Claudia Abrosio é sócia no escritório Ayres Ribeiro Advogados, mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet)
Giancarla Coelho Naccarati Marcon é advogada, doutora e mestre em Direito Tributário e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em Direito Tributário Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP
É notório que inúmeros têm sido os debates a respeito da concretização de uma verdadeira reforma tributária no Brasil, no intuito de promover uma maior simplificação do sistema tributário, uniformizar procedimentos, impulsionar a economia e incentivar o bom pagador.
Ao mesmo tempo em que aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 45 de 2019 (que propõe substituir cinco tributos - PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS - por um IVA Dual de padrão internacional - CBS e IBS), pela Câmara dos Deputados, gerou uma onda de otimismo, do outro, suscitou aflições em diversos setores econômicos.
Fato é que, no atual cenário tributário brasileiro, marcado por diversas transformações e mudanças de critérios, a sociedade anseia por algo a mais do que a reforma tributária: a instituição de normas que consolidem os direitos e as garantias do contribuinte, baseadas nos paradigmas da confiança e da colaboração, a partir da cooperação recíproca (Fisco e contribuinte).
Sem a pretensão de exaurir o tema, entre os pontos não enfrentados na PEC nº 45/2019 e que merecem atenção, destacam-se: a) simplificação dos deveres instrumentais [1]; b) unificação de penalidades que crescem em volume a cada ano; c) equilíbrio nas relações entre o Fisco e o contribuinte; d) diretrizes para redução de litigiosidade fiscal; e) reforma administrativa para reduzir gastos públicos e organizar como eles são direcionados.
Além de uma tributação justa, o contribuinte requer tratamento digno, que leve em consideração o princípio da razoabilidade, da proporcionalidade, da transparência, da segurança jurídica, da informação, do direito adquirido, do devido processo legal, da motivação das decisões administrativas, entre outros pilares. Sabemos que esse é um desafio, como o é a própria reforma tributária!
Nesse contexto, pretendemos, neste artigo, apresentar reflexões sobre a busca por efetividade das diretrizes fixadas na própria Constituição Federal (CF/88), visto que, a nosso ver, os princípios tributários e administrativos apontam o caminho a ser seguido por todos, bem como o próprio Estado Democrático de Direito que vivemos.
Percebemos que, nos últimos anos, devido às arbitrariedades cometidas pelo Fisco, que violam direitos dos contribuintes e demonstram a disparidade na relação Fisco-contribuinte, há a necessidade da introdução de outras normas, que explicitarão o que já está traçado na CF/88.
Nas casas legislativas, temos os Projetos de Lei Complementar (PLP) nº 17/2022 e 125/2022, que propõem instituir o Código de Defesa do Contribuinte na legislação brasileira, apresentando diversos temas que, em consonância com o sistema, espera-se que contribuam para o atingimento da tão almejada segurança jurídica, compreendendo o contraditório e a ampla defesa, a presunção da boa-fé do contribuinte na sua interação com a Fazenda, bem como as normas fundamentais.
Cabe observar que programas de transparência, aprimoramento na atuação da administração tributária e conformidade cooperativa fiscal são uma tendência internacional. Por sinal, os Projetos de LC mencionados são inspirados em modelos internacionais e diretrizes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
É importante salientar que o tratamento concedido ao contribuinte é indispensável para uma arrecadação eficaz. A informação revelada também pela comunicação clara, eficiente e desdobrada na predisposição em orientá-lo ou fornecer-lhe acesso, e a possibilidade, se o caso, de retificação ou complementação de seus dados, inclusive digitalmente, pode facilitar esse trâmite.
Não menos importante, e que é evidenciado pelos Projetos de LC, é a proteção em face aos abusos cometidos pela administração fazendária e que devem ser coibidos, consubstanciados nas exigências de fornecimento de documentos e/ou informações cuja Fazenda Pública já possua acesso ou que já lhe tenham sido entregues pelo contribuinte em momento anterior. Os mecanismos coercitivos estão em pauta.
Certamente, o preconceito embasado na imagem do contribuinte-sonegador deve ser rechaçado, sendo adotada a presunção de boa-fé e a cooperação mútua. Essa postura, associada a todos os temas acima mencionados, será mais um facilitador ao cumprimento do menor ônus ao contribuinte, visto que reduzirá os obstáculos ao adimplemento do tributo, ao cumprimento dos seus deveres instrumentais e, consequentemente, a litigiosidade.
A proposta de normas gerais voltadas aos direitos e deveres dos contribuintes em âmbito nacional aponta em um momento propício, visto que reconhece a vulnerabilidade do contribuinte diante da sanha arrecadatória do Estado. Isso ocorre, sem contar as práticas, por vezes, existentes na sua atuação, como a aplicação de sanções desproporcionais, violações à legalidade, mora quanto aos prazos para decisões e restituições, inobservância de precedentes, dentre outros aspectos.
Cabe trazer à baila a recente Lei nº 14.689, de 20 de setembro de 2023, que restabelece o voto de qualidade no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) em prol do Fisco, o que segundo o Ministério da Fazenda, "evitará uma perda anual de R$59 bilhões para a União" [2].
Assim, e vetando diversos artigos do Projeto de Lei nº 2.384/2023, que criavam medidas voltadas ao compliance fiscal (como os que versam sobre redução de multas, perdão de dívidas, autorregularização e até mesmo o embasado em decisão do STF - cancelamento de multas que excedem 100% do valor do crédito tributário apurado por caracterizar confisco), verificamos que o Estado persevera na antiga e inabalável postura de arrecadação a todo o custo, o que dá ensejo à urgência na publicação de lei(s) voltada(s) à proteção do contribuinte.
Portanto, os projetos em tela - nº 17/2022 e 125/2022 - propõem uma mudança importante na relação Fisco-contribuinte, fundada na transparência e cooperação. Eles buscam premiar o bom pagador, ao mesmo tempo em que apresentam restrições ao devedor contumaz.
Esperamos que o Código de Defesa do Contribuinte prospere e realize esta mudança de paradigma tão ansiada, sendo realmente implementado para o bem comum. Temos ciência que todas as alterações extremadas demandam tempo, mas hão de ocorrer algum dia, cujo reflexo é um sistema tributário mais célere, confiável e sustentável, reduzindo abusos por parte das autoridades competentes.
Cabe refletir que, atualmente, há grandes problemas em relação à forma de como a administração tributária soluciona os conflitos que surgem com os contribuintes na aplicação da legislação tributária e se questiona: como será com a reforma tributária?
Notas
[1] Recentemente a LC nº 199, de 1º de agosto de 2023, instituiu o Estatuto Nacional de Simplificação de Obrigações Tributárias Acessórias. Em síntese, o objetivo é diminuir os custos de cumprimento das obrigações tributárias e de incentivar a conformidade por parte dos contribuintes em âmbitos federal, estadual e municipal.
[2] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/09/21/lula-sanciona-voto-de-qualidade-no-carf-e-veta-perdao-de-multas-a-contribuintes>. Acesso em: 27 set. 2023.