Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Alfabetização como um direito humano fundamental na agenda da reconstrução do Brasil: para não esquecer Magda Soares


Por REDAÇÃO
Atualização:

Alexsandro Santos, Diretor Presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, Professor do Mestrado e do Doutorado acadêmico em Educação e do Mestrado Profissional em Formação de Gestores Educacionais da Universidade Cidade de São Paulo. Vice-lider do Grupo de Pesquisa Implementação de Políticas Educacionais e Desigualdades. Pesquisador associado ao Centro de Pesquisa Transdisciplinar em Educação - CPTE e ao Núcleo de Estudos da Burocracia - NEB

Em 2015, Magda Soares concedeu uma entrevista à revista "Pesquisa FAPESP". Naquela oportunidade, Magda, então com 83 anos, havia sido contemplada com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia - maior distinção oferecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pela Fundação Conrado Wessel. O título escolhido para a entrevista não poderia ser mais emblemático: "O poder da linguagem".

Perguntada sobre sua relação de amizade com Paulo Freire e a convergência entre suas concepções sobre o ensino e a aprendizagem da língua escrita, Magda sinalizou que considerava seu trabalho assentado nos mesmos pressupostos e ideais do educador pernambucano e que ambos estavam comprometidos com a mesma utopia. Afirmou ainda que a grande contribuição de Paulo Freire foi a visão política da alfabetização e da luta contra o analfabetismo e arrematou dizendo: "a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem. É através dela que as classes dominantes dominam. É essa visão que Paulo Freire tinha e que eu tenho".

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Magda Soares nos deixou no dia 1 de janeiro de 2023. Quis o destino que este dia também entrasse para a história como o dia em que o Brasil conseguiu se desvencilhar de um governo que produziu retrocessos gigantescos na garantia do direito humano à alfabetização e ao letramento e na agenda urgente da equidade educacional, duas arenas nas quais a grande intelectual mineira desempenhou um persistente combate e entregou um legado inquestionável de docência, pesquisa, ativismo e contribuição para o desenho de políticas públicas.

O professor Francisco Soares fez questão de declarar este legado num testemunho pessoal. Utilizando sua página numa rede social, disse: "me lembrei do que a professora Magda me disse várias vezes. É nos primeiros anos da escola que as desigualdades sociais se cristalizam. Algumas crianças se alfabetizam adequadamente e caminham. Outras não se alfabetizam e começam a colecionar defasagem e exclusões, que logo se transformam em outras desigualdades".

Precisamos estar à altura desse compromisso que guiou a trajetória de Magda Soares e que enlaça sua luta à luta de Paulo Freire. Não há nenhum tipo de justificativa (moral, política, social, econômica) que possa sustentar o descaso com a garantia do direito humano à alfabetização que assistimos em nossa sociedade. Especialmente porque sabemos que, num país com o nosso padrão abissal de desigualdades, dominar a leitura e a escrita tem sido um privilégio poderoso para alguns e uma carência radical para outros. Também não há nenhum tipo de justificativa ética, epistemológica ou pedagógica para que se permita que o tema do direito à alfabetização e ao letramento siga capturado por enredamentos ideológicos espúrios que, apesar de suas sempre declaradas boas intenções, vagam distantes e confortáveis na guerra das vaidades de acadêmicos, de gestores públicos e outros atores que compõem e disputam o ecossistema da formulação e implementação de políticas educacionais.

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Políticas públicas orientadas para garantir que, efetivamente, todas as crianças brasileiras possam se alfabetizar na idade certa precisam ser uma prioridade real, convocando a colaboração cuidadosa e respeitosa das diferentes esferas de governo (União, Estados e Municípios), dos setores mais responsáveis da Universidade (aqueles que assumem uma perspectiva crítico-esperançosa dos problemas e dilemas dos nossos sistemas de ensino e aceitam o desafio de propor caminhos para sua superação) e das organizações sérias da sociedade civil - de diferentes tipos - que atuam no terceiro setor e no mundo fundacional e que produziram, nos últimos quarenta anos, importantes contribuições metodológicas para a formação de professores e para o trabalho didático em sala de aula. Também é preciso que essa colaboração se dê lastreada pela aposta na ciência e pela valorização das evidências disponíveis sobre os melhores caminhos para alfabetizar e letrar as crianças brasileiras, considerando os diversificados e desiguais contextos em que vivem e as características singulares das escolas em que estudam.

Se formos capazes de sustentar essas duas premissas, estaremos aptos a nos movimentar para, juntos, enfrentar quatro problemas centrais da agenda: a) as condições objetivas limitadoras da docência nas nossas classes de alfabetização (infraestrutura física e pedagógica, número de alunos por classe, tempo dedicado ao registro reflexivo e à formação permanente em serviço e número de horas de efetivo trabalho acadêmico dentro da sala de aula); b) as distensões curriculares que atrapalham o foco necessário no processo de alfabetização e letramento desde a educação infantil (incluindo a ideologia cansativa que opõe o direito ao brincar e o direito de se apropriar da língua escrita com a qual a criança pequena já interage na sociedade em que vive e em relação à qual alimenta profunda curiosidade); c) a formação inicial insuficiente e fragmentada presente no curso de pedagogia, na qual o processo de alfabetização disputa espaço com outras dezenas de - legítimas - preocupações e se perde na transmissão de informações teóricas e sociológicas genéricas, sem alcançar o necessário lastro na prática pedagógica que deverá ser realizada na sala de aula e d) uma leniência criminosa com as crianças que demonstram maior dificuldade nos seus esforços iniciais de alfabetização (as mais pobres, as crianças cujos pais não puderam concluir os estudos, as crianças negras e as crianças com deficiência).

Importa dizer que nossos resultados insuficientes em alfabetização não são consequência exclusiva dos equívocos produzidos nos últimos anos, quando o Ministério da Educação esteve em permanente crise institucional e sem qualquer liderança consistente para lhe dar rumo. A trajetória histórica demonstra que os avanços que vínhamos acumulando até 2018 eram importantes, mas alcançavam uma velocidade insuficiente para o tamanho do desafio que tínhamos. É preciso reconhecer que antes mesmo de 2018, o direito de se alfabetizar no Brasil variava drasticamente conforme a classe social, o território, o gênero e a identidade racial da criança e a maior parte da nossa classe política convivia com essa realidade sem que isso fosse escandaloso demais.

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Todavia, nos últimos quatro anos, o Ministério da Educação produziu uma política de alfabetização errática, que misturou uma tentativa mal ajambrada de reorientar a matriz epistemológica da área (em favor de abordagens calcadas numa visão restritiva de fonetização) com o apelo a recursos e instrumentos pseudocientíficos que prometiam "alfabetizar em tempo recorde" mediante a adoção de aplicativos e outras tecnologias. Com essas bases, a Política Nacional de Alfabetização proposta explicitou o que de resto estava presente na política educacional bolsonarista: muita espuma ideológica, flagrantes desperdícios de tempo e de recursos financeiros e uma distância gigantesca dos efetivos dilemas das escolas de educação básica. Ao mesmo tempo, a modelagem da colaboração com os estados e com os municípios (responsáveis diretos pelo ciclo de alfabetização) retrocedeu em termos técnicos e financeiros, prejudicando os municípios mais pobres, que contavam com menor capacidade técnica e financeira para manter suas próprias iniciativas de alfabetização.

Temos a oportunidade de corrigir a rota com a chegada de Camilo Santana à liderança da pasta. A equipe do novo ministro poderá aprender, retomar e ressignificar experiências exitosas do passado, como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA e o Pró-Letramento, nos quais o Ministério da Educação exerceu importante liderança política e construiu processos de colaboração financeira e técnica para a formação de professores nas redes públicas municipais e estaduais. Também poderá se valer das aprendizagens que emergiram do Programa de Alfabetização na Idade Certa - PAIC, do governo do Estado Ceará e de iniciativas correlatas realizadas em outras redes públicas do país.

Vale lembrar que o PAIC foi a principal inspiração para outra política importante do Ministério da Educação: o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, desenvolvido a partir de 2013 pela Secretaria de Educação Básica, sob a liderança de Cesar Callegari. Tal escolha não foi por acaso: já naquele momento, o Ceará vinha demonstrando, de modo consistente, um caminho interessante de política educacional com foco na alfabetização e os resultados são emblemáticos: suas escolas de ensino fundamental apresentam métricas de aprendizagem nas avaliações de larga escala substancialmente melhores do que a média do Brasil e os índices de sucesso no processo de alfabetização na idade certa são inquestionáveis até para seus críticos mais céticos.

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Retomar o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, atualizando seu formato e corrigindo os problemas identificados na primeira geração a partir de um conjunto robusto de pesquisas já produzidas parece ser o caminho mais produtivo e, ao que tudo indica, este foi o sinal já apresentado pelo Ministro. O PNAIC da primeira geração trouxe avanços importantes no que diz respeito à infraestrutura pedagógica das nossas classes de alfabetização, ampliando recursos disponíveis para o trabalho do professor e induzindo ações de reorganização dos agrupamentos de estudantes (turmas e classes) por parte dos sistemas municipais de ensino. Também trouxe avanços interessantes no tipo de indução para a formação inicial de professores nos cursos de licenciatura em Pedagogia e nas estratégias de formação permanente ou continuada. Evidentemente, é possível avançar nesse campo. Pesquisa conduzida pelo Laboratório de Educação em cinco municípios demonstrou lacunas e dificuldades na implementação do PNAIC nessas duas frentes e dificuldades para a institucionalização de aspectos centrais da política nas redes municipais que a ela aderiram.

Entretanto, as outras duas dimensões parecem ainda carecer de uma maior incidência política e de um compromisso mais corajoso. A primeira diz respeito ao enfrentamento da hipótese restritiva segundo a qual a educação infantil deve ser protegida de investimentos intencionais e sistemáticos para que as crianças aprendam a ler e escrever. A segunda está relacionada à superação da nossa repulsa em afirmar e perseguir metas objetivas de resultados educacionais, pactuadas com as escolas e com os educadores, que explicitem os padrões de desempenho aceitáveis no ciclo de alfabetização para cada criança, nos primeiros anos de escolarização.

No que tange à primeira dimensão, considero que é totalmente plausível articularmos o reconhecimento da especificidade e da singularidade da educação infantil - conquista importante do campo e primordial para o respeito às infâncias brasileiras como sujeitos de direitos - e a proposição de um conjunto de experiências formativas interessantes, engajadoras e poderosas que provoquem a apropriação progressiva das práticas de leitura e escrita e do sistema alfabético. Aliás, essa é uma diferença radical entre as crianças mais favorecidas da nossa sociedade e aquelas que vivem em contextos mais vulneráveis. Às primeiras, garantimos que a educação infantil seja um espaço que - entre outras possibilidades - oferece interações prazerosas, cuidadosas e estruturantes com a cultura escrita. Às últimas, em nome de 'protegê-las da escolarização precoce', restringimos as chances de uma aproximação curiosa e instigante com o ler e com o escrever.

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No que tange à segunda dimensão, considero que as metas de resultado educacional são métricas importantes para orientar políticas educacionais e para aumentar a superfície democrática que precisa presidir a relação entre estado e sociedade civil. O que não significa assumir uma perspectiva ingênua em relação aos seus poderes. Para que elas funcionem, de fato, a favor da melhoria da qualidade da oferta educativa, é preciso que elas sejam definidas a partir dos contextos reais (e desiguais) em que os educadores trabalham e considerando a íntima relação entre resultados, insumos e processos. É nesse sentido que o Plano Nacional de Educação (2014-2024) indicou o caminho de construção do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - Sinaeb, rejeitado tanto na gestão de Michel Temer quanto na gestão de Jair Bolsonaro. É essa a visão contemporânea mais justa sobre os processos de avaliação de qualidade em educação.

Não há bala de prata para resolver nossos dilemas no campo da alfabetização. Mas há caminhos já trilhados que podem nos ajudar a superar lacunas que já conhecemos e há um enorme potencial na concertação democrática que a frente ampla que venceu as eleições representa. Que saibamos aproveitar essa oportunidade para assumirmos a responsabilidade ética pelo presente e o futuro das nossas crianças e para honrar o legado e a memória de Magda Soares.

Alexsandro Santos, Diretor Presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, Professor do Mestrado e do Doutorado acadêmico em Educação e do Mestrado Profissional em Formação de Gestores Educacionais da Universidade Cidade de São Paulo. Vice-lider do Grupo de Pesquisa Implementação de Políticas Educacionais e Desigualdades. Pesquisador associado ao Centro de Pesquisa Transdisciplinar em Educação - CPTE e ao Núcleo de Estudos da Burocracia - NEB

Em 2015, Magda Soares concedeu uma entrevista à revista "Pesquisa FAPESP". Naquela oportunidade, Magda, então com 83 anos, havia sido contemplada com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia - maior distinção oferecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pela Fundação Conrado Wessel. O título escolhido para a entrevista não poderia ser mais emblemático: "O poder da linguagem".

Perguntada sobre sua relação de amizade com Paulo Freire e a convergência entre suas concepções sobre o ensino e a aprendizagem da língua escrita, Magda sinalizou que considerava seu trabalho assentado nos mesmos pressupostos e ideais do educador pernambucano e que ambos estavam comprometidos com a mesma utopia. Afirmou ainda que a grande contribuição de Paulo Freire foi a visão política da alfabetização e da luta contra o analfabetismo e arrematou dizendo: "a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem. É através dela que as classes dominantes dominam. É essa visão que Paulo Freire tinha e que eu tenho".

Magda Soares nos deixou no dia 1 de janeiro de 2023. Quis o destino que este dia também entrasse para a história como o dia em que o Brasil conseguiu se desvencilhar de um governo que produziu retrocessos gigantescos na garantia do direito humano à alfabetização e ao letramento e na agenda urgente da equidade educacional, duas arenas nas quais a grande intelectual mineira desempenhou um persistente combate e entregou um legado inquestionável de docência, pesquisa, ativismo e contribuição para o desenho de políticas públicas.

O professor Francisco Soares fez questão de declarar este legado num testemunho pessoal. Utilizando sua página numa rede social, disse: "me lembrei do que a professora Magda me disse várias vezes. É nos primeiros anos da escola que as desigualdades sociais se cristalizam. Algumas crianças se alfabetizam adequadamente e caminham. Outras não se alfabetizam e começam a colecionar defasagem e exclusões, que logo se transformam em outras desigualdades".

Precisamos estar à altura desse compromisso que guiou a trajetória de Magda Soares e que enlaça sua luta à luta de Paulo Freire. Não há nenhum tipo de justificativa (moral, política, social, econômica) que possa sustentar o descaso com a garantia do direito humano à alfabetização que assistimos em nossa sociedade. Especialmente porque sabemos que, num país com o nosso padrão abissal de desigualdades, dominar a leitura e a escrita tem sido um privilégio poderoso para alguns e uma carência radical para outros. Também não há nenhum tipo de justificativa ética, epistemológica ou pedagógica para que se permita que o tema do direito à alfabetização e ao letramento siga capturado por enredamentos ideológicos espúrios que, apesar de suas sempre declaradas boas intenções, vagam distantes e confortáveis na guerra das vaidades de acadêmicos, de gestores públicos e outros atores que compõem e disputam o ecossistema da formulação e implementação de políticas educacionais.

Políticas públicas orientadas para garantir que, efetivamente, todas as crianças brasileiras possam se alfabetizar na idade certa precisam ser uma prioridade real, convocando a colaboração cuidadosa e respeitosa das diferentes esferas de governo (União, Estados e Municípios), dos setores mais responsáveis da Universidade (aqueles que assumem uma perspectiva crítico-esperançosa dos problemas e dilemas dos nossos sistemas de ensino e aceitam o desafio de propor caminhos para sua superação) e das organizações sérias da sociedade civil - de diferentes tipos - que atuam no terceiro setor e no mundo fundacional e que produziram, nos últimos quarenta anos, importantes contribuições metodológicas para a formação de professores e para o trabalho didático em sala de aula. Também é preciso que essa colaboração se dê lastreada pela aposta na ciência e pela valorização das evidências disponíveis sobre os melhores caminhos para alfabetizar e letrar as crianças brasileiras, considerando os diversificados e desiguais contextos em que vivem e as características singulares das escolas em que estudam.

Se formos capazes de sustentar essas duas premissas, estaremos aptos a nos movimentar para, juntos, enfrentar quatro problemas centrais da agenda: a) as condições objetivas limitadoras da docência nas nossas classes de alfabetização (infraestrutura física e pedagógica, número de alunos por classe, tempo dedicado ao registro reflexivo e à formação permanente em serviço e número de horas de efetivo trabalho acadêmico dentro da sala de aula); b) as distensões curriculares que atrapalham o foco necessário no processo de alfabetização e letramento desde a educação infantil (incluindo a ideologia cansativa que opõe o direito ao brincar e o direito de se apropriar da língua escrita com a qual a criança pequena já interage na sociedade em que vive e em relação à qual alimenta profunda curiosidade); c) a formação inicial insuficiente e fragmentada presente no curso de pedagogia, na qual o processo de alfabetização disputa espaço com outras dezenas de - legítimas - preocupações e se perde na transmissão de informações teóricas e sociológicas genéricas, sem alcançar o necessário lastro na prática pedagógica que deverá ser realizada na sala de aula e d) uma leniência criminosa com as crianças que demonstram maior dificuldade nos seus esforços iniciais de alfabetização (as mais pobres, as crianças cujos pais não puderam concluir os estudos, as crianças negras e as crianças com deficiência).

Importa dizer que nossos resultados insuficientes em alfabetização não são consequência exclusiva dos equívocos produzidos nos últimos anos, quando o Ministério da Educação esteve em permanente crise institucional e sem qualquer liderança consistente para lhe dar rumo. A trajetória histórica demonstra que os avanços que vínhamos acumulando até 2018 eram importantes, mas alcançavam uma velocidade insuficiente para o tamanho do desafio que tínhamos. É preciso reconhecer que antes mesmo de 2018, o direito de se alfabetizar no Brasil variava drasticamente conforme a classe social, o território, o gênero e a identidade racial da criança e a maior parte da nossa classe política convivia com essa realidade sem que isso fosse escandaloso demais.

Todavia, nos últimos quatro anos, o Ministério da Educação produziu uma política de alfabetização errática, que misturou uma tentativa mal ajambrada de reorientar a matriz epistemológica da área (em favor de abordagens calcadas numa visão restritiva de fonetização) com o apelo a recursos e instrumentos pseudocientíficos que prometiam "alfabetizar em tempo recorde" mediante a adoção de aplicativos e outras tecnologias. Com essas bases, a Política Nacional de Alfabetização proposta explicitou o que de resto estava presente na política educacional bolsonarista: muita espuma ideológica, flagrantes desperdícios de tempo e de recursos financeiros e uma distância gigantesca dos efetivos dilemas das escolas de educação básica. Ao mesmo tempo, a modelagem da colaboração com os estados e com os municípios (responsáveis diretos pelo ciclo de alfabetização) retrocedeu em termos técnicos e financeiros, prejudicando os municípios mais pobres, que contavam com menor capacidade técnica e financeira para manter suas próprias iniciativas de alfabetização.

Temos a oportunidade de corrigir a rota com a chegada de Camilo Santana à liderança da pasta. A equipe do novo ministro poderá aprender, retomar e ressignificar experiências exitosas do passado, como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA e o Pró-Letramento, nos quais o Ministério da Educação exerceu importante liderança política e construiu processos de colaboração financeira e técnica para a formação de professores nas redes públicas municipais e estaduais. Também poderá se valer das aprendizagens que emergiram do Programa de Alfabetização na Idade Certa - PAIC, do governo do Estado Ceará e de iniciativas correlatas realizadas em outras redes públicas do país.

Vale lembrar que o PAIC foi a principal inspiração para outra política importante do Ministério da Educação: o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, desenvolvido a partir de 2013 pela Secretaria de Educação Básica, sob a liderança de Cesar Callegari. Tal escolha não foi por acaso: já naquele momento, o Ceará vinha demonstrando, de modo consistente, um caminho interessante de política educacional com foco na alfabetização e os resultados são emblemáticos: suas escolas de ensino fundamental apresentam métricas de aprendizagem nas avaliações de larga escala substancialmente melhores do que a média do Brasil e os índices de sucesso no processo de alfabetização na idade certa são inquestionáveis até para seus críticos mais céticos.

Retomar o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, atualizando seu formato e corrigindo os problemas identificados na primeira geração a partir de um conjunto robusto de pesquisas já produzidas parece ser o caminho mais produtivo e, ao que tudo indica, este foi o sinal já apresentado pelo Ministro. O PNAIC da primeira geração trouxe avanços importantes no que diz respeito à infraestrutura pedagógica das nossas classes de alfabetização, ampliando recursos disponíveis para o trabalho do professor e induzindo ações de reorganização dos agrupamentos de estudantes (turmas e classes) por parte dos sistemas municipais de ensino. Também trouxe avanços interessantes no tipo de indução para a formação inicial de professores nos cursos de licenciatura em Pedagogia e nas estratégias de formação permanente ou continuada. Evidentemente, é possível avançar nesse campo. Pesquisa conduzida pelo Laboratório de Educação em cinco municípios demonstrou lacunas e dificuldades na implementação do PNAIC nessas duas frentes e dificuldades para a institucionalização de aspectos centrais da política nas redes municipais que a ela aderiram.

Entretanto, as outras duas dimensões parecem ainda carecer de uma maior incidência política e de um compromisso mais corajoso. A primeira diz respeito ao enfrentamento da hipótese restritiva segundo a qual a educação infantil deve ser protegida de investimentos intencionais e sistemáticos para que as crianças aprendam a ler e escrever. A segunda está relacionada à superação da nossa repulsa em afirmar e perseguir metas objetivas de resultados educacionais, pactuadas com as escolas e com os educadores, que explicitem os padrões de desempenho aceitáveis no ciclo de alfabetização para cada criança, nos primeiros anos de escolarização.

No que tange à primeira dimensão, considero que é totalmente plausível articularmos o reconhecimento da especificidade e da singularidade da educação infantil - conquista importante do campo e primordial para o respeito às infâncias brasileiras como sujeitos de direitos - e a proposição de um conjunto de experiências formativas interessantes, engajadoras e poderosas que provoquem a apropriação progressiva das práticas de leitura e escrita e do sistema alfabético. Aliás, essa é uma diferença radical entre as crianças mais favorecidas da nossa sociedade e aquelas que vivem em contextos mais vulneráveis. Às primeiras, garantimos que a educação infantil seja um espaço que - entre outras possibilidades - oferece interações prazerosas, cuidadosas e estruturantes com a cultura escrita. Às últimas, em nome de 'protegê-las da escolarização precoce', restringimos as chances de uma aproximação curiosa e instigante com o ler e com o escrever.

No que tange à segunda dimensão, considero que as metas de resultado educacional são métricas importantes para orientar políticas educacionais e para aumentar a superfície democrática que precisa presidir a relação entre estado e sociedade civil. O que não significa assumir uma perspectiva ingênua em relação aos seus poderes. Para que elas funcionem, de fato, a favor da melhoria da qualidade da oferta educativa, é preciso que elas sejam definidas a partir dos contextos reais (e desiguais) em que os educadores trabalham e considerando a íntima relação entre resultados, insumos e processos. É nesse sentido que o Plano Nacional de Educação (2014-2024) indicou o caminho de construção do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - Sinaeb, rejeitado tanto na gestão de Michel Temer quanto na gestão de Jair Bolsonaro. É essa a visão contemporânea mais justa sobre os processos de avaliação de qualidade em educação.

Não há bala de prata para resolver nossos dilemas no campo da alfabetização. Mas há caminhos já trilhados que podem nos ajudar a superar lacunas que já conhecemos e há um enorme potencial na concertação democrática que a frente ampla que venceu as eleições representa. Que saibamos aproveitar essa oportunidade para assumirmos a responsabilidade ética pelo presente e o futuro das nossas crianças e para honrar o legado e a memória de Magda Soares.

Alexsandro Santos, Diretor Presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, Professor do Mestrado e do Doutorado acadêmico em Educação e do Mestrado Profissional em Formação de Gestores Educacionais da Universidade Cidade de São Paulo. Vice-lider do Grupo de Pesquisa Implementação de Políticas Educacionais e Desigualdades. Pesquisador associado ao Centro de Pesquisa Transdisciplinar em Educação - CPTE e ao Núcleo de Estudos da Burocracia - NEB

Em 2015, Magda Soares concedeu uma entrevista à revista "Pesquisa FAPESP". Naquela oportunidade, Magda, então com 83 anos, havia sido contemplada com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia - maior distinção oferecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pela Fundação Conrado Wessel. O título escolhido para a entrevista não poderia ser mais emblemático: "O poder da linguagem".

Perguntada sobre sua relação de amizade com Paulo Freire e a convergência entre suas concepções sobre o ensino e a aprendizagem da língua escrita, Magda sinalizou que considerava seu trabalho assentado nos mesmos pressupostos e ideais do educador pernambucano e que ambos estavam comprometidos com a mesma utopia. Afirmou ainda que a grande contribuição de Paulo Freire foi a visão política da alfabetização e da luta contra o analfabetismo e arrematou dizendo: "a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem. É através dela que as classes dominantes dominam. É essa visão que Paulo Freire tinha e que eu tenho".

Magda Soares nos deixou no dia 1 de janeiro de 2023. Quis o destino que este dia também entrasse para a história como o dia em que o Brasil conseguiu se desvencilhar de um governo que produziu retrocessos gigantescos na garantia do direito humano à alfabetização e ao letramento e na agenda urgente da equidade educacional, duas arenas nas quais a grande intelectual mineira desempenhou um persistente combate e entregou um legado inquestionável de docência, pesquisa, ativismo e contribuição para o desenho de políticas públicas.

O professor Francisco Soares fez questão de declarar este legado num testemunho pessoal. Utilizando sua página numa rede social, disse: "me lembrei do que a professora Magda me disse várias vezes. É nos primeiros anos da escola que as desigualdades sociais se cristalizam. Algumas crianças se alfabetizam adequadamente e caminham. Outras não se alfabetizam e começam a colecionar defasagem e exclusões, que logo se transformam em outras desigualdades".

Precisamos estar à altura desse compromisso que guiou a trajetória de Magda Soares e que enlaça sua luta à luta de Paulo Freire. Não há nenhum tipo de justificativa (moral, política, social, econômica) que possa sustentar o descaso com a garantia do direito humano à alfabetização que assistimos em nossa sociedade. Especialmente porque sabemos que, num país com o nosso padrão abissal de desigualdades, dominar a leitura e a escrita tem sido um privilégio poderoso para alguns e uma carência radical para outros. Também não há nenhum tipo de justificativa ética, epistemológica ou pedagógica para que se permita que o tema do direito à alfabetização e ao letramento siga capturado por enredamentos ideológicos espúrios que, apesar de suas sempre declaradas boas intenções, vagam distantes e confortáveis na guerra das vaidades de acadêmicos, de gestores públicos e outros atores que compõem e disputam o ecossistema da formulação e implementação de políticas educacionais.

Políticas públicas orientadas para garantir que, efetivamente, todas as crianças brasileiras possam se alfabetizar na idade certa precisam ser uma prioridade real, convocando a colaboração cuidadosa e respeitosa das diferentes esferas de governo (União, Estados e Municípios), dos setores mais responsáveis da Universidade (aqueles que assumem uma perspectiva crítico-esperançosa dos problemas e dilemas dos nossos sistemas de ensino e aceitam o desafio de propor caminhos para sua superação) e das organizações sérias da sociedade civil - de diferentes tipos - que atuam no terceiro setor e no mundo fundacional e que produziram, nos últimos quarenta anos, importantes contribuições metodológicas para a formação de professores e para o trabalho didático em sala de aula. Também é preciso que essa colaboração se dê lastreada pela aposta na ciência e pela valorização das evidências disponíveis sobre os melhores caminhos para alfabetizar e letrar as crianças brasileiras, considerando os diversificados e desiguais contextos em que vivem e as características singulares das escolas em que estudam.

Se formos capazes de sustentar essas duas premissas, estaremos aptos a nos movimentar para, juntos, enfrentar quatro problemas centrais da agenda: a) as condições objetivas limitadoras da docência nas nossas classes de alfabetização (infraestrutura física e pedagógica, número de alunos por classe, tempo dedicado ao registro reflexivo e à formação permanente em serviço e número de horas de efetivo trabalho acadêmico dentro da sala de aula); b) as distensões curriculares que atrapalham o foco necessário no processo de alfabetização e letramento desde a educação infantil (incluindo a ideologia cansativa que opõe o direito ao brincar e o direito de se apropriar da língua escrita com a qual a criança pequena já interage na sociedade em que vive e em relação à qual alimenta profunda curiosidade); c) a formação inicial insuficiente e fragmentada presente no curso de pedagogia, na qual o processo de alfabetização disputa espaço com outras dezenas de - legítimas - preocupações e se perde na transmissão de informações teóricas e sociológicas genéricas, sem alcançar o necessário lastro na prática pedagógica que deverá ser realizada na sala de aula e d) uma leniência criminosa com as crianças que demonstram maior dificuldade nos seus esforços iniciais de alfabetização (as mais pobres, as crianças cujos pais não puderam concluir os estudos, as crianças negras e as crianças com deficiência).

Importa dizer que nossos resultados insuficientes em alfabetização não são consequência exclusiva dos equívocos produzidos nos últimos anos, quando o Ministério da Educação esteve em permanente crise institucional e sem qualquer liderança consistente para lhe dar rumo. A trajetória histórica demonstra que os avanços que vínhamos acumulando até 2018 eram importantes, mas alcançavam uma velocidade insuficiente para o tamanho do desafio que tínhamos. É preciso reconhecer que antes mesmo de 2018, o direito de se alfabetizar no Brasil variava drasticamente conforme a classe social, o território, o gênero e a identidade racial da criança e a maior parte da nossa classe política convivia com essa realidade sem que isso fosse escandaloso demais.

Todavia, nos últimos quatro anos, o Ministério da Educação produziu uma política de alfabetização errática, que misturou uma tentativa mal ajambrada de reorientar a matriz epistemológica da área (em favor de abordagens calcadas numa visão restritiva de fonetização) com o apelo a recursos e instrumentos pseudocientíficos que prometiam "alfabetizar em tempo recorde" mediante a adoção de aplicativos e outras tecnologias. Com essas bases, a Política Nacional de Alfabetização proposta explicitou o que de resto estava presente na política educacional bolsonarista: muita espuma ideológica, flagrantes desperdícios de tempo e de recursos financeiros e uma distância gigantesca dos efetivos dilemas das escolas de educação básica. Ao mesmo tempo, a modelagem da colaboração com os estados e com os municípios (responsáveis diretos pelo ciclo de alfabetização) retrocedeu em termos técnicos e financeiros, prejudicando os municípios mais pobres, que contavam com menor capacidade técnica e financeira para manter suas próprias iniciativas de alfabetização.

Temos a oportunidade de corrigir a rota com a chegada de Camilo Santana à liderança da pasta. A equipe do novo ministro poderá aprender, retomar e ressignificar experiências exitosas do passado, como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA e o Pró-Letramento, nos quais o Ministério da Educação exerceu importante liderança política e construiu processos de colaboração financeira e técnica para a formação de professores nas redes públicas municipais e estaduais. Também poderá se valer das aprendizagens que emergiram do Programa de Alfabetização na Idade Certa - PAIC, do governo do Estado Ceará e de iniciativas correlatas realizadas em outras redes públicas do país.

Vale lembrar que o PAIC foi a principal inspiração para outra política importante do Ministério da Educação: o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, desenvolvido a partir de 2013 pela Secretaria de Educação Básica, sob a liderança de Cesar Callegari. Tal escolha não foi por acaso: já naquele momento, o Ceará vinha demonstrando, de modo consistente, um caminho interessante de política educacional com foco na alfabetização e os resultados são emblemáticos: suas escolas de ensino fundamental apresentam métricas de aprendizagem nas avaliações de larga escala substancialmente melhores do que a média do Brasil e os índices de sucesso no processo de alfabetização na idade certa são inquestionáveis até para seus críticos mais céticos.

Retomar o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, atualizando seu formato e corrigindo os problemas identificados na primeira geração a partir de um conjunto robusto de pesquisas já produzidas parece ser o caminho mais produtivo e, ao que tudo indica, este foi o sinal já apresentado pelo Ministro. O PNAIC da primeira geração trouxe avanços importantes no que diz respeito à infraestrutura pedagógica das nossas classes de alfabetização, ampliando recursos disponíveis para o trabalho do professor e induzindo ações de reorganização dos agrupamentos de estudantes (turmas e classes) por parte dos sistemas municipais de ensino. Também trouxe avanços interessantes no tipo de indução para a formação inicial de professores nos cursos de licenciatura em Pedagogia e nas estratégias de formação permanente ou continuada. Evidentemente, é possível avançar nesse campo. Pesquisa conduzida pelo Laboratório de Educação em cinco municípios demonstrou lacunas e dificuldades na implementação do PNAIC nessas duas frentes e dificuldades para a institucionalização de aspectos centrais da política nas redes municipais que a ela aderiram.

Entretanto, as outras duas dimensões parecem ainda carecer de uma maior incidência política e de um compromisso mais corajoso. A primeira diz respeito ao enfrentamento da hipótese restritiva segundo a qual a educação infantil deve ser protegida de investimentos intencionais e sistemáticos para que as crianças aprendam a ler e escrever. A segunda está relacionada à superação da nossa repulsa em afirmar e perseguir metas objetivas de resultados educacionais, pactuadas com as escolas e com os educadores, que explicitem os padrões de desempenho aceitáveis no ciclo de alfabetização para cada criança, nos primeiros anos de escolarização.

No que tange à primeira dimensão, considero que é totalmente plausível articularmos o reconhecimento da especificidade e da singularidade da educação infantil - conquista importante do campo e primordial para o respeito às infâncias brasileiras como sujeitos de direitos - e a proposição de um conjunto de experiências formativas interessantes, engajadoras e poderosas que provoquem a apropriação progressiva das práticas de leitura e escrita e do sistema alfabético. Aliás, essa é uma diferença radical entre as crianças mais favorecidas da nossa sociedade e aquelas que vivem em contextos mais vulneráveis. Às primeiras, garantimos que a educação infantil seja um espaço que - entre outras possibilidades - oferece interações prazerosas, cuidadosas e estruturantes com a cultura escrita. Às últimas, em nome de 'protegê-las da escolarização precoce', restringimos as chances de uma aproximação curiosa e instigante com o ler e com o escrever.

No que tange à segunda dimensão, considero que as metas de resultado educacional são métricas importantes para orientar políticas educacionais e para aumentar a superfície democrática que precisa presidir a relação entre estado e sociedade civil. O que não significa assumir uma perspectiva ingênua em relação aos seus poderes. Para que elas funcionem, de fato, a favor da melhoria da qualidade da oferta educativa, é preciso que elas sejam definidas a partir dos contextos reais (e desiguais) em que os educadores trabalham e considerando a íntima relação entre resultados, insumos e processos. É nesse sentido que o Plano Nacional de Educação (2014-2024) indicou o caminho de construção do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - Sinaeb, rejeitado tanto na gestão de Michel Temer quanto na gestão de Jair Bolsonaro. É essa a visão contemporânea mais justa sobre os processos de avaliação de qualidade em educação.

Não há bala de prata para resolver nossos dilemas no campo da alfabetização. Mas há caminhos já trilhados que podem nos ajudar a superar lacunas que já conhecemos e há um enorme potencial na concertação democrática que a frente ampla que venceu as eleições representa. Que saibamos aproveitar essa oportunidade para assumirmos a responsabilidade ética pelo presente e o futuro das nossas crianças e para honrar o legado e a memória de Magda Soares.

Alexsandro Santos, Diretor Presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, Professor do Mestrado e do Doutorado acadêmico em Educação e do Mestrado Profissional em Formação de Gestores Educacionais da Universidade Cidade de São Paulo. Vice-lider do Grupo de Pesquisa Implementação de Políticas Educacionais e Desigualdades. Pesquisador associado ao Centro de Pesquisa Transdisciplinar em Educação - CPTE e ao Núcleo de Estudos da Burocracia - NEB

Em 2015, Magda Soares concedeu uma entrevista à revista "Pesquisa FAPESP". Naquela oportunidade, Magda, então com 83 anos, havia sido contemplada com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia - maior distinção oferecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pela Fundação Conrado Wessel. O título escolhido para a entrevista não poderia ser mais emblemático: "O poder da linguagem".

Perguntada sobre sua relação de amizade com Paulo Freire e a convergência entre suas concepções sobre o ensino e a aprendizagem da língua escrita, Magda sinalizou que considerava seu trabalho assentado nos mesmos pressupostos e ideais do educador pernambucano e que ambos estavam comprometidos com a mesma utopia. Afirmou ainda que a grande contribuição de Paulo Freire foi a visão política da alfabetização e da luta contra o analfabetismo e arrematou dizendo: "a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem. É através dela que as classes dominantes dominam. É essa visão que Paulo Freire tinha e que eu tenho".

Magda Soares nos deixou no dia 1 de janeiro de 2023. Quis o destino que este dia também entrasse para a história como o dia em que o Brasil conseguiu se desvencilhar de um governo que produziu retrocessos gigantescos na garantia do direito humano à alfabetização e ao letramento e na agenda urgente da equidade educacional, duas arenas nas quais a grande intelectual mineira desempenhou um persistente combate e entregou um legado inquestionável de docência, pesquisa, ativismo e contribuição para o desenho de políticas públicas.

O professor Francisco Soares fez questão de declarar este legado num testemunho pessoal. Utilizando sua página numa rede social, disse: "me lembrei do que a professora Magda me disse várias vezes. É nos primeiros anos da escola que as desigualdades sociais se cristalizam. Algumas crianças se alfabetizam adequadamente e caminham. Outras não se alfabetizam e começam a colecionar defasagem e exclusões, que logo se transformam em outras desigualdades".

Precisamos estar à altura desse compromisso que guiou a trajetória de Magda Soares e que enlaça sua luta à luta de Paulo Freire. Não há nenhum tipo de justificativa (moral, política, social, econômica) que possa sustentar o descaso com a garantia do direito humano à alfabetização que assistimos em nossa sociedade. Especialmente porque sabemos que, num país com o nosso padrão abissal de desigualdades, dominar a leitura e a escrita tem sido um privilégio poderoso para alguns e uma carência radical para outros. Também não há nenhum tipo de justificativa ética, epistemológica ou pedagógica para que se permita que o tema do direito à alfabetização e ao letramento siga capturado por enredamentos ideológicos espúrios que, apesar de suas sempre declaradas boas intenções, vagam distantes e confortáveis na guerra das vaidades de acadêmicos, de gestores públicos e outros atores que compõem e disputam o ecossistema da formulação e implementação de políticas educacionais.

Políticas públicas orientadas para garantir que, efetivamente, todas as crianças brasileiras possam se alfabetizar na idade certa precisam ser uma prioridade real, convocando a colaboração cuidadosa e respeitosa das diferentes esferas de governo (União, Estados e Municípios), dos setores mais responsáveis da Universidade (aqueles que assumem uma perspectiva crítico-esperançosa dos problemas e dilemas dos nossos sistemas de ensino e aceitam o desafio de propor caminhos para sua superação) e das organizações sérias da sociedade civil - de diferentes tipos - que atuam no terceiro setor e no mundo fundacional e que produziram, nos últimos quarenta anos, importantes contribuições metodológicas para a formação de professores e para o trabalho didático em sala de aula. Também é preciso que essa colaboração se dê lastreada pela aposta na ciência e pela valorização das evidências disponíveis sobre os melhores caminhos para alfabetizar e letrar as crianças brasileiras, considerando os diversificados e desiguais contextos em que vivem e as características singulares das escolas em que estudam.

Se formos capazes de sustentar essas duas premissas, estaremos aptos a nos movimentar para, juntos, enfrentar quatro problemas centrais da agenda: a) as condições objetivas limitadoras da docência nas nossas classes de alfabetização (infraestrutura física e pedagógica, número de alunos por classe, tempo dedicado ao registro reflexivo e à formação permanente em serviço e número de horas de efetivo trabalho acadêmico dentro da sala de aula); b) as distensões curriculares que atrapalham o foco necessário no processo de alfabetização e letramento desde a educação infantil (incluindo a ideologia cansativa que opõe o direito ao brincar e o direito de se apropriar da língua escrita com a qual a criança pequena já interage na sociedade em que vive e em relação à qual alimenta profunda curiosidade); c) a formação inicial insuficiente e fragmentada presente no curso de pedagogia, na qual o processo de alfabetização disputa espaço com outras dezenas de - legítimas - preocupações e se perde na transmissão de informações teóricas e sociológicas genéricas, sem alcançar o necessário lastro na prática pedagógica que deverá ser realizada na sala de aula e d) uma leniência criminosa com as crianças que demonstram maior dificuldade nos seus esforços iniciais de alfabetização (as mais pobres, as crianças cujos pais não puderam concluir os estudos, as crianças negras e as crianças com deficiência).

Importa dizer que nossos resultados insuficientes em alfabetização não são consequência exclusiva dos equívocos produzidos nos últimos anos, quando o Ministério da Educação esteve em permanente crise institucional e sem qualquer liderança consistente para lhe dar rumo. A trajetória histórica demonstra que os avanços que vínhamos acumulando até 2018 eram importantes, mas alcançavam uma velocidade insuficiente para o tamanho do desafio que tínhamos. É preciso reconhecer que antes mesmo de 2018, o direito de se alfabetizar no Brasil variava drasticamente conforme a classe social, o território, o gênero e a identidade racial da criança e a maior parte da nossa classe política convivia com essa realidade sem que isso fosse escandaloso demais.

Todavia, nos últimos quatro anos, o Ministério da Educação produziu uma política de alfabetização errática, que misturou uma tentativa mal ajambrada de reorientar a matriz epistemológica da área (em favor de abordagens calcadas numa visão restritiva de fonetização) com o apelo a recursos e instrumentos pseudocientíficos que prometiam "alfabetizar em tempo recorde" mediante a adoção de aplicativos e outras tecnologias. Com essas bases, a Política Nacional de Alfabetização proposta explicitou o que de resto estava presente na política educacional bolsonarista: muita espuma ideológica, flagrantes desperdícios de tempo e de recursos financeiros e uma distância gigantesca dos efetivos dilemas das escolas de educação básica. Ao mesmo tempo, a modelagem da colaboração com os estados e com os municípios (responsáveis diretos pelo ciclo de alfabetização) retrocedeu em termos técnicos e financeiros, prejudicando os municípios mais pobres, que contavam com menor capacidade técnica e financeira para manter suas próprias iniciativas de alfabetização.

Temos a oportunidade de corrigir a rota com a chegada de Camilo Santana à liderança da pasta. A equipe do novo ministro poderá aprender, retomar e ressignificar experiências exitosas do passado, como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA e o Pró-Letramento, nos quais o Ministério da Educação exerceu importante liderança política e construiu processos de colaboração financeira e técnica para a formação de professores nas redes públicas municipais e estaduais. Também poderá se valer das aprendizagens que emergiram do Programa de Alfabetização na Idade Certa - PAIC, do governo do Estado Ceará e de iniciativas correlatas realizadas em outras redes públicas do país.

Vale lembrar que o PAIC foi a principal inspiração para outra política importante do Ministério da Educação: o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, desenvolvido a partir de 2013 pela Secretaria de Educação Básica, sob a liderança de Cesar Callegari. Tal escolha não foi por acaso: já naquele momento, o Ceará vinha demonstrando, de modo consistente, um caminho interessante de política educacional com foco na alfabetização e os resultados são emblemáticos: suas escolas de ensino fundamental apresentam métricas de aprendizagem nas avaliações de larga escala substancialmente melhores do que a média do Brasil e os índices de sucesso no processo de alfabetização na idade certa são inquestionáveis até para seus críticos mais céticos.

Retomar o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, atualizando seu formato e corrigindo os problemas identificados na primeira geração a partir de um conjunto robusto de pesquisas já produzidas parece ser o caminho mais produtivo e, ao que tudo indica, este foi o sinal já apresentado pelo Ministro. O PNAIC da primeira geração trouxe avanços importantes no que diz respeito à infraestrutura pedagógica das nossas classes de alfabetização, ampliando recursos disponíveis para o trabalho do professor e induzindo ações de reorganização dos agrupamentos de estudantes (turmas e classes) por parte dos sistemas municipais de ensino. Também trouxe avanços interessantes no tipo de indução para a formação inicial de professores nos cursos de licenciatura em Pedagogia e nas estratégias de formação permanente ou continuada. Evidentemente, é possível avançar nesse campo. Pesquisa conduzida pelo Laboratório de Educação em cinco municípios demonstrou lacunas e dificuldades na implementação do PNAIC nessas duas frentes e dificuldades para a institucionalização de aspectos centrais da política nas redes municipais que a ela aderiram.

Entretanto, as outras duas dimensões parecem ainda carecer de uma maior incidência política e de um compromisso mais corajoso. A primeira diz respeito ao enfrentamento da hipótese restritiva segundo a qual a educação infantil deve ser protegida de investimentos intencionais e sistemáticos para que as crianças aprendam a ler e escrever. A segunda está relacionada à superação da nossa repulsa em afirmar e perseguir metas objetivas de resultados educacionais, pactuadas com as escolas e com os educadores, que explicitem os padrões de desempenho aceitáveis no ciclo de alfabetização para cada criança, nos primeiros anos de escolarização.

No que tange à primeira dimensão, considero que é totalmente plausível articularmos o reconhecimento da especificidade e da singularidade da educação infantil - conquista importante do campo e primordial para o respeito às infâncias brasileiras como sujeitos de direitos - e a proposição de um conjunto de experiências formativas interessantes, engajadoras e poderosas que provoquem a apropriação progressiva das práticas de leitura e escrita e do sistema alfabético. Aliás, essa é uma diferença radical entre as crianças mais favorecidas da nossa sociedade e aquelas que vivem em contextos mais vulneráveis. Às primeiras, garantimos que a educação infantil seja um espaço que - entre outras possibilidades - oferece interações prazerosas, cuidadosas e estruturantes com a cultura escrita. Às últimas, em nome de 'protegê-las da escolarização precoce', restringimos as chances de uma aproximação curiosa e instigante com o ler e com o escrever.

No que tange à segunda dimensão, considero que as metas de resultado educacional são métricas importantes para orientar políticas educacionais e para aumentar a superfície democrática que precisa presidir a relação entre estado e sociedade civil. O que não significa assumir uma perspectiva ingênua em relação aos seus poderes. Para que elas funcionem, de fato, a favor da melhoria da qualidade da oferta educativa, é preciso que elas sejam definidas a partir dos contextos reais (e desiguais) em que os educadores trabalham e considerando a íntima relação entre resultados, insumos e processos. É nesse sentido que o Plano Nacional de Educação (2014-2024) indicou o caminho de construção do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - Sinaeb, rejeitado tanto na gestão de Michel Temer quanto na gestão de Jair Bolsonaro. É essa a visão contemporânea mais justa sobre os processos de avaliação de qualidade em educação.

Não há bala de prata para resolver nossos dilemas no campo da alfabetização. Mas há caminhos já trilhados que podem nos ajudar a superar lacunas que já conhecemos e há um enorme potencial na concertação democrática que a frente ampla que venceu as eleições representa. Que saibamos aproveitar essa oportunidade para assumirmos a responsabilidade ética pelo presente e o futuro das nossas crianças e para honrar o legado e a memória de Magda Soares.

Alexsandro Santos, Diretor Presidente da Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo, Professor do Mestrado e do Doutorado acadêmico em Educação e do Mestrado Profissional em Formação de Gestores Educacionais da Universidade Cidade de São Paulo. Vice-lider do Grupo de Pesquisa Implementação de Políticas Educacionais e Desigualdades. Pesquisador associado ao Centro de Pesquisa Transdisciplinar em Educação - CPTE e ao Núcleo de Estudos da Burocracia - NEB

Em 2015, Magda Soares concedeu uma entrevista à revista "Pesquisa FAPESP". Naquela oportunidade, Magda, então com 83 anos, havia sido contemplada com o Prêmio Almirante Álvaro Alberto para Ciência e Tecnologia - maior distinção oferecida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e pela Fundação Conrado Wessel. O título escolhido para a entrevista não poderia ser mais emblemático: "O poder da linguagem".

Perguntada sobre sua relação de amizade com Paulo Freire e a convergência entre suas concepções sobre o ensino e a aprendizagem da língua escrita, Magda sinalizou que considerava seu trabalho assentado nos mesmos pressupostos e ideais do educador pernambucano e que ambos estavam comprometidos com a mesma utopia. Afirmou ainda que a grande contribuição de Paulo Freire foi a visão política da alfabetização e da luta contra o analfabetismo e arrematou dizendo: "a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem. É através dela que as classes dominantes dominam. É essa visão que Paulo Freire tinha e que eu tenho".

Magda Soares nos deixou no dia 1 de janeiro de 2023. Quis o destino que este dia também entrasse para a história como o dia em que o Brasil conseguiu se desvencilhar de um governo que produziu retrocessos gigantescos na garantia do direito humano à alfabetização e ao letramento e na agenda urgente da equidade educacional, duas arenas nas quais a grande intelectual mineira desempenhou um persistente combate e entregou um legado inquestionável de docência, pesquisa, ativismo e contribuição para o desenho de políticas públicas.

O professor Francisco Soares fez questão de declarar este legado num testemunho pessoal. Utilizando sua página numa rede social, disse: "me lembrei do que a professora Magda me disse várias vezes. É nos primeiros anos da escola que as desigualdades sociais se cristalizam. Algumas crianças se alfabetizam adequadamente e caminham. Outras não se alfabetizam e começam a colecionar defasagem e exclusões, que logo se transformam em outras desigualdades".

Precisamos estar à altura desse compromisso que guiou a trajetória de Magda Soares e que enlaça sua luta à luta de Paulo Freire. Não há nenhum tipo de justificativa (moral, política, social, econômica) que possa sustentar o descaso com a garantia do direito humano à alfabetização que assistimos em nossa sociedade. Especialmente porque sabemos que, num país com o nosso padrão abissal de desigualdades, dominar a leitura e a escrita tem sido um privilégio poderoso para alguns e uma carência radical para outros. Também não há nenhum tipo de justificativa ética, epistemológica ou pedagógica para que se permita que o tema do direito à alfabetização e ao letramento siga capturado por enredamentos ideológicos espúrios que, apesar de suas sempre declaradas boas intenções, vagam distantes e confortáveis na guerra das vaidades de acadêmicos, de gestores públicos e outros atores que compõem e disputam o ecossistema da formulação e implementação de políticas educacionais.

Políticas públicas orientadas para garantir que, efetivamente, todas as crianças brasileiras possam se alfabetizar na idade certa precisam ser uma prioridade real, convocando a colaboração cuidadosa e respeitosa das diferentes esferas de governo (União, Estados e Municípios), dos setores mais responsáveis da Universidade (aqueles que assumem uma perspectiva crítico-esperançosa dos problemas e dilemas dos nossos sistemas de ensino e aceitam o desafio de propor caminhos para sua superação) e das organizações sérias da sociedade civil - de diferentes tipos - que atuam no terceiro setor e no mundo fundacional e que produziram, nos últimos quarenta anos, importantes contribuições metodológicas para a formação de professores e para o trabalho didático em sala de aula. Também é preciso que essa colaboração se dê lastreada pela aposta na ciência e pela valorização das evidências disponíveis sobre os melhores caminhos para alfabetizar e letrar as crianças brasileiras, considerando os diversificados e desiguais contextos em que vivem e as características singulares das escolas em que estudam.

Se formos capazes de sustentar essas duas premissas, estaremos aptos a nos movimentar para, juntos, enfrentar quatro problemas centrais da agenda: a) as condições objetivas limitadoras da docência nas nossas classes de alfabetização (infraestrutura física e pedagógica, número de alunos por classe, tempo dedicado ao registro reflexivo e à formação permanente em serviço e número de horas de efetivo trabalho acadêmico dentro da sala de aula); b) as distensões curriculares que atrapalham o foco necessário no processo de alfabetização e letramento desde a educação infantil (incluindo a ideologia cansativa que opõe o direito ao brincar e o direito de se apropriar da língua escrita com a qual a criança pequena já interage na sociedade em que vive e em relação à qual alimenta profunda curiosidade); c) a formação inicial insuficiente e fragmentada presente no curso de pedagogia, na qual o processo de alfabetização disputa espaço com outras dezenas de - legítimas - preocupações e se perde na transmissão de informações teóricas e sociológicas genéricas, sem alcançar o necessário lastro na prática pedagógica que deverá ser realizada na sala de aula e d) uma leniência criminosa com as crianças que demonstram maior dificuldade nos seus esforços iniciais de alfabetização (as mais pobres, as crianças cujos pais não puderam concluir os estudos, as crianças negras e as crianças com deficiência).

Importa dizer que nossos resultados insuficientes em alfabetização não são consequência exclusiva dos equívocos produzidos nos últimos anos, quando o Ministério da Educação esteve em permanente crise institucional e sem qualquer liderança consistente para lhe dar rumo. A trajetória histórica demonstra que os avanços que vínhamos acumulando até 2018 eram importantes, mas alcançavam uma velocidade insuficiente para o tamanho do desafio que tínhamos. É preciso reconhecer que antes mesmo de 2018, o direito de se alfabetizar no Brasil variava drasticamente conforme a classe social, o território, o gênero e a identidade racial da criança e a maior parte da nossa classe política convivia com essa realidade sem que isso fosse escandaloso demais.

Todavia, nos últimos quatro anos, o Ministério da Educação produziu uma política de alfabetização errática, que misturou uma tentativa mal ajambrada de reorientar a matriz epistemológica da área (em favor de abordagens calcadas numa visão restritiva de fonetização) com o apelo a recursos e instrumentos pseudocientíficos que prometiam "alfabetizar em tempo recorde" mediante a adoção de aplicativos e outras tecnologias. Com essas bases, a Política Nacional de Alfabetização proposta explicitou o que de resto estava presente na política educacional bolsonarista: muita espuma ideológica, flagrantes desperdícios de tempo e de recursos financeiros e uma distância gigantesca dos efetivos dilemas das escolas de educação básica. Ao mesmo tempo, a modelagem da colaboração com os estados e com os municípios (responsáveis diretos pelo ciclo de alfabetização) retrocedeu em termos técnicos e financeiros, prejudicando os municípios mais pobres, que contavam com menor capacidade técnica e financeira para manter suas próprias iniciativas de alfabetização.

Temos a oportunidade de corrigir a rota com a chegada de Camilo Santana à liderança da pasta. A equipe do novo ministro poderá aprender, retomar e ressignificar experiências exitosas do passado, como o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores - PROFA e o Pró-Letramento, nos quais o Ministério da Educação exerceu importante liderança política e construiu processos de colaboração financeira e técnica para a formação de professores nas redes públicas municipais e estaduais. Também poderá se valer das aprendizagens que emergiram do Programa de Alfabetização na Idade Certa - PAIC, do governo do Estado Ceará e de iniciativas correlatas realizadas em outras redes públicas do país.

Vale lembrar que o PAIC foi a principal inspiração para outra política importante do Ministério da Educação: o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, desenvolvido a partir de 2013 pela Secretaria de Educação Básica, sob a liderança de Cesar Callegari. Tal escolha não foi por acaso: já naquele momento, o Ceará vinha demonstrando, de modo consistente, um caminho interessante de política educacional com foco na alfabetização e os resultados são emblemáticos: suas escolas de ensino fundamental apresentam métricas de aprendizagem nas avaliações de larga escala substancialmente melhores do que a média do Brasil e os índices de sucesso no processo de alfabetização na idade certa são inquestionáveis até para seus críticos mais céticos.

Retomar o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC, atualizando seu formato e corrigindo os problemas identificados na primeira geração a partir de um conjunto robusto de pesquisas já produzidas parece ser o caminho mais produtivo e, ao que tudo indica, este foi o sinal já apresentado pelo Ministro. O PNAIC da primeira geração trouxe avanços importantes no que diz respeito à infraestrutura pedagógica das nossas classes de alfabetização, ampliando recursos disponíveis para o trabalho do professor e induzindo ações de reorganização dos agrupamentos de estudantes (turmas e classes) por parte dos sistemas municipais de ensino. Também trouxe avanços interessantes no tipo de indução para a formação inicial de professores nos cursos de licenciatura em Pedagogia e nas estratégias de formação permanente ou continuada. Evidentemente, é possível avançar nesse campo. Pesquisa conduzida pelo Laboratório de Educação em cinco municípios demonstrou lacunas e dificuldades na implementação do PNAIC nessas duas frentes e dificuldades para a institucionalização de aspectos centrais da política nas redes municipais que a ela aderiram.

Entretanto, as outras duas dimensões parecem ainda carecer de uma maior incidência política e de um compromisso mais corajoso. A primeira diz respeito ao enfrentamento da hipótese restritiva segundo a qual a educação infantil deve ser protegida de investimentos intencionais e sistemáticos para que as crianças aprendam a ler e escrever. A segunda está relacionada à superação da nossa repulsa em afirmar e perseguir metas objetivas de resultados educacionais, pactuadas com as escolas e com os educadores, que explicitem os padrões de desempenho aceitáveis no ciclo de alfabetização para cada criança, nos primeiros anos de escolarização.

No que tange à primeira dimensão, considero que é totalmente plausível articularmos o reconhecimento da especificidade e da singularidade da educação infantil - conquista importante do campo e primordial para o respeito às infâncias brasileiras como sujeitos de direitos - e a proposição de um conjunto de experiências formativas interessantes, engajadoras e poderosas que provoquem a apropriação progressiva das práticas de leitura e escrita e do sistema alfabético. Aliás, essa é uma diferença radical entre as crianças mais favorecidas da nossa sociedade e aquelas que vivem em contextos mais vulneráveis. Às primeiras, garantimos que a educação infantil seja um espaço que - entre outras possibilidades - oferece interações prazerosas, cuidadosas e estruturantes com a cultura escrita. Às últimas, em nome de 'protegê-las da escolarização precoce', restringimos as chances de uma aproximação curiosa e instigante com o ler e com o escrever.

No que tange à segunda dimensão, considero que as metas de resultado educacional são métricas importantes para orientar políticas educacionais e para aumentar a superfície democrática que precisa presidir a relação entre estado e sociedade civil. O que não significa assumir uma perspectiva ingênua em relação aos seus poderes. Para que elas funcionem, de fato, a favor da melhoria da qualidade da oferta educativa, é preciso que elas sejam definidas a partir dos contextos reais (e desiguais) em que os educadores trabalham e considerando a íntima relação entre resultados, insumos e processos. É nesse sentido que o Plano Nacional de Educação (2014-2024) indicou o caminho de construção do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica - Sinaeb, rejeitado tanto na gestão de Michel Temer quanto na gestão de Jair Bolsonaro. É essa a visão contemporânea mais justa sobre os processos de avaliação de qualidade em educação.

Não há bala de prata para resolver nossos dilemas no campo da alfabetização. Mas há caminhos já trilhados que podem nos ajudar a superar lacunas que já conhecemos e há um enorme potencial na concertação democrática que a frente ampla que venceu as eleições representa. Que saibamos aproveitar essa oportunidade para assumirmos a responsabilidade ética pelo presente e o futuro das nossas crianças e para honrar o legado e a memória de Magda Soares.

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