Fabiano Rosa de Almeida, graduando em Administração Pública (FGV-EAESP)
Gabriel dos Santos Cabral Soares, graduando em Administração Pública (FGV-EAESP)
Gabriella da Silva Cerqueira, graduanda em Administração Pública (FGV-EAESP)
Luanda Ferraz de Andrade, graduanda em Administração Pública (FGV-EAESP)
Sabe-se que o serviço público é de suma importância para que o Estado atenda a seus objetivos oficiais, como previstos na Constituição de 1988. Todavia, reformas administrativas que implicam alterações nesses serviços explicitam tensões políticas e sociais e um tipo de relação entre o Executivo e Legislativo, que escancara déficits democráticos atuais, e isso não é diferente em nível subnacional.
Como exemplo, tem-se o processo de implementação da reforma administrativa através do projeto Lei Complementar (PLC) 26/21 no Estado de São Paulo. Em outubro de 2021, a proposta do governador João Dória (PSDB) obteve aprovação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) com 50 votos favoráveis e 29 votos contrários.
Entretanto, houve grande repercussão durante a votação, chamando atenção para aspectos como: a reforma tem vários pontos polêmicos, como a exclusão do adicional de insalubridade, mudanças na contratação temporária, por exemplo, o contrato com professores sem concurso, permitindo que a contratação aconteça em período de calamidade pública, greve que "perdure por tempo considerado não razoável", ou que seja ilegal aos olhos judiciais. Além disso, há a criação de uma bonificação por resultados, entre um ano e outro.
Entre os assuntos que causaram maior insatisfação está a própria tramitação formal do projeto, em relação à aprovação, por comissão especial[1], que não cumpriu com as etapas "normais" exigidas no processo legislativo[2]. Nesse caso, o processo de aprovação oferece vários elementos que assinalam como o governo atropelou mecanismos de participação pelo evidente açodamento. Não ouviu sindicalistas e servidores do Estado de São Paulo. Não passou pelas comissões que deveria ser submetido antes da votação em plenário, por ser direcionado pelo governador ao Legislativo a fim de que aprovasse o quanto antes.
Dentro de uma concepção ideal, como aduzia Robert Dahl (1997), a reforma conduzida pelo governo de São Paulo demonstra o déficit democrático e como a "velha política" se manifesta sempre que há necessidade de atropelar ritos que permitem o controle dos governantes pelos governados. Como sugere Dahl, a contestação pública se enquadra na capacidade e liberdade de grupos contestarem decisões, envolvendo percepção de participação e a abertura do sistema político para os cidadãos.
Dessa forma, dados os mecanismos de contestação pública, dentro do contexto das reformas implementadas, nota-se que houve o afastamento dos interesses de agentes públicos e da sociedade civil. A anomalia da disfunção exercida pelos processos no relacionamento entre os Poderes Executivo e Legislativo recai, nesse caso, sobre múltiplos atores, sobretudo sobre a sociedade e sua estrutura política.
A reforma como conduzida escancara uma lógica antagônica aos mecanismos de accountability vertical e horizontal, em que os males da relação pautadas por favoritismos entre Poderes se impõem perante a sociedade. Apesar do controle social estabelecido pelos paulistas ao eleger João Doria e os deputados da Alesp, formalizando assim um accountability vertical (O'DONNELL, 1998), a democracia não se esgota nas urnas. Todo o processo de discussão, formulação e implementação da reforma esbarra nos demais aspectos de controle democráticos e remonta os males presentes em todos os níveis de accountability.
A condução da reforma, pautada pela "emergencialidade" de aprovação, evidencia o desinteresse no estabelecimento de condutas estatais intertemporais, na medida em que não foram criados mecanismos para facilitar o debate e disseminar a informação sobre o acontecimento da votação da reforma administrativa por parte do poder público. Nesse contexto, a desvalorização do controle social via a omissão do Estado em relação às demandas e críticas públicas, sobretudo dos 'burocratas de rua', isto é, o escopo de burocratas e agentes públicos que trabalham diretamente em contato com o cidadão (LIPSKY, 1980), desagrega a sociedade do poder de contestação pública, afastando-a do quadro funcional democrático.
A partir desse caso concreto, permite-se afirmar que as relações de controle e os processos viciosos da coalizão governista na esfera estadual demonstram a ineficiência dos "checks and balances", suscitando abusos de poder e possíveis usos de clientelismos, o que não tem nada de "novo", e que por consequência enfraquece o sistema democrático. Na relação Executivo-Legislativo, que se infere da aprovação da reforma paulista, o atendimento das demandas seletivas dos Poderes envolvidos, em formulações de conotação político-partidária, não atendeu à finalidade de políticas públicas que deveriam inteiramente ser pensadas em favor da sociedade. Fica claro que a "velha política" assombra o funcionamento do Estado e o atendimento dos seus objetivos oficiais não raro se volta para satisfação de grupos ligados à estrutura de poder que sustenta o governo estadual.
Referências
DAHL, Robert A. Poliarquia: participação e oposição. 1ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
LIPSKY, Michael. Street-Level Bureaucracy: Dilemmas of the Individual in Public Service. EUA: Editora Russell Sage Foundation Publications, 1983.
O'DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e as novas poliarquias. Revista Lua Nova, 1998.
Notas
[1] Criada a fim de tratar dos projetos relativos a mais de três comissões de mérito, substituindo todas as outras comissões
[2] Vide Constituição do Estado de São Paulo e Regimento Interno da Alesp. Disponíveis em: https://www.al.sp.gov.br/