Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

As novas tecnologias e o controle da autonomia


Por Redação

Marcus Vinicius de Azevedo Braga, Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) e autor do Livro "Tudo sobre controle", da Editora Fórum.

A ideia do acesso do cidadão às informações públicas não constitui uma novidade, e floresce com os primeiros lampejos da democracia. A "Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen" de 1789, já trazia no seu artigo 15 que a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração; a Suécia legalizou o acesso público aos documentos do Parlamento e do Governo desde 1766. Em um outro exemplo, mais recente e próximo do Brasil, os Estados Unidos publicaram a sua lei de transparência, a  Freedom of Information Act, em 1967.

Entretanto, é inegável que o avanço tecnológico trazido pela rede mundial de computadores, bem como o desenvolvimento de dispositivos móveis com capacidade de interação de sons e imagens, trouxe essa relação dos cidadãos com a ação estatal a um novo patamar, tornando mais rápida e qualificada as cobranças em relação às ações estatais, amplificado pelo acesso a telefones celulares associados a redes sociais que permitem a replicação de imagens em escala mundial, no tempo de um piscar de olhos.

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Um mundo no qual cada cidadão se converte em uma agência de notícias ambulante, em que cada imagem vale mais do que mil palavras, e ao mesmo tempo, vídeos podem ser editados e enviesados conforme o pensamento de cada um desses diretores amadores, que produzem essas peças. Por motivos às vezes inexplicáveis, esses vídeos difundem-se e convertem-se em catalisadores de ações e manifestações públicas no mundo real. Apesar disso, sem esse contexto, não teríamos a repercussão ocorrida, por exemplo, no caso estadunidense da morte de George Floyd, por conta da ação de policiais, o que gerou externalidades positivas pela discussão que trouxe da violência policial contra os negros nos EUA.

Para além desses casos de violência policial, enumeram-se também casos recentes de corrupção, de pedidos de vantagens para atuações ilícitas, que foram revelados pelo uso de filmagens, e que tiveram o seu impacto na opinião pública, e consequentemente, a pressão por providências, potencializadas pela força das imagens, que tem o condão de despertar no ser humano a indignação, que pode se reverter em medidas efetivas de responsabilização, ou apenas na polarização de opiniões, em catarses tão comuns nesses nossos tempos conectados.

Vive-se uma era foucaultiana, de vigilância e exposição, mas em um nível mental, nas palavras do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Os limites desse novo desenho ainda não são visíveis. Aplicativos de transporte podem agora filmar seus passageiros durante a viagem, e tem-se prisões efetuadas a partir do reconhecimento facial de foragidos em dias de jogo nos estádios.  A cada dia os dispositivos de filmagem portáteis, cada vez mais baratos e menores, se apresentam como solução para os riscos cotidianos. No caminho de casa ao trabalho somos filmados inúmeras vezes, gerando montanhas de dados que podem, se resgatados, elucidar questões futuras.

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Essas mudanças trouxeram, naturalmente, discussões legislativas, de medidas pautadas na filmagem massiva para evitar o abuso dos agentes estatais contrapostas aos excessos dessas ações, que afetam outros direitos desses mesmos agentes. Exemplifica-se a proposição legislativa francesa que proibia a filmagem de policiais em ação, o que foi objeto de calorosos protestos no final de 2020 naquele país. A dificuldade é patente de tentar regular esse mundo que vive uma revolução permanente nas comunicações, no qual ainda não foi possível traçar um diagnóstico dos efeitos dessas mudanças nas relações sociais, inclusive na implementação das políticas públicas.

Quem acompanha o tema já sabia que essa ascensão da discussão da transparência no início do Século XXI seria, após um capítulo inicial de euforia, o grande desafio das relações sociais e políticas no mundo. Afinal, a transparência boa é a do outro, e de modo geral, todos nós temos resistência ao escrutínio que afeta a nossa liberdade e a nossa autonomia, mas que também é um instrumento de prestação de contas, de assegurar a nossa aderência a regras e a objetivos, na colaboração com o bem coletivo.

Essa discussão, para se fazer completa, precisa resgatar os estudos, na década de 1980, do cientista político estadunidense Michael Lipsky, e o seu conceito de burocratas de nível de rua (Street Level Bureacracy). Trata o autor de profissionais que atuam na ponta da implementação das políticas públicas, com autonomia que os faz adaptar os objetivos das políticas as suas capacidades, interpretando regras e ajustando realidades com certo grau de inovação, e livres de uma supervisão mais amiúde, fortalecendo assim inclusive a participação e a legitimidade na gestão local.

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Nesse ponto reside o desafio, que talvez saia sem uma resposta final no presente artigo, mas que pode ser de alguma forma iluminado. Como coibir abusos de professores, médicos, policiais e toda ordem de profissionais especializados, que interagem com a população em situações permeadas pela incerteza e que precisam de autonomia para melhor executar a sua função, e que não podem ser micro regulados, sob pena de se tornarem ineficientes? Poderia a filmagem por meio de smartphones ser uma medida adequada de accountability da população em relação a esses abusos, superando os malefícios dessa exposição desses agentes públicos? Tema controverso e que precisa ser debatido, e que o texto deixará três questões para a reflexão.

A primeira questão é que não é possível negar que os abusos desses agentes existem. Há um histórico de extrapolação, pois a mesma autonomia que permite adaptar-se aos contextos, também possibilita o desvio de finalidade sem ser detectado, o que demanda mecanismos que possibilitem que os alertas sejam disparados. A corrupção deriva também da baixa possibilidade de ser detectado, na lembrança do famoso triângulo da fraude de Donald Cressey (EUA, 1919-1987). Se há abuso, e os prejuízos são relevantes, controles pouco onerosos, como a filmagem pelos cidadãos, pode ser um bom instrumento de accountability.

A segunda questão é: em que medida essas filmagens contribuem com a espetacularização transitória do fato e pouco com a adoção de medidas, pontuais e sistêmicas, de resolução daquela atuação? Alimentam o caos e a revolta, ou ensejam a realimentação da implementação da política pública?  Seria a força das imagens o suficiente para criar mudanças normativas que mudassem a estrutura de relações desses agentes, fortalecendo a sua accountability? Aí, já não é um problema da filmagem em si, e sim de como os órgãos públicos, a imprensa e o próprio cidadão que reproduz essas imagens, lidam com estes fatos e a sua fugacidade. Talvez esteja sendo necessário discutir uma educação para a participação, em fóruns que façam a mediação entre os desvios e as soluções.

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Por fim, a terceira questão que precisa ser enfrentada é em que medida essa produção de vídeos sobre os agentes públicos na ponta, sujeitando estes a múltiplas interpretações, poderá inibir a autonomia destes na realização de suas tarefas, fazendo destes agentes sem iniciativa ou inovação, afetando assim diretamente a efetividade das políticas públicas, pela criação de um clima de "blame avoidance" (evitar a culpa), pela falta de definição do que é certo ou errado no julgamento desse agente de suas ações cotidianas, gerando insegurança e inação? Esse é um risco real, de agentes que assumam nesse cenário uma posição inerte e mecanizada, pelo medo de serem mal interpretados e responsabilizados.  Tênues limites...

Sobre o trabalho do professor, do médico, do policial, do fiscal e do gestor, recaem expectativas da população, e de um modo geral, essas estão estampadas em um normativo procedimental. Não se espera de um agente de segurança que agrida um suspeito na sua forma de imobilização, levando-o ao óbito. Por outro lado, se espera uma regra de procedimento e uma cultura organizacional que oriente a ele na selva do cotidiano.

A falta de uma regra, mesmo que principiológica, é que traz o receio do agir e a insegurança. Mas por outro lado, para além do deontológico, não existe regra que cubra toda a complexidade da ação desses agentes, resgatando as discussões de Lipsky. Essa questão não é tão simples, e no plano das coisas reais, surgirá ainda muita polêmica diante do julgamento coletivo da atuação de um agente público divulgado nas redes sociais. Mas, talvez seja esse o exercício democrático que nos falte nesse mundo de transparência crescente.

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Não é uma questão de se falar em excesso de acesso à informação, em um país que ainda se encaminha para enraizar um ethos democrático. Trata-se de se preocupar com a modulação das consequências desse Big Data em relação as políticas públicas e a autonomia necessária dos agentes. O celular é uma arma no júri popular das redes sociais, nas quais nem sempre é tão fácil de definir o que é abuso ou não. Mas, também é um excelente instrumento de controle social nas mãos do cidadão beneficiário das políticas públicas.

Essa discussão não pode ser adiada. Byung-Chul Han, na sua obra "A sociedade da transparência", traz que essa profusão de informações desassossega os indivíduos, como indutor de uma necessidade incessante de mais vigilância e controle. Um movimento que gera medo generalizado, quebra a confiança nas instituições, em especial nos agentes públicos que têm contato direto com a população, em um cenário no qual para cada filmagem adere sempre a narrativa mais pessimista, em um ciclo perigoso para essa relação no contexto da implementação das políticas públicas por esses agentes.

A intolerância com a corrupção, com os abusos em relação aos direitos humanos, praticados por agentes enquadrados como burocratas de nível de rua (Street Level Bureacracy) é um problema sério. E antigo. As novas tecnologias podem trazer soluções para coibir esses abusos, mas ao mesmo tempo, demandam uma accountability específica, que enxergue esse contexto, de uma atuação pontual que se insere em uma política pública, no qual a filmagem pelo smartphone, para reverter na existência de agentes responsáveis e responsabilizados, precisa dialogar com todo esse processo, sob o risco de gerar indignação de curto prazo e pouca ação de longo prazo.

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Marcus Vinicius de Azevedo Braga, Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) e autor do Livro "Tudo sobre controle", da Editora Fórum.

A ideia do acesso do cidadão às informações públicas não constitui uma novidade, e floresce com os primeiros lampejos da democracia. A "Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen" de 1789, já trazia no seu artigo 15 que a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração; a Suécia legalizou o acesso público aos documentos do Parlamento e do Governo desde 1766. Em um outro exemplo, mais recente e próximo do Brasil, os Estados Unidos publicaram a sua lei de transparência, a  Freedom of Information Act, em 1967.

Entretanto, é inegável que o avanço tecnológico trazido pela rede mundial de computadores, bem como o desenvolvimento de dispositivos móveis com capacidade de interação de sons e imagens, trouxe essa relação dos cidadãos com a ação estatal a um novo patamar, tornando mais rápida e qualificada as cobranças em relação às ações estatais, amplificado pelo acesso a telefones celulares associados a redes sociais que permitem a replicação de imagens em escala mundial, no tempo de um piscar de olhos.

Um mundo no qual cada cidadão se converte em uma agência de notícias ambulante, em que cada imagem vale mais do que mil palavras, e ao mesmo tempo, vídeos podem ser editados e enviesados conforme o pensamento de cada um desses diretores amadores, que produzem essas peças. Por motivos às vezes inexplicáveis, esses vídeos difundem-se e convertem-se em catalisadores de ações e manifestações públicas no mundo real. Apesar disso, sem esse contexto, não teríamos a repercussão ocorrida, por exemplo, no caso estadunidense da morte de George Floyd, por conta da ação de policiais, o que gerou externalidades positivas pela discussão que trouxe da violência policial contra os negros nos EUA.

Para além desses casos de violência policial, enumeram-se também casos recentes de corrupção, de pedidos de vantagens para atuações ilícitas, que foram revelados pelo uso de filmagens, e que tiveram o seu impacto na opinião pública, e consequentemente, a pressão por providências, potencializadas pela força das imagens, que tem o condão de despertar no ser humano a indignação, que pode se reverter em medidas efetivas de responsabilização, ou apenas na polarização de opiniões, em catarses tão comuns nesses nossos tempos conectados.

Vive-se uma era foucaultiana, de vigilância e exposição, mas em um nível mental, nas palavras do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Os limites desse novo desenho ainda não são visíveis. Aplicativos de transporte podem agora filmar seus passageiros durante a viagem, e tem-se prisões efetuadas a partir do reconhecimento facial de foragidos em dias de jogo nos estádios.  A cada dia os dispositivos de filmagem portáteis, cada vez mais baratos e menores, se apresentam como solução para os riscos cotidianos. No caminho de casa ao trabalho somos filmados inúmeras vezes, gerando montanhas de dados que podem, se resgatados, elucidar questões futuras.

Essas mudanças trouxeram, naturalmente, discussões legislativas, de medidas pautadas na filmagem massiva para evitar o abuso dos agentes estatais contrapostas aos excessos dessas ações, que afetam outros direitos desses mesmos agentes. Exemplifica-se a proposição legislativa francesa que proibia a filmagem de policiais em ação, o que foi objeto de calorosos protestos no final de 2020 naquele país. A dificuldade é patente de tentar regular esse mundo que vive uma revolução permanente nas comunicações, no qual ainda não foi possível traçar um diagnóstico dos efeitos dessas mudanças nas relações sociais, inclusive na implementação das políticas públicas.

Quem acompanha o tema já sabia que essa ascensão da discussão da transparência no início do Século XXI seria, após um capítulo inicial de euforia, o grande desafio das relações sociais e políticas no mundo. Afinal, a transparência boa é a do outro, e de modo geral, todos nós temos resistência ao escrutínio que afeta a nossa liberdade e a nossa autonomia, mas que também é um instrumento de prestação de contas, de assegurar a nossa aderência a regras e a objetivos, na colaboração com o bem coletivo.

Essa discussão, para se fazer completa, precisa resgatar os estudos, na década de 1980, do cientista político estadunidense Michael Lipsky, e o seu conceito de burocratas de nível de rua (Street Level Bureacracy). Trata o autor de profissionais que atuam na ponta da implementação das políticas públicas, com autonomia que os faz adaptar os objetivos das políticas as suas capacidades, interpretando regras e ajustando realidades com certo grau de inovação, e livres de uma supervisão mais amiúde, fortalecendo assim inclusive a participação e a legitimidade na gestão local.

Nesse ponto reside o desafio, que talvez saia sem uma resposta final no presente artigo, mas que pode ser de alguma forma iluminado. Como coibir abusos de professores, médicos, policiais e toda ordem de profissionais especializados, que interagem com a população em situações permeadas pela incerteza e que precisam de autonomia para melhor executar a sua função, e que não podem ser micro regulados, sob pena de se tornarem ineficientes? Poderia a filmagem por meio de smartphones ser uma medida adequada de accountability da população em relação a esses abusos, superando os malefícios dessa exposição desses agentes públicos? Tema controverso e que precisa ser debatido, e que o texto deixará três questões para a reflexão.

A primeira questão é que não é possível negar que os abusos desses agentes existem. Há um histórico de extrapolação, pois a mesma autonomia que permite adaptar-se aos contextos, também possibilita o desvio de finalidade sem ser detectado, o que demanda mecanismos que possibilitem que os alertas sejam disparados. A corrupção deriva também da baixa possibilidade de ser detectado, na lembrança do famoso triângulo da fraude de Donald Cressey (EUA, 1919-1987). Se há abuso, e os prejuízos são relevantes, controles pouco onerosos, como a filmagem pelos cidadãos, pode ser um bom instrumento de accountability.

A segunda questão é: em que medida essas filmagens contribuem com a espetacularização transitória do fato e pouco com a adoção de medidas, pontuais e sistêmicas, de resolução daquela atuação? Alimentam o caos e a revolta, ou ensejam a realimentação da implementação da política pública?  Seria a força das imagens o suficiente para criar mudanças normativas que mudassem a estrutura de relações desses agentes, fortalecendo a sua accountability? Aí, já não é um problema da filmagem em si, e sim de como os órgãos públicos, a imprensa e o próprio cidadão que reproduz essas imagens, lidam com estes fatos e a sua fugacidade. Talvez esteja sendo necessário discutir uma educação para a participação, em fóruns que façam a mediação entre os desvios e as soluções.

Por fim, a terceira questão que precisa ser enfrentada é em que medida essa produção de vídeos sobre os agentes públicos na ponta, sujeitando estes a múltiplas interpretações, poderá inibir a autonomia destes na realização de suas tarefas, fazendo destes agentes sem iniciativa ou inovação, afetando assim diretamente a efetividade das políticas públicas, pela criação de um clima de "blame avoidance" (evitar a culpa), pela falta de definição do que é certo ou errado no julgamento desse agente de suas ações cotidianas, gerando insegurança e inação? Esse é um risco real, de agentes que assumam nesse cenário uma posição inerte e mecanizada, pelo medo de serem mal interpretados e responsabilizados.  Tênues limites...

Sobre o trabalho do professor, do médico, do policial, do fiscal e do gestor, recaem expectativas da população, e de um modo geral, essas estão estampadas em um normativo procedimental. Não se espera de um agente de segurança que agrida um suspeito na sua forma de imobilização, levando-o ao óbito. Por outro lado, se espera uma regra de procedimento e uma cultura organizacional que oriente a ele na selva do cotidiano.

A falta de uma regra, mesmo que principiológica, é que traz o receio do agir e a insegurança. Mas por outro lado, para além do deontológico, não existe regra que cubra toda a complexidade da ação desses agentes, resgatando as discussões de Lipsky. Essa questão não é tão simples, e no plano das coisas reais, surgirá ainda muita polêmica diante do julgamento coletivo da atuação de um agente público divulgado nas redes sociais. Mas, talvez seja esse o exercício democrático que nos falte nesse mundo de transparência crescente.

Não é uma questão de se falar em excesso de acesso à informação, em um país que ainda se encaminha para enraizar um ethos democrático. Trata-se de se preocupar com a modulação das consequências desse Big Data em relação as políticas públicas e a autonomia necessária dos agentes. O celular é uma arma no júri popular das redes sociais, nas quais nem sempre é tão fácil de definir o que é abuso ou não. Mas, também é um excelente instrumento de controle social nas mãos do cidadão beneficiário das políticas públicas.

Essa discussão não pode ser adiada. Byung-Chul Han, na sua obra "A sociedade da transparência", traz que essa profusão de informações desassossega os indivíduos, como indutor de uma necessidade incessante de mais vigilância e controle. Um movimento que gera medo generalizado, quebra a confiança nas instituições, em especial nos agentes públicos que têm contato direto com a população, em um cenário no qual para cada filmagem adere sempre a narrativa mais pessimista, em um ciclo perigoso para essa relação no contexto da implementação das políticas públicas por esses agentes.

A intolerância com a corrupção, com os abusos em relação aos direitos humanos, praticados por agentes enquadrados como burocratas de nível de rua (Street Level Bureacracy) é um problema sério. E antigo. As novas tecnologias podem trazer soluções para coibir esses abusos, mas ao mesmo tempo, demandam uma accountability específica, que enxergue esse contexto, de uma atuação pontual que se insere em uma política pública, no qual a filmagem pelo smartphone, para reverter na existência de agentes responsáveis e responsabilizados, precisa dialogar com todo esse processo, sob o risco de gerar indignação de curto prazo e pouca ação de longo prazo.

 

 

Marcus Vinicius de Azevedo Braga, Doutor em Políticas Públicas (UFRJ) e autor do Livro "Tudo sobre controle", da Editora Fórum.

A ideia do acesso do cidadão às informações públicas não constitui uma novidade, e floresce com os primeiros lampejos da democracia. A "Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen" de 1789, já trazia no seu artigo 15 que a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração; a Suécia legalizou o acesso público aos documentos do Parlamento e do Governo desde 1766. Em um outro exemplo, mais recente e próximo do Brasil, os Estados Unidos publicaram a sua lei de transparência, a  Freedom of Information Act, em 1967.

Entretanto, é inegável que o avanço tecnológico trazido pela rede mundial de computadores, bem como o desenvolvimento de dispositivos móveis com capacidade de interação de sons e imagens, trouxe essa relação dos cidadãos com a ação estatal a um novo patamar, tornando mais rápida e qualificada as cobranças em relação às ações estatais, amplificado pelo acesso a telefones celulares associados a redes sociais que permitem a replicação de imagens em escala mundial, no tempo de um piscar de olhos.

Um mundo no qual cada cidadão se converte em uma agência de notícias ambulante, em que cada imagem vale mais do que mil palavras, e ao mesmo tempo, vídeos podem ser editados e enviesados conforme o pensamento de cada um desses diretores amadores, que produzem essas peças. Por motivos às vezes inexplicáveis, esses vídeos difundem-se e convertem-se em catalisadores de ações e manifestações públicas no mundo real. Apesar disso, sem esse contexto, não teríamos a repercussão ocorrida, por exemplo, no caso estadunidense da morte de George Floyd, por conta da ação de policiais, o que gerou externalidades positivas pela discussão que trouxe da violência policial contra os negros nos EUA.

Para além desses casos de violência policial, enumeram-se também casos recentes de corrupção, de pedidos de vantagens para atuações ilícitas, que foram revelados pelo uso de filmagens, e que tiveram o seu impacto na opinião pública, e consequentemente, a pressão por providências, potencializadas pela força das imagens, que tem o condão de despertar no ser humano a indignação, que pode se reverter em medidas efetivas de responsabilização, ou apenas na polarização de opiniões, em catarses tão comuns nesses nossos tempos conectados.

Vive-se uma era foucaultiana, de vigilância e exposição, mas em um nível mental, nas palavras do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Os limites desse novo desenho ainda não são visíveis. Aplicativos de transporte podem agora filmar seus passageiros durante a viagem, e tem-se prisões efetuadas a partir do reconhecimento facial de foragidos em dias de jogo nos estádios.  A cada dia os dispositivos de filmagem portáteis, cada vez mais baratos e menores, se apresentam como solução para os riscos cotidianos. No caminho de casa ao trabalho somos filmados inúmeras vezes, gerando montanhas de dados que podem, se resgatados, elucidar questões futuras.

Essas mudanças trouxeram, naturalmente, discussões legislativas, de medidas pautadas na filmagem massiva para evitar o abuso dos agentes estatais contrapostas aos excessos dessas ações, que afetam outros direitos desses mesmos agentes. Exemplifica-se a proposição legislativa francesa que proibia a filmagem de policiais em ação, o que foi objeto de calorosos protestos no final de 2020 naquele país. A dificuldade é patente de tentar regular esse mundo que vive uma revolução permanente nas comunicações, no qual ainda não foi possível traçar um diagnóstico dos efeitos dessas mudanças nas relações sociais, inclusive na implementação das políticas públicas.

Quem acompanha o tema já sabia que essa ascensão da discussão da transparência no início do Século XXI seria, após um capítulo inicial de euforia, o grande desafio das relações sociais e políticas no mundo. Afinal, a transparência boa é a do outro, e de modo geral, todos nós temos resistência ao escrutínio que afeta a nossa liberdade e a nossa autonomia, mas que também é um instrumento de prestação de contas, de assegurar a nossa aderência a regras e a objetivos, na colaboração com o bem coletivo.

Essa discussão, para se fazer completa, precisa resgatar os estudos, na década de 1980, do cientista político estadunidense Michael Lipsky, e o seu conceito de burocratas de nível de rua (Street Level Bureacracy). Trata o autor de profissionais que atuam na ponta da implementação das políticas públicas, com autonomia que os faz adaptar os objetivos das políticas as suas capacidades, interpretando regras e ajustando realidades com certo grau de inovação, e livres de uma supervisão mais amiúde, fortalecendo assim inclusive a participação e a legitimidade na gestão local.

Nesse ponto reside o desafio, que talvez saia sem uma resposta final no presente artigo, mas que pode ser de alguma forma iluminado. Como coibir abusos de professores, médicos, policiais e toda ordem de profissionais especializados, que interagem com a população em situações permeadas pela incerteza e que precisam de autonomia para melhor executar a sua função, e que não podem ser micro regulados, sob pena de se tornarem ineficientes? Poderia a filmagem por meio de smartphones ser uma medida adequada de accountability da população em relação a esses abusos, superando os malefícios dessa exposição desses agentes públicos? Tema controverso e que precisa ser debatido, e que o texto deixará três questões para a reflexão.

A primeira questão é que não é possível negar que os abusos desses agentes existem. Há um histórico de extrapolação, pois a mesma autonomia que permite adaptar-se aos contextos, também possibilita o desvio de finalidade sem ser detectado, o que demanda mecanismos que possibilitem que os alertas sejam disparados. A corrupção deriva também da baixa possibilidade de ser detectado, na lembrança do famoso triângulo da fraude de Donald Cressey (EUA, 1919-1987). Se há abuso, e os prejuízos são relevantes, controles pouco onerosos, como a filmagem pelos cidadãos, pode ser um bom instrumento de accountability.

A segunda questão é: em que medida essas filmagens contribuem com a espetacularização transitória do fato e pouco com a adoção de medidas, pontuais e sistêmicas, de resolução daquela atuação? Alimentam o caos e a revolta, ou ensejam a realimentação da implementação da política pública?  Seria a força das imagens o suficiente para criar mudanças normativas que mudassem a estrutura de relações desses agentes, fortalecendo a sua accountability? Aí, já não é um problema da filmagem em si, e sim de como os órgãos públicos, a imprensa e o próprio cidadão que reproduz essas imagens, lidam com estes fatos e a sua fugacidade. Talvez esteja sendo necessário discutir uma educação para a participação, em fóruns que façam a mediação entre os desvios e as soluções.

Por fim, a terceira questão que precisa ser enfrentada é em que medida essa produção de vídeos sobre os agentes públicos na ponta, sujeitando estes a múltiplas interpretações, poderá inibir a autonomia destes na realização de suas tarefas, fazendo destes agentes sem iniciativa ou inovação, afetando assim diretamente a efetividade das políticas públicas, pela criação de um clima de "blame avoidance" (evitar a culpa), pela falta de definição do que é certo ou errado no julgamento desse agente de suas ações cotidianas, gerando insegurança e inação? Esse é um risco real, de agentes que assumam nesse cenário uma posição inerte e mecanizada, pelo medo de serem mal interpretados e responsabilizados.  Tênues limites...

Sobre o trabalho do professor, do médico, do policial, do fiscal e do gestor, recaem expectativas da população, e de um modo geral, essas estão estampadas em um normativo procedimental. Não se espera de um agente de segurança que agrida um suspeito na sua forma de imobilização, levando-o ao óbito. Por outro lado, se espera uma regra de procedimento e uma cultura organizacional que oriente a ele na selva do cotidiano.

A falta de uma regra, mesmo que principiológica, é que traz o receio do agir e a insegurança. Mas por outro lado, para além do deontológico, não existe regra que cubra toda a complexidade da ação desses agentes, resgatando as discussões de Lipsky. Essa questão não é tão simples, e no plano das coisas reais, surgirá ainda muita polêmica diante do julgamento coletivo da atuação de um agente público divulgado nas redes sociais. Mas, talvez seja esse o exercício democrático que nos falte nesse mundo de transparência crescente.

Não é uma questão de se falar em excesso de acesso à informação, em um país que ainda se encaminha para enraizar um ethos democrático. Trata-se de se preocupar com a modulação das consequências desse Big Data em relação as políticas públicas e a autonomia necessária dos agentes. O celular é uma arma no júri popular das redes sociais, nas quais nem sempre é tão fácil de definir o que é abuso ou não. Mas, também é um excelente instrumento de controle social nas mãos do cidadão beneficiário das políticas públicas.

Essa discussão não pode ser adiada. Byung-Chul Han, na sua obra "A sociedade da transparência", traz que essa profusão de informações desassossega os indivíduos, como indutor de uma necessidade incessante de mais vigilância e controle. Um movimento que gera medo generalizado, quebra a confiança nas instituições, em especial nos agentes públicos que têm contato direto com a população, em um cenário no qual para cada filmagem adere sempre a narrativa mais pessimista, em um ciclo perigoso para essa relação no contexto da implementação das políticas públicas por esses agentes.

A intolerância com a corrupção, com os abusos em relação aos direitos humanos, praticados por agentes enquadrados como burocratas de nível de rua (Street Level Bureacracy) é um problema sério. E antigo. As novas tecnologias podem trazer soluções para coibir esses abusos, mas ao mesmo tempo, demandam uma accountability específica, que enxergue esse contexto, de uma atuação pontual que se insere em uma política pública, no qual a filmagem pelo smartphone, para reverter na existência de agentes responsáveis e responsabilizados, precisa dialogar com todo esse processo, sob o risco de gerar indignação de curto prazo e pouca ação de longo prazo.

 

 

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