica de direitos do "ofensor" da lei -, políticas públicas bem-intencionadas podem se tornar letra morta - contribuindo para a manutenção das práticas indiretamente racistas. E, consequentemente, mais distante se estará do começo de um capítulo inclusivo e equânime da história nacional.

A falta de mecanismos jurídicos para coibir o racismo indireto também é digna de nota, principalmente no âmbito educacional. Neste ponto, voltamos à Lei n° 10.639/03 e ao propósito que orientou a sua criação: evidenciar que a verdadeira história do povo preto é tão bonita de ser contada como aquela de todas as outras grandes civilizações do mundo e que aquilo que é feito hoje - de limitar essa história a apenas um capítulo - é um equívoco tão grande como limitar a história da Itália aos anos do fascismo de Mussolini.

Compreendendo esse cenário e a sua proposta de valorizar a história, a cultura e a memória do povo preto pode reduzir a incidência do racismo indireto, pois se permitiria a ressignificação (e mesmo a supressão) de muitas expressões racistas do cotidiano e evitaria a marginalização da história do povo preto.

Tudo isso é parece fácil na narrativa, no texto e na teoria, porém, na prática, nada aconteceu - até mesmo porque não existem sanções para o descumprimento desta lei. Não se tem (até o momento) nenhuma proposta efetiva de desenvolvimento de uma educação antirracista no ambiente escolar, e tampouco a reestruturação da formação de professores para que ela própria se torne antirracista - rememorando, aqui, que a própria escola é por excelência um ambiente racista, ante o seu reflexo das estruturas de nossa sociedade.

Precisamos, urgentemente, de um plano concreto de materialização e implementação dos reais objetivos da Lei n° 10.639/03 e de uma reestruturação da formação de nossos professores. É necessário dar um basta na crença de que simplesmente a criação de leis a esmo permitirá combater em definitivo o racismo - seja ele direto ou indireto, na escola ou fora dela -, pois leis temos de monte, falta dar a elas concretude material e aplicabilidade. Como bem aponta Nilma Lino Gomes, é de longa data - desde a década de 1950 - as críticas sobre os discursos racistas nos livros didáticos e paradidáticos e o impacto que estes discursos têm causado na sociedade brasileira, a evidenciar que, embora muitos governos tenham passado e muitas leis sido editadas, até hoje não houve preocupação efetiva em criar ações concretas para erradicar todas as práticas racistas (e punir seus agentes praticantes) dentro da escola.

Assim, o que as crianças pretas precisam, como de resto todas as crianças que não pertencem a categoria da "criança universal", é de uma escola que lhes restitua o direito de se orgulhar de sua ancestralidade, conhecer sua memória e história e se sentir parte da formação cultural e social brasileira. A diversidade étnica e cultural precisa deixar de ser um fardo, uma mácula que envergonha,para ser valor a ser agregado à nossa identidade como nação.

Referência

HEARD-GARRIS, N. J. et al. Transmitting Trauma: a systematic review of vicarious racism and child health. Social Science & Medicine, p. 01-11, 2017.

O combate ao racismo só surtirá efeito quando todas as suas manifestações foram combatidas com rigor, e, principalmente, as "sutis" do cotidiano: a naturalização do racismo entre crianças dos anos iniciais do ensino fundamental causa danos a formação da autoestima, na aprendizagem e no acesso e permanência na escola com direito de fato a aprendizagem. Não basta apenas a criação de leis: o combate se dá pela formação de professoras efetivamente comprometidas com a educação antirracista.

 Foto: arquivo pessoal.

Rosangela Aparecida Hilário, Pós- doutora em Educação (FEUSP). Líder do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde.  Membra da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, Membra do GAEPE/Igualdade Racial

Arthur Paku Ottoni Balbani, Advogado. Membro do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde. Mestrando no Programa de Direito, subárea Direito do Estado, área de concentração Teoria do Direito (FD-USP, Largo São Francisco). Membro do GA. Integrante do Instituto Articule no projeto dos Gabinetes de Articulação para Efetividade da Política em Educação/GAEPE. Colaborador no Instituto Valdênia Menegon

Miriam Rodrigues Pedrosa, Graduada em Física pelo IFRO e em Tecnologia em Sistemas para Internet pela Faculdade de Tecnologia São Mateus. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde/Certificado pela UNIR. Professora de Física da SEDUC/Rondônia. Membra do Grupo "Mulheres em Steam" da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas

Nesse ano, a Lei 10.639/2003 completa 20 anos. Em tese, é uma legislação que objetiva trazer para as rotinas escolares a memória, a história, a cultura e a história do povo preto, parte importante da história do Brasil negligenciado em livros didáticos e na própria organização de planejamentos escolares e formação de professoras.  De início, poucos estados criaram projetos pioneiros que pareciam que iam equiparar o jogo das oportunidades por meio do conhecimento formal: o estado de São Paulo criou o Projeto "A Cor da Cultura",que articulava diferentes mídias a favor do (re) conhecimento do quanto a cultura africana inspirou a fé, a gastronomia, a música, a filosofia, a mitologia brasileira. Mas, passado o primeiro momento de ânimo com a nova legislação e a perspectiva de que o jogo finalmente viraria a favor de todas as pessoas não pertencentes ao padrão "universal" de ser humano, retornamos ao estágio anterior de "lei que não pegou"

O que se percebe após quatro anos de um governo de extrema direita é que os direitos das pessoas negras foram sequestrados e as crianças negras voltaram a ser silenciadas, sua cultura apequenada e sua fé demonizada todos os dias em escolas públicas e livros didáticos do Brasil afora: crianças brancas gordinhas e que usam óculos e são perturbadas por colegas da mesma idade são protegidas pela escola, seus detratores penalizados e os pais convidados a comparecer a escola para receber um pedido formal de desculpas.

Crianças negras que praticam o candomblé e precisam cobrir a cabeça em função dos preceitos de sua fé são atormentadas com apelidos cruéis, inclusive, a partir das próprias professoras e o destrato entendido como "brincadeira de criança". Meninas Pretas que são objetificadas desde muito cedo e cujos cabelos são tocados sem autorização quando comparecem nas instâncias adequadas para registrar a reclamação são tratadas como agressivas, chatas e que não compreendem "uma brincadeira", admiração.

Será? Ou, estaria naturalizado e consagrado o racismo nas rotinas escolares por meio de palavras, brincadeiras e ações? Qual criança preta já não se sentiu desconfortável ao ser confrontada com a lista negra, livro negro da diretora, inveja branca como sinônimo de inveja "boa" como se isso fosse possível, nuvem negra sobre a cabeça sobre um dia ruim, serviço de preto ou deixou de ser escolhida para brincadeiras, para noiva da quadrilha ou na lista das mais "bonitas".

Meninos e adolescentes negros, sobretudo os pretos retintos, já no início do período letivo são titulados como problemáticos, quando na verdade, em grande medida, são pobres: chegam atrasados em função de serem responsáveis por irmãos mais novos ou serem eles próprios os irmãos mais novos e, portanto, precisam organizar suas rotinas de acordo com outras crianças, de modo que suas histórias, que envolvem ausências e constantes dores, não são desejáveis nos ambientes escolares.

Além disso, essas crianças, ao contrário dos descendentes de espanhóis, italianos, japoneses têm a história de sua ancestralidade contada a partir do sequestro na África, da dor, da tortura: seus antepassados não são louvados, suas conquistas são apagadas e seu passado é deliberadamente esquecido. Depois, ao final de um percurso assimétrico não coberto por políticas públicas amplamente burocratizadas, essas crianças são descritas como "evadidas" ou como aquelas que não atingem a "meritocracia" necessária para alcançar postos de poder e autoridade que lhes permitam sonhar com equidade para assunção aos espaços de autoridade e decisão, seja para eles próprios, seja para todo o seu povo.

A ideia inicial desta reflexão era analisarmos a relação entre políticas de promoção de igualdade racial, produção de material didático para as rotinas escolares e a produção disponível para consumo nas mídias e plataformas de streamings em relação a representatividade de mais de 50% da população brasileira. Um esboço preliminar desta reflexão chegou a ser redigido. Contudo, vislumbramos a necessidade de dar um passo atrás e abordar a temática que está por detrás daquela reflexão: o racismo indireto (vicarious racism) sofrido por crianças e adolescentes pretos e o impacto por eles sofrido ao longo de suas vidas e a insuficiência das leis brasileiras para combatê-lo.

O racismo indireto pode ser conceituado como a utilização da norma gramatical e de práticas do cotidiano para perpetuar práticas racistas, mediante a relação de associações subjetivas entre um determinado signo linguístico ou situação fática (atrelados a determinado grupo social) e uma característica negativa que se pretende imputar ao grupo em questão - é o caso do uso das expressões "denegrir", "ovelha negra", "chuta que é macumba" para se referir sempre a um fato negativo -, bem como a construção de imaginários coletivos que deixe em segundo plano o grupo social que se pretende atingir - como a supressão de protagonistas negros e negras de séries de televisão.

Em uma primeira análise, pode-se até mesmo afirmar que essas práticas não possuem qualquer impacto na vida de crianças e adolescentes; contudo, estudos realizados nos Estados Unidos já demonstraram que o racismo indireto perpetua o racismo estrutural e impacta no desenvolvimento das crianças pretas, ameaçando seu senso de pertencimento social e lhe projetando um desamparo e minua valia que impede a sua plena inclusão.

O questionamento que fazemos é: não seria necessário um projeto de combate ao racismo que alcançasse todos os espaços? Nossas crianças não teriam que estar protegidas por uma legislação que equiparasse racismo a bullying e previsse penalidades educativas para evitar que o racismo se prolifere?

O direito brasileiro tem se movimentado, desde a entrada em vigor da Constituição de 1988, e especialmente no período de 2003 a 2015, a buscar mecanismos efetivos de combate ao racismo - não só do povo preto, mas também o religioso. Vimos, nesse período, a título de exemplo, o reconhecimento da imprescritibilidade do crime de racismo (a condenação pode ser obtida a qualquer tempo), o reconhecimento da validade dos casamentos realizados em templos religiosos de matriz africana (e não apenas nos templos cristãos), a criação de políticas de ação afirmativa para o Ensino Superior e a equiparação entre o tratamento jurídico dos crimes de injúria racial e racismo.

Todas essas conquistas devem ser celebradas - afinal, todas elas criaram mecanismos de ação importantes para reprimir a discriminação do povo preto e tentar promover a equidade, sendo sempre acompanhadas tais medidas de uma sanção. Porém, nem todas as leis editadas nesse período merecem a mesma celebração. Sem uma sanção efetiva para quem descumpra a lei - ou seja, uma consequência expressa que repercuta na esfera jurídica de direitos do "ofensor" da lei -, políticas públicas bem-intencionadas podem se tornar letra morta - contribuindo para a manutenção das práticas indiretamente racistas. E, consequentemente, mais distante se estará do começo de um capítulo inclusivo e equânime da história nacional.

A falta de mecanismos jurídicos para coibir o racismo indireto também é digna de nota, principalmente no âmbito educacional. Neste ponto, voltamos à Lei n° 10.639/03 e ao propósito que orientou a sua criação: evidenciar que a verdadeira história do povo preto é tão bonita de ser contada como aquela de todas as outras grandes civilizações do mundo e que aquilo que é feito hoje - de limitar essa história a apenas um capítulo - é um equívoco tão grande como limitar a história da Itália aos anos do fascismo de Mussolini.

Compreendendo esse cenário e a sua proposta de valorizar a história, a cultura e a memória do povo preto pode reduzir a incidência do racismo indireto, pois se permitiria a ressignificação (e mesmo a supressão) de muitas expressões racistas do cotidiano e evitaria a marginalização da história do povo preto.

Tudo isso é parece fácil na narrativa, no texto e na teoria, porém, na prática, nada aconteceu - até mesmo porque não existem sanções para o descumprimento desta lei. Não se tem (até o momento) nenhuma proposta efetiva de desenvolvimento de uma educação antirracista no ambiente escolar, e tampouco a reestruturação da formação de professores para que ela própria se torne antirracista - rememorando, aqui, que a própria escola é por excelência um ambiente racista, ante o seu reflexo das estruturas de nossa sociedade.

Precisamos, urgentemente, de um plano concreto de materialização e implementação dos reais objetivos da Lei n° 10.639/03 e de uma reestruturação da formação de nossos professores. É necessário dar um basta na crença de que simplesmente a criação de leis a esmo permitirá combater em definitivo o racismo - seja ele direto ou indireto, na escola ou fora dela -, pois leis temos de monte, falta dar a elas concretude material e aplicabilidade. Como bem aponta Nilma Lino Gomes, é de longa data - desde a década de 1950 - as críticas sobre os discursos racistas nos livros didáticos e paradidáticos e o impacto que estes discursos têm causado na sociedade brasileira, a evidenciar que, embora muitos governos tenham passado e muitas leis sido editadas, até hoje não houve preocupação efetiva em criar ações concretas para erradicar todas as práticas racistas (e punir seus agentes praticantes) dentro da escola.

Assim, o que as crianças pretas precisam, como de resto todas as crianças que não pertencem a categoria da "criança universal", é de uma escola que lhes restitua o direito de se orgulhar de sua ancestralidade, conhecer sua memória e história e se sentir parte da formação cultural e social brasileira. A diversidade étnica e cultural precisa deixar de ser um fardo, uma mácula que envergonha,para ser valor a ser agregado à nossa identidade como nação.

Referência

HEARD-GARRIS, N. J. et al. Transmitting Trauma: a systematic review of vicarious racism and child health. Social Science & Medicine, p. 01-11, 2017.

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