Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Assistência Social ou Desenvolvimento Social? Pelo reconhecimento e legitimidade do trato federativo do SUAS no Governo Lula


Por Redação

Aldaiza Sposati, Professora titular sênior da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora em Serviço Social (PUC-SP). Pesquisadora CNPq. Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social -NEPSAS/PUC-SP

Rosana de Freitas Boullosa, Professora da Universidade de Brasília (UnB)/Departamento de Gestão de Políticas Públicas (GPP/UnB). Doutora em Políticas Públicas (Università IUAV di Venezia - Itália). Coordenadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais da UnB (Neur/Ceam/UnB). Editora da revista Critical Policy Studies

Edgilson Tavares de Araújo, Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Vice coordenador do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS/UFBA).  Doutor em Serviço Social (PUC-SP). Conselheiro e ex-presidente da Associação Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão do Campo de Públicas (ANEPECP). Membro fundador da Rede de Pesquisadores/as em Gestão Social (RGS)

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Os direitos sociais no Brasil encontram inequívocos fundamentos na Constituição Cidadã de 1988. Dentre estes, está o acesso aos direitos socioassistenciais a quem deles necessitar - o que significa dar provisão de atenção e cuidados de proteção social a determinadas necessidades materiais ou imateriais sob financiamento estatal.Pertencem à Seguridade Social, pois a Constituição Federal de 1988 (CF-88) unificou, sob propósitos comuns, os direitos à Saúde, à Previdência Social e à Assistência Social. Um tripé que nem sempre é muito fácil de ser entendido como de direitos ou de assim ser reconhecido. Com essa nova construção, alargou-se a cobertura estatal pública da proteção social, nela incluída a Assistência Social. Passados 30 anos, entende-se também que a Segurança Alimentar deva ser incluída como parte da Seguridade Social brasileira.

A visibilidade desse entendimento é baixa e reside na dificuldade em ser aceita a proteção social como campo de política pública, voltada para efetivação do artigo 6º da CF-88 e garantia de trato da dignidade humana como direito humano e social, ainda persiste. Por isso, é sempre bom lembrar que, quando um/a cidadão/ã, independentemente da idade, gênero, raça ou classe social, requer proteção social pública, não significa que ela/e seja um necessitada/o social, isto é, um/a pobre, miserável, vadio/a pelo fato de não contar com renda pessoal para ser consumidor/a.

A decisão da CF-88 em realizar a expansão da proteção pública estatal exercida pela Seguridade Social foi uma novidade. As políticas sociais no Brasil foram instituídas em tempos e situações diversas, sob identidade individual, responsabilidades e orçamentos específicos. Atuaram (e ainda atuam) isoladamente mesmo quando seus serviços são avizinhados em um só território. À Saúde, um direito de todos, não só do trabalhador formal, coube operar os serviços, historicamente vinculados Previdência e à Assistência Social, junto à Legião Brasileira de Assistência (LBA). À Previdência Social coube a gestão do seguro, uma proteção contributiva, de natureza trabalhista, substitutiva da remuneração salarial do trabalhador formalizado. Já a Assistência Social assumiu a responsabilidade pela gestão do benefício não-contributivo de Renda Mensal Vitalícia, até então de gestão previdenciária, que foi nominado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, como Benefício de Prestação Continuada (BPC).

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A Seguridade Social distinguiu em uma só unidade a proteção social contributiva da não-contributiva ou distributiva. Porém, para se constituir em campo de proteção não bastava à Assistência Social operar um benefício monetário às pessoas idosas com trajetória de trabalho informal ou com tempo incompleto de contribuição para a Previdência Social, mesmo que acrescidas das pessoas com deficiência, desde seu nascimento até a morte. Era preciso construir o campo da política de proteção social distributiva e isso implicou em consolidar novas responsabilidades do Estado Social brasileiro face às desproteções vivenciadas pela população e romper com histórico complexo pautado no assistencialismo, na ausência de direitos humanos e sociais e na falta de transparência na relação público-privado.

A ocupação parcial do campo da Assistência Social no Brasil, até a CF-88, não se deu na gestão direta do Estado, pois, ainda que sustentada com verbas públicas, se manteve sob o poder das esposas de governantes. Em 1942, foi criada a (Fundação) Legião Brasileira de Assistência (FBLA), inicialmente para apoiar famílias de combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Com o tempo, sua ação foi se complexificando, incluindo unidades de atenção à maternidade e à infância, por meio de centros sociais inundados de clubes de mães, sob orientação higienista da puericultura.

A máquina federal do que poderia vir a ser institucionalizado como campo da Assistência Social era o espólio da FLBA em instalações, sobretudo no Nordeste, e de trabalhadores, servidores federais. Se a infraestrutura de saúde passou de pronto para o Ministério da Saúde, o mesmo não aconteceu com a Assistência Social.

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Foram momentos tormentosos entre 1988 e 1995.  A aprovação da Lei Orgânica da Assistência (LOAS) após o veto de Fernando Collor de Mello, que optou pela manutenção da LBA, foi uma luta vigorosa que só alcançou resultados em 1993, com Itamar Franco. Collor manteve a primeira-dama na presidência da LBA atravessada por escândalos de corrupção por desvio de verbas públicas, isenções imorais de impostos e tributos aplicadas pelo uso de falsos certificados de filantropia às entidades vinculadas a parlamentares, os chamados "Anões do Orçamento".

Os anos turbulentos foram marcados pelos embates entre os ventos da pressão popular organizada sobre velhos modos de ver os direitos sociais. A Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS) foi recriada, no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), e nova gestão democrática e paritária foi consolidada no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). O Presidente Fernando Henrique Cardoso extinguiu a LBA em 1995, mas manteve a gestão da primeira-dama, no Programa Comunidade Solidária, com ações focalizadas com organizações da sociedade civil. O peso político desse Programa presidencial foi fortalecido por seu vínculo com a Campanha de Combate à Fome, assentada na incidência de 32 milhões de brasileiros em estado de subnutrição.

Em 1996, começa a operação na SEAS do BPC e do Programa Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Os serviços procedentes da extinta LBA foram mantidos por diretorias regionais.  Até 2002, não foi possível estabilizar o campo de proteção social distributiva uma vez que permaneciam os resquícios da gestão patriarcal exercida pelas primeiras-damas. A ausência de perspectiva de gestão sistêmica e federativa para a Assistência Social se manteve praticamente, inalterada nesse período.

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Em 2003, reacendeu no país, o movimento pela efetiva implantação da LOAS - que acaba de completar 28 anos, em 07 de dezembro de 2022. Após uma década, a lei não se fazia presente em todo o território nacional. O primeiro governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, instituiu o Ministério de Assistência Social (MAS), sob a liderança de uma mulher negra, a então deputada federal Benedita da Silva. De forma concomitante instalou no Gabinete da Presidência, uma comissão de experts, sem vínculo com a gestão do MAS, para desenhar um programa de transferência de renda, de modo unificar subsídios monetários/isenções existentes sob diferentes órgãos, que já mantinham o uso do CADÚnico, sem contar, contudo, com unidade de trato monetário.

Em 2004, o MAS foi extinto e a gestão de seu conteúdo rebaixada para uma Secretaria Nacional, integrada ao novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Razões variadas para essa decisão foram formuladas prevalecendo a avaliação de que o grupo dirigente do MAS era frágil para dirigir um programa nacional de transferência de renda, embora essas fossem tão só da expressão da proteção social monetarizada. A compreensão fragmentada   sobre a Assistência Social federal era expressa como lócus de gestão do BPC (por isso advogados e usuários nominam o BPC de "o LOAS"). Entendeu-se que esse campo não tinha densidade para constituir um Ministério ou para coordenar o Programa de Transferência de Renda, o Bolsa Família. A gestão das transferências monetárias foram gradativamente sendo retiradas da SNAS e deslocadas para outros órgãos, como ocorreu com BPC para o INSS. A transferência de renda constituiu uma secretaria própria com gestão paralela a SNAS, no caso, a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC).

A construção do conteúdo da proteção social distributiva foi historicamente refém de operações   monetarizadas, gestão centralizada e fragmentada em diferentes órgãos, operados sob ausência de vínculos entre a descentralização, participação e canais institucionais de uso contínuo pelas unidades de gestão federativa. Não houve o entendimento da dimensão federativa das atenções herdadas da LBA que incluíam desde vagas de creches a atenções a idosos e às pessoas com deficiência. Não se enxergou ou reconheceu a Assistência Social no Executivo Federal como política pública de direitos!

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Como se pode perceber, até então, a Assistência Social não ganhara hegemonia, visibilidade da sua presença federativa na construção de rede de serviços socioassistenciais. Fazia falta a aprovação de uma Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que pudesse construir o conteúdo dessa política de proteção social para além da monetarização, ocorrendo sua aprovação em outubro de 2004. A regulação dos serviços socioassistenciais enquanto ofertas continuadas da política só ocorreu em 2009.

Nos governos Dilma Rousseff, seguiu-se com o MDS e a SNAS, aprofundando a lógica do desenvolvimento social, principalmente, por meio do Programa Brasil sem Miséria, lançado em junho de 2011, com o objetivo de retirar da situação de pobreza extrema 16,2 milhões de pessoas que viviam com menos de R$70,00 por mês. Houve uma tímida expansão de novos serviços socioassistenciais e supervalorização de instrumentos como o CadÚnico.

O caminho de enfrentamento e luta para superar o precário reconhecimento da Assistência Social como nos esclarece a LOAS, dever de Estado e direito de cidadania, parece encontrar significado no âmbito da disputa argumentativa quanto ao nexo do seu campo com a Seguridade Social ou com o Desenvolvimento Social. A natureza, a finalidade e o lócus dessa política pública se altera em um e outro argumento, sobretudo no que concernem aos objetivos do Sistema Único da Assistência Social (SUAS).

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O vínculo da Assistência Social com a Seguridade Social a revela em sua maior inteireza como parte de um sistema articulado de garantias de proteção social distributiva que busca garantir um conjunto específico de direitos sociais. Sua natureza justifica e orienta, de modo mais direto, sua finalidade realizadora enquanto política pública federativa, assumindo a configuração de sistema único com operação alargada, em estrutura e responsabilidade, um meta-instrumento de política pública, para além da organização de benefícios, serviços e programas ofertados pelas unidades públicas e parceiros da rede privada. O SUAS é também um modelo de gestão participativa e colaborativa que poderia facilmente ser descrito como um exemplo importante de construção e deliberação coletiva. Como lócus, lidamos melhor também com uma disputa ontológica sobre a força das/os trabalhadoras/es do SUAS (assistentes sociais, psicólogas/os, gestoras/es, educadoras/es sociais, cuidadoras/es sociais, advogadas/os, ente outras/os), uma categoria que ainda luta pelo devido reconhecimento social e político enquanto implementadores/as de uma política pública de direitos, que devem atuar de modo crítico e engajado nos serviços socioassistenciais.

Como Desenvolvimento Social, a Assistência Social recebe tratamento ausente da lógica de direitos e se perde como operadora de um sistema, pois a pauta do crescimento objetiva o que é nominado de "portas de saída", isso é, um processo de estímulo ao esforço individual, ficando sua atuação mais facilmente refém daquele passado assistencialista, em competição com outras demandas e interesses. Corre o risco de se perder ou se encontrar tão só como algo restrito à atenção passiva e mais obediente dos pobres, necessitados de transferência desde que cumpram as condicionalidades, privados de qualquer canal ascendente de comunicação entre as unidades federativas e os cidadãos.

Desenvolvimento Social é um campo complexo com diferentes acepções. Embora importante para o país, envolve outras questões, além dos binômios pobreza e riqueza, econômico e social. Compreende dinâmicas diferentes de concepção, produção de informação, gestão, avaliação e mobilização social.

O SUAS sob o foco do desenvolvimento social perdeu centralidade em termos de projeção político-institucional e operou como se sua existência se desse "naturalmente" e fosse êxito dos programas ativados, o que não é verdade. O resultado foi um sistema que tem dificuldades de ver a si mesmo, em sua natureza federativa, recebendo pouca ênfase nas argumentações dos/as decisores/as políticos/as. Uma política pública pouco reconhecida como espaço de produção articulada de direitos, pois suas demandas e ações são reorganizadas e adaptadas em função de outras políticas.

É preciso reafirmar que as gestões federais da Assistência Social, entre 2016 e 2022, com o golpe jurídico e parlamentar, foram agudizando restrições à concretização de direitos sociais, à aplicação de princípios democráticos na gestão nacional do SUAS, que sofreu cortes intensos que deixaram sob penúria a orçamentação para a manutenção da rede nacional serviços socioassistenciais. O Governo Jair Bolsonaro despiu a gestão federal da Assistência Social transferindo parte de suas competências para outros ministérios, aprofundando a ausência da unidade de comando da política pública.

Seguridade Social e Desenvolvimento Social são, portanto, campos que têm suas próprias disputas, público e demandas. A proteção social deve ser oferecida pela garantida do direito, por meio da Assistência Social prestada pelo Estado, com acesso direto, fácil, tipificado, em unidades preparadas, por profissionais bem formados/as, como parte de um sistema sólido, reconhecido, bem operacionalizado, acolhedor, estável, mas também sensível e reflexivo, como deve ser o SUAS. Tudo isso é muito mais fácil quando a Assistência Social é discursivamente e politicamente parte da Seguridade Social, com o protagonismo que qualquer sistema que se pretenda único e universal deve ter. Limitá-la a parte, mesmo que importante, de um campo mais amplo, o do Desenvolvimento Social, significa alterar sua natureza e propósito. Denota também desconsiderar um movimento político pela expansão dos direitos sociais que ainda está em curso no país, afetado por retrocessos como as que temos visto nos últimos anos.

Tal movimento teve seus alcances ancorados em um processo intenso de participação social. Olhar a sua trajetória é também perceber nossos movimentos sociais na construção das profissões da Assistência Social e dos cursos de formação, para conceber a trajetória da política no país. Como resultado, temos um SUAS que nos oferece um passado e um presente construídos por e apoiado em conferências, conselhos, comissões tripartites e bipartites, fundos, além de outras instâncias de diálogo, consulta e deliberação.

O SUAS, mesmo com seus ainda inúmeros problemas, deve ser reconhecido como um modelo concreto e brasileiro de deliberação pública, de garantia de direitos sociais. Um modelo, contudo, que, por ser vivo e orgânico, precisa enfrentar desafios relacionados a sua estabilidade e resiliência. E nisso, ainda temos muito o que caminhar, não obstante os avanços alcançados antes do golpe contra a democracia e a presidenta Dilma Rousseff.

Neste urgente presente, três grandes desafios, pelo menos, precisam ser enfrentados: os sentidos e significados da assistência social no Brasil, seu lócus de produção e a incorporação da perspectiva interseccional ao SUAS. Os dois primeiros trazem de volta para o centro do debate disputas argumentativas que alguns acreditavam superadas, mas que retornaram nos últimos anos com força em nossa atual conformação social, cada vez mais marcada por afetos como medo, ódio, desespero e outras expressões produzidas por uma afetação mais ampla de um abandono público politicamente produzido. Sem os retomarmos, não avançaremos! Preocupa-nos quando vemos alguns pares entusiasmados com a volta de um governo de ampla frente progressista, com Lula à frente, achando que naturalmente retomaremos a caminhada pela defesa da Política de Assistência Social de onde argumentativa e valorativamente havíamos parado. Não vamos! É preciso mais do que a inércia!

Mas passemos aos desafios. O primeiro deles diz respeito aos sentidos e significados da Assistência Social no Brasil. Logo de cara, ele nos remete para uma emocionada arena política em que disputas entre compreensões antagônicas da relação entre Estado e Sociedade, entre indivíduo e coletivo, entre público e privado, mas também, entre Assistência Social e assistencialismo, universalização e focalização, transversalidade e interseccionalidade. São valores em debate que conformam parte do jogo em torno dos direitos socioassistenciais como campo político, mesmo quando não são explicitados. Construções de sentido que imaginávamos ter realizado se fragilizaram. Retrocedemos em uma disputa valorativa, na qual os terrenos e tecidos já ganhos, que ainda eram pouco articulados entre si, não tiveram forças suficientes para resistir aos ventos ultradireitistas, liberais e opressores (aporofóbicos, sexistas, racistas, capacitistas etc.) do atual governo Bolsonaro.

Logo em seguida, porém, nos remete para a ideia de um sistema discursivamente pouco resiliente em termos de políticas públicas, reforçado institucionalmente pelo desamparo do órgão gestor federal, que perdeu sua coordenação interfederativa. Chamamos a atenção que é necessário entender que linguagem, argumento e discurso são elementos essenciais de políticas públicas[i], para além de lógicas prescritivas e normativas. São por meio deles que transitam os valores, o que deveria ter nos levado para práticas comunicativas mais dialógicas, capazes de ampliar o debate público, as arenas públicas. O não enfrentamento deste desafio, que tem a ver com a falta de protagonismo do SUAS nos últimos anos, nos fez retroceder para um ponto ainda mais tenso de disputa de ideias. Não retomar o protagonismo é um erro que não podemos mais repetir!

O segundo desafio refere-se ao lócus de produção da Assistência Social e a sua materialidade, expressa, principalmente, nos benefícios, redes de serviços socioassistenciais e programas de transferência de renda. Por seu caráter de proteção social não-contributiva, historicamente tem lidado com lugares secundários na configuração institucional dos executivos das instâncias federais, estaduais e municipais, muitas vezes incorporada como secretaria especial ou como superintendência - situação muito diferente da Previdência Social, da Saúde e de outras políticas públicas. A Assistência Social vem sendo deliberadamente escondida, sem o protagonismo devido, porque ainda é praticada como uma instância de assistência ao povo, erroneamente tratado como os "vulneráveis" ou vista como a política para atender aos "pobres".

Os profissionais dos 8.545 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), que atuam na Proteção Social Básica, com caráter mais preventivo dos riscos e vulnerabilidades sociais, apesar dos avanços, são insuficientes e irregularmente distribuídos pelo país, tendo de dar conta de muitas demandas dentro da lógica instrumental do desenvolvimento social. O CadÚnico, por exemplo, tem pouca sensibilidade para as necessidades concretas de prestação dos serviços socioassistenciais regulados pelo SUAS - aliás, deveria estar esse a serviço do SUAS e não o contrário, embora esta seja matéria para uma outra discussão. A situação se torna ainda mais grave quando passamos para a realidade dos ainda mais escassos 2.780 Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), dos 300 Centros de Referência para a População em Situação de Rua (CentroPop), dos 1871 Centros-dia de Referência para Pessoas com Deficiência, dentre outros unidades que ofertam serviços socioassistencias, com profissionais em estado de forte pressão. Aliás, é importante frisar que tais profissionais não se reconhecem valorativamente, tampouco gramaticalmente, no campo do Desenvolvimento Social. Não se dizem trabalhadoras(es) do desenvolvimento social, mas da Assistência Social, do SUAS, dos seus equipamentos e serviços.

Por fim, o terceiro desafio diz respeito a uma necessária perspectiva interseccional para promover mais concretamente uma sociedade mais inclusiva por meio do SUAS. Este, enquanto sistema público, precisa avançar quanto a responsabilidade da não reprodução dos padrões de desigualdade hoje encontrados no Brasil. É preciso entender que tais avanços devem estar entrelaçados com as condições objetivas da população brasileira nas quais as desigualdades são marcadas pelas relações de gênero, de raça, da faixa etária, dos territórios vividos, e ainda, pelo grau de presença de condições relacionais de segurança social. Por isso, é preciso garantirmos além da segurança de renda, outras seguranças afiançadas em todo o arcabouço normativo do SUAS (seguranças de acolhida, de convívio, de desenvolvimento de autonomia, de benefícios materiais ou em pecúnia) considerando as intersecções que marcam os/as seus/suas usuários/as.

Não dá para pensar nas ações de governos e nas ações públicas, que envolvem mais atores, como caixinhas separadas. Sujeitas/os sociais sobre os/as quais recaem tais ações não sentem ou sofrem discriminações e opressões em caixinhas. O sofrimento, a fome, a pobreza, a dor tem de ser analisada sob um prisma interseccional, como já nos ensinou o feminismo negro. Quem sente, quem se afeta, não sente por partes. As afetações são complexas e, para além do combate as privações materiais, torna-se necessário atentar para outras dimensões menos tangíveis que afetam pessoas vulnerabilizadas, tais como, a subalternidade, a vergonha, a baixa autoestima, o medo, a falta de esperança, a baixa capacidade de agência, o pouco empoderamento, entre outros fatores amplamente tratados na literatura especializada. Para lidar com tais fatores, certamente, precisamos fortalecer os serviços socioassistenciais numa perspectiva de respeito às diversidades, combate aos preconceitos e desenho de ofertas considerando que não existem, por exemplo, apenas mulheres, mas mulheres negras, LGBTQIA+, indígenas, com deficiência, de comunidades tradicionais. Temos de avançar no SUAS com relação as abordagens sobre discriminação que consideram a subinclusão, ou seja, quando nos processos discriminatórios a diferença torna invisível um conjunto de problemas; bem como, a superinclusão, quando a própria diferença é invisibilizada[ii].

O enfrentamento desses três desafios passa por defendermos a criação do Ministério da Assistência Social, o qual pode ou não incorporar outras seguranças sociais, como a Segurança Alimentar e benefícios monetários, com trato permanente e gestão federativa democrática, priorizando a escuta e demandas dos/as usuários/as do SUAS. Estes apontamentos ao novo Governo Lula a partir de 2023, são para reforçar que precisamos trazer o SUAS de volta para ao centro do debate e da institucionalidade política, pois a sua materialidade se dá essencialmente pela garantia da oferta de serviços socioassistenciais articulados intra e intersetorialmente, com referência e contrarreferência claras, com fluxos de atendimento, acompanhamento e encaminhamento bem definidos, considerando as capacidades estatais da diversidade de municípios do Brasil. Entender como estamos é fundamental para saber por onde nos guiaremos.

Por todos os argumentos trazidos aqui, defendemos a legitimidade da Assistência Social realizada em um ministério próprio, como um campo singular de políticas públicas, sem o risco de (mais um) apagamento dentro de um hiperbólico ou metonímico "desenvolvimento social". Legitimar a política por sua essência é necessário a fim de que se fortaleçam as coalizões para uma reconstrução do pacto federativo visando o fortalecimento da Assistência Social enquanto política pública garantidora de direitos.

Que nesse novo governo Lula, de esperanças e desafios, toda pessoa que necessite concretizar direitos socioassistenciais possa tê-los garantidos, sentindo-se acolhida em suas necessidades, respeitada em seus vínculos e suas escolhas, socialmente protegida, garantida pela solidez e compreensividade de um SUAS cada vez mais amplo. Devemos estar atentas/os para que a Assistência Social não seja colocada num escopo de elipse.

Notas

[i] Fischer, Frank (2007). Deliberative Policy Analysis as Practical Reason: Integrating Empirical and Normative Arguments. In: FISHER, F; MILLER, G. J.; SIDNEY, M (ed.) Handbook of public policy analysis: theory, politics, and methods / edited by Frank Fischer, Gerald J. Nova York: CRC Press, Taylor & Francis Group.

[ii] Crenshaw, Kimberlé. (2012). A Interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. Curso Educação, Relações Raciais e Direitos Humanos (1ª ed). 27 de setembro de 2012. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/?p=1533 Acesso em 30 dez. 2017.

Aldaiza Sposati, Professora titular sênior da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora em Serviço Social (PUC-SP). Pesquisadora CNPq. Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social -NEPSAS/PUC-SP

Rosana de Freitas Boullosa, Professora da Universidade de Brasília (UnB)/Departamento de Gestão de Políticas Públicas (GPP/UnB). Doutora em Políticas Públicas (Università IUAV di Venezia - Itália). Coordenadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais da UnB (Neur/Ceam/UnB). Editora da revista Critical Policy Studies

Edgilson Tavares de Araújo, Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Vice coordenador do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS/UFBA).  Doutor em Serviço Social (PUC-SP). Conselheiro e ex-presidente da Associação Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão do Campo de Públicas (ANEPECP). Membro fundador da Rede de Pesquisadores/as em Gestão Social (RGS)

Os direitos sociais no Brasil encontram inequívocos fundamentos na Constituição Cidadã de 1988. Dentre estes, está o acesso aos direitos socioassistenciais a quem deles necessitar - o que significa dar provisão de atenção e cuidados de proteção social a determinadas necessidades materiais ou imateriais sob financiamento estatal.Pertencem à Seguridade Social, pois a Constituição Federal de 1988 (CF-88) unificou, sob propósitos comuns, os direitos à Saúde, à Previdência Social e à Assistência Social. Um tripé que nem sempre é muito fácil de ser entendido como de direitos ou de assim ser reconhecido. Com essa nova construção, alargou-se a cobertura estatal pública da proteção social, nela incluída a Assistência Social. Passados 30 anos, entende-se também que a Segurança Alimentar deva ser incluída como parte da Seguridade Social brasileira.

A visibilidade desse entendimento é baixa e reside na dificuldade em ser aceita a proteção social como campo de política pública, voltada para efetivação do artigo 6º da CF-88 e garantia de trato da dignidade humana como direito humano e social, ainda persiste. Por isso, é sempre bom lembrar que, quando um/a cidadão/ã, independentemente da idade, gênero, raça ou classe social, requer proteção social pública, não significa que ela/e seja um necessitada/o social, isto é, um/a pobre, miserável, vadio/a pelo fato de não contar com renda pessoal para ser consumidor/a.

A decisão da CF-88 em realizar a expansão da proteção pública estatal exercida pela Seguridade Social foi uma novidade. As políticas sociais no Brasil foram instituídas em tempos e situações diversas, sob identidade individual, responsabilidades e orçamentos específicos. Atuaram (e ainda atuam) isoladamente mesmo quando seus serviços são avizinhados em um só território. À Saúde, um direito de todos, não só do trabalhador formal, coube operar os serviços, historicamente vinculados Previdência e à Assistência Social, junto à Legião Brasileira de Assistência (LBA). À Previdência Social coube a gestão do seguro, uma proteção contributiva, de natureza trabalhista, substitutiva da remuneração salarial do trabalhador formalizado. Já a Assistência Social assumiu a responsabilidade pela gestão do benefício não-contributivo de Renda Mensal Vitalícia, até então de gestão previdenciária, que foi nominado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, como Benefício de Prestação Continuada (BPC).

A Seguridade Social distinguiu em uma só unidade a proteção social contributiva da não-contributiva ou distributiva. Porém, para se constituir em campo de proteção não bastava à Assistência Social operar um benefício monetário às pessoas idosas com trajetória de trabalho informal ou com tempo incompleto de contribuição para a Previdência Social, mesmo que acrescidas das pessoas com deficiência, desde seu nascimento até a morte. Era preciso construir o campo da política de proteção social distributiva e isso implicou em consolidar novas responsabilidades do Estado Social brasileiro face às desproteções vivenciadas pela população e romper com histórico complexo pautado no assistencialismo, na ausência de direitos humanos e sociais e na falta de transparência na relação público-privado.

A ocupação parcial do campo da Assistência Social no Brasil, até a CF-88, não se deu na gestão direta do Estado, pois, ainda que sustentada com verbas públicas, se manteve sob o poder das esposas de governantes. Em 1942, foi criada a (Fundação) Legião Brasileira de Assistência (FBLA), inicialmente para apoiar famílias de combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Com o tempo, sua ação foi se complexificando, incluindo unidades de atenção à maternidade e à infância, por meio de centros sociais inundados de clubes de mães, sob orientação higienista da puericultura.

A máquina federal do que poderia vir a ser institucionalizado como campo da Assistência Social era o espólio da FLBA em instalações, sobretudo no Nordeste, e de trabalhadores, servidores federais. Se a infraestrutura de saúde passou de pronto para o Ministério da Saúde, o mesmo não aconteceu com a Assistência Social.

Foram momentos tormentosos entre 1988 e 1995.  A aprovação da Lei Orgânica da Assistência (LOAS) após o veto de Fernando Collor de Mello, que optou pela manutenção da LBA, foi uma luta vigorosa que só alcançou resultados em 1993, com Itamar Franco. Collor manteve a primeira-dama na presidência da LBA atravessada por escândalos de corrupção por desvio de verbas públicas, isenções imorais de impostos e tributos aplicadas pelo uso de falsos certificados de filantropia às entidades vinculadas a parlamentares, os chamados "Anões do Orçamento".

Os anos turbulentos foram marcados pelos embates entre os ventos da pressão popular organizada sobre velhos modos de ver os direitos sociais. A Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS) foi recriada, no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), e nova gestão democrática e paritária foi consolidada no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). O Presidente Fernando Henrique Cardoso extinguiu a LBA em 1995, mas manteve a gestão da primeira-dama, no Programa Comunidade Solidária, com ações focalizadas com organizações da sociedade civil. O peso político desse Programa presidencial foi fortalecido por seu vínculo com a Campanha de Combate à Fome, assentada na incidência de 32 milhões de brasileiros em estado de subnutrição.

Em 1996, começa a operação na SEAS do BPC e do Programa Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Os serviços procedentes da extinta LBA foram mantidos por diretorias regionais.  Até 2002, não foi possível estabilizar o campo de proteção social distributiva uma vez que permaneciam os resquícios da gestão patriarcal exercida pelas primeiras-damas. A ausência de perspectiva de gestão sistêmica e federativa para a Assistência Social se manteve praticamente, inalterada nesse período.

Em 2003, reacendeu no país, o movimento pela efetiva implantação da LOAS - que acaba de completar 28 anos, em 07 de dezembro de 2022. Após uma década, a lei não se fazia presente em todo o território nacional. O primeiro governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, instituiu o Ministério de Assistência Social (MAS), sob a liderança de uma mulher negra, a então deputada federal Benedita da Silva. De forma concomitante instalou no Gabinete da Presidência, uma comissão de experts, sem vínculo com a gestão do MAS, para desenhar um programa de transferência de renda, de modo unificar subsídios monetários/isenções existentes sob diferentes órgãos, que já mantinham o uso do CADÚnico, sem contar, contudo, com unidade de trato monetário.

Em 2004, o MAS foi extinto e a gestão de seu conteúdo rebaixada para uma Secretaria Nacional, integrada ao novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Razões variadas para essa decisão foram formuladas prevalecendo a avaliação de que o grupo dirigente do MAS era frágil para dirigir um programa nacional de transferência de renda, embora essas fossem tão só da expressão da proteção social monetarizada. A compreensão fragmentada   sobre a Assistência Social federal era expressa como lócus de gestão do BPC (por isso advogados e usuários nominam o BPC de "o LOAS"). Entendeu-se que esse campo não tinha densidade para constituir um Ministério ou para coordenar o Programa de Transferência de Renda, o Bolsa Família. A gestão das transferências monetárias foram gradativamente sendo retiradas da SNAS e deslocadas para outros órgãos, como ocorreu com BPC para o INSS. A transferência de renda constituiu uma secretaria própria com gestão paralela a SNAS, no caso, a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC).

A construção do conteúdo da proteção social distributiva foi historicamente refém de operações   monetarizadas, gestão centralizada e fragmentada em diferentes órgãos, operados sob ausência de vínculos entre a descentralização, participação e canais institucionais de uso contínuo pelas unidades de gestão federativa. Não houve o entendimento da dimensão federativa das atenções herdadas da LBA que incluíam desde vagas de creches a atenções a idosos e às pessoas com deficiência. Não se enxergou ou reconheceu a Assistência Social no Executivo Federal como política pública de direitos!

Como se pode perceber, até então, a Assistência Social não ganhara hegemonia, visibilidade da sua presença federativa na construção de rede de serviços socioassistenciais. Fazia falta a aprovação de uma Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que pudesse construir o conteúdo dessa política de proteção social para além da monetarização, ocorrendo sua aprovação em outubro de 2004. A regulação dos serviços socioassistenciais enquanto ofertas continuadas da política só ocorreu em 2009.

Nos governos Dilma Rousseff, seguiu-se com o MDS e a SNAS, aprofundando a lógica do desenvolvimento social, principalmente, por meio do Programa Brasil sem Miséria, lançado em junho de 2011, com o objetivo de retirar da situação de pobreza extrema 16,2 milhões de pessoas que viviam com menos de R$70,00 por mês. Houve uma tímida expansão de novos serviços socioassistenciais e supervalorização de instrumentos como o CadÚnico.

O caminho de enfrentamento e luta para superar o precário reconhecimento da Assistência Social como nos esclarece a LOAS, dever de Estado e direito de cidadania, parece encontrar significado no âmbito da disputa argumentativa quanto ao nexo do seu campo com a Seguridade Social ou com o Desenvolvimento Social. A natureza, a finalidade e o lócus dessa política pública se altera em um e outro argumento, sobretudo no que concernem aos objetivos do Sistema Único da Assistência Social (SUAS).

O vínculo da Assistência Social com a Seguridade Social a revela em sua maior inteireza como parte de um sistema articulado de garantias de proteção social distributiva que busca garantir um conjunto específico de direitos sociais. Sua natureza justifica e orienta, de modo mais direto, sua finalidade realizadora enquanto política pública federativa, assumindo a configuração de sistema único com operação alargada, em estrutura e responsabilidade, um meta-instrumento de política pública, para além da organização de benefícios, serviços e programas ofertados pelas unidades públicas e parceiros da rede privada. O SUAS é também um modelo de gestão participativa e colaborativa que poderia facilmente ser descrito como um exemplo importante de construção e deliberação coletiva. Como lócus, lidamos melhor também com uma disputa ontológica sobre a força das/os trabalhadoras/es do SUAS (assistentes sociais, psicólogas/os, gestoras/es, educadoras/es sociais, cuidadoras/es sociais, advogadas/os, ente outras/os), uma categoria que ainda luta pelo devido reconhecimento social e político enquanto implementadores/as de uma política pública de direitos, que devem atuar de modo crítico e engajado nos serviços socioassistenciais.

Como Desenvolvimento Social, a Assistência Social recebe tratamento ausente da lógica de direitos e se perde como operadora de um sistema, pois a pauta do crescimento objetiva o que é nominado de "portas de saída", isso é, um processo de estímulo ao esforço individual, ficando sua atuação mais facilmente refém daquele passado assistencialista, em competição com outras demandas e interesses. Corre o risco de se perder ou se encontrar tão só como algo restrito à atenção passiva e mais obediente dos pobres, necessitados de transferência desde que cumpram as condicionalidades, privados de qualquer canal ascendente de comunicação entre as unidades federativas e os cidadãos.

Desenvolvimento Social é um campo complexo com diferentes acepções. Embora importante para o país, envolve outras questões, além dos binômios pobreza e riqueza, econômico e social. Compreende dinâmicas diferentes de concepção, produção de informação, gestão, avaliação e mobilização social.

O SUAS sob o foco do desenvolvimento social perdeu centralidade em termos de projeção político-institucional e operou como se sua existência se desse "naturalmente" e fosse êxito dos programas ativados, o que não é verdade. O resultado foi um sistema que tem dificuldades de ver a si mesmo, em sua natureza federativa, recebendo pouca ênfase nas argumentações dos/as decisores/as políticos/as. Uma política pública pouco reconhecida como espaço de produção articulada de direitos, pois suas demandas e ações são reorganizadas e adaptadas em função de outras políticas.

É preciso reafirmar que as gestões federais da Assistência Social, entre 2016 e 2022, com o golpe jurídico e parlamentar, foram agudizando restrições à concretização de direitos sociais, à aplicação de princípios democráticos na gestão nacional do SUAS, que sofreu cortes intensos que deixaram sob penúria a orçamentação para a manutenção da rede nacional serviços socioassistenciais. O Governo Jair Bolsonaro despiu a gestão federal da Assistência Social transferindo parte de suas competências para outros ministérios, aprofundando a ausência da unidade de comando da política pública.

Seguridade Social e Desenvolvimento Social são, portanto, campos que têm suas próprias disputas, público e demandas. A proteção social deve ser oferecida pela garantida do direito, por meio da Assistência Social prestada pelo Estado, com acesso direto, fácil, tipificado, em unidades preparadas, por profissionais bem formados/as, como parte de um sistema sólido, reconhecido, bem operacionalizado, acolhedor, estável, mas também sensível e reflexivo, como deve ser o SUAS. Tudo isso é muito mais fácil quando a Assistência Social é discursivamente e politicamente parte da Seguridade Social, com o protagonismo que qualquer sistema que se pretenda único e universal deve ter. Limitá-la a parte, mesmo que importante, de um campo mais amplo, o do Desenvolvimento Social, significa alterar sua natureza e propósito. Denota também desconsiderar um movimento político pela expansão dos direitos sociais que ainda está em curso no país, afetado por retrocessos como as que temos visto nos últimos anos.

Tal movimento teve seus alcances ancorados em um processo intenso de participação social. Olhar a sua trajetória é também perceber nossos movimentos sociais na construção das profissões da Assistência Social e dos cursos de formação, para conceber a trajetória da política no país. Como resultado, temos um SUAS que nos oferece um passado e um presente construídos por e apoiado em conferências, conselhos, comissões tripartites e bipartites, fundos, além de outras instâncias de diálogo, consulta e deliberação.

O SUAS, mesmo com seus ainda inúmeros problemas, deve ser reconhecido como um modelo concreto e brasileiro de deliberação pública, de garantia de direitos sociais. Um modelo, contudo, que, por ser vivo e orgânico, precisa enfrentar desafios relacionados a sua estabilidade e resiliência. E nisso, ainda temos muito o que caminhar, não obstante os avanços alcançados antes do golpe contra a democracia e a presidenta Dilma Rousseff.

Neste urgente presente, três grandes desafios, pelo menos, precisam ser enfrentados: os sentidos e significados da assistência social no Brasil, seu lócus de produção e a incorporação da perspectiva interseccional ao SUAS. Os dois primeiros trazem de volta para o centro do debate disputas argumentativas que alguns acreditavam superadas, mas que retornaram nos últimos anos com força em nossa atual conformação social, cada vez mais marcada por afetos como medo, ódio, desespero e outras expressões produzidas por uma afetação mais ampla de um abandono público politicamente produzido. Sem os retomarmos, não avançaremos! Preocupa-nos quando vemos alguns pares entusiasmados com a volta de um governo de ampla frente progressista, com Lula à frente, achando que naturalmente retomaremos a caminhada pela defesa da Política de Assistência Social de onde argumentativa e valorativamente havíamos parado. Não vamos! É preciso mais do que a inércia!

Mas passemos aos desafios. O primeiro deles diz respeito aos sentidos e significados da Assistência Social no Brasil. Logo de cara, ele nos remete para uma emocionada arena política em que disputas entre compreensões antagônicas da relação entre Estado e Sociedade, entre indivíduo e coletivo, entre público e privado, mas também, entre Assistência Social e assistencialismo, universalização e focalização, transversalidade e interseccionalidade. São valores em debate que conformam parte do jogo em torno dos direitos socioassistenciais como campo político, mesmo quando não são explicitados. Construções de sentido que imaginávamos ter realizado se fragilizaram. Retrocedemos em uma disputa valorativa, na qual os terrenos e tecidos já ganhos, que ainda eram pouco articulados entre si, não tiveram forças suficientes para resistir aos ventos ultradireitistas, liberais e opressores (aporofóbicos, sexistas, racistas, capacitistas etc.) do atual governo Bolsonaro.

Logo em seguida, porém, nos remete para a ideia de um sistema discursivamente pouco resiliente em termos de políticas públicas, reforçado institucionalmente pelo desamparo do órgão gestor federal, que perdeu sua coordenação interfederativa. Chamamos a atenção que é necessário entender que linguagem, argumento e discurso são elementos essenciais de políticas públicas[i], para além de lógicas prescritivas e normativas. São por meio deles que transitam os valores, o que deveria ter nos levado para práticas comunicativas mais dialógicas, capazes de ampliar o debate público, as arenas públicas. O não enfrentamento deste desafio, que tem a ver com a falta de protagonismo do SUAS nos últimos anos, nos fez retroceder para um ponto ainda mais tenso de disputa de ideias. Não retomar o protagonismo é um erro que não podemos mais repetir!

O segundo desafio refere-se ao lócus de produção da Assistência Social e a sua materialidade, expressa, principalmente, nos benefícios, redes de serviços socioassistenciais e programas de transferência de renda. Por seu caráter de proteção social não-contributiva, historicamente tem lidado com lugares secundários na configuração institucional dos executivos das instâncias federais, estaduais e municipais, muitas vezes incorporada como secretaria especial ou como superintendência - situação muito diferente da Previdência Social, da Saúde e de outras políticas públicas. A Assistência Social vem sendo deliberadamente escondida, sem o protagonismo devido, porque ainda é praticada como uma instância de assistência ao povo, erroneamente tratado como os "vulneráveis" ou vista como a política para atender aos "pobres".

Os profissionais dos 8.545 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), que atuam na Proteção Social Básica, com caráter mais preventivo dos riscos e vulnerabilidades sociais, apesar dos avanços, são insuficientes e irregularmente distribuídos pelo país, tendo de dar conta de muitas demandas dentro da lógica instrumental do desenvolvimento social. O CadÚnico, por exemplo, tem pouca sensibilidade para as necessidades concretas de prestação dos serviços socioassistenciais regulados pelo SUAS - aliás, deveria estar esse a serviço do SUAS e não o contrário, embora esta seja matéria para uma outra discussão. A situação se torna ainda mais grave quando passamos para a realidade dos ainda mais escassos 2.780 Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), dos 300 Centros de Referência para a População em Situação de Rua (CentroPop), dos 1871 Centros-dia de Referência para Pessoas com Deficiência, dentre outros unidades que ofertam serviços socioassistencias, com profissionais em estado de forte pressão. Aliás, é importante frisar que tais profissionais não se reconhecem valorativamente, tampouco gramaticalmente, no campo do Desenvolvimento Social. Não se dizem trabalhadoras(es) do desenvolvimento social, mas da Assistência Social, do SUAS, dos seus equipamentos e serviços.

Por fim, o terceiro desafio diz respeito a uma necessária perspectiva interseccional para promover mais concretamente uma sociedade mais inclusiva por meio do SUAS. Este, enquanto sistema público, precisa avançar quanto a responsabilidade da não reprodução dos padrões de desigualdade hoje encontrados no Brasil. É preciso entender que tais avanços devem estar entrelaçados com as condições objetivas da população brasileira nas quais as desigualdades são marcadas pelas relações de gênero, de raça, da faixa etária, dos territórios vividos, e ainda, pelo grau de presença de condições relacionais de segurança social. Por isso, é preciso garantirmos além da segurança de renda, outras seguranças afiançadas em todo o arcabouço normativo do SUAS (seguranças de acolhida, de convívio, de desenvolvimento de autonomia, de benefícios materiais ou em pecúnia) considerando as intersecções que marcam os/as seus/suas usuários/as.

Não dá para pensar nas ações de governos e nas ações públicas, que envolvem mais atores, como caixinhas separadas. Sujeitas/os sociais sobre os/as quais recaem tais ações não sentem ou sofrem discriminações e opressões em caixinhas. O sofrimento, a fome, a pobreza, a dor tem de ser analisada sob um prisma interseccional, como já nos ensinou o feminismo negro. Quem sente, quem se afeta, não sente por partes. As afetações são complexas e, para além do combate as privações materiais, torna-se necessário atentar para outras dimensões menos tangíveis que afetam pessoas vulnerabilizadas, tais como, a subalternidade, a vergonha, a baixa autoestima, o medo, a falta de esperança, a baixa capacidade de agência, o pouco empoderamento, entre outros fatores amplamente tratados na literatura especializada. Para lidar com tais fatores, certamente, precisamos fortalecer os serviços socioassistenciais numa perspectiva de respeito às diversidades, combate aos preconceitos e desenho de ofertas considerando que não existem, por exemplo, apenas mulheres, mas mulheres negras, LGBTQIA+, indígenas, com deficiência, de comunidades tradicionais. Temos de avançar no SUAS com relação as abordagens sobre discriminação que consideram a subinclusão, ou seja, quando nos processos discriminatórios a diferença torna invisível um conjunto de problemas; bem como, a superinclusão, quando a própria diferença é invisibilizada[ii].

O enfrentamento desses três desafios passa por defendermos a criação do Ministério da Assistência Social, o qual pode ou não incorporar outras seguranças sociais, como a Segurança Alimentar e benefícios monetários, com trato permanente e gestão federativa democrática, priorizando a escuta e demandas dos/as usuários/as do SUAS. Estes apontamentos ao novo Governo Lula a partir de 2023, são para reforçar que precisamos trazer o SUAS de volta para ao centro do debate e da institucionalidade política, pois a sua materialidade se dá essencialmente pela garantia da oferta de serviços socioassistenciais articulados intra e intersetorialmente, com referência e contrarreferência claras, com fluxos de atendimento, acompanhamento e encaminhamento bem definidos, considerando as capacidades estatais da diversidade de municípios do Brasil. Entender como estamos é fundamental para saber por onde nos guiaremos.

Por todos os argumentos trazidos aqui, defendemos a legitimidade da Assistência Social realizada em um ministério próprio, como um campo singular de políticas públicas, sem o risco de (mais um) apagamento dentro de um hiperbólico ou metonímico "desenvolvimento social". Legitimar a política por sua essência é necessário a fim de que se fortaleçam as coalizões para uma reconstrução do pacto federativo visando o fortalecimento da Assistência Social enquanto política pública garantidora de direitos.

Que nesse novo governo Lula, de esperanças e desafios, toda pessoa que necessite concretizar direitos socioassistenciais possa tê-los garantidos, sentindo-se acolhida em suas necessidades, respeitada em seus vínculos e suas escolhas, socialmente protegida, garantida pela solidez e compreensividade de um SUAS cada vez mais amplo. Devemos estar atentas/os para que a Assistência Social não seja colocada num escopo de elipse.

Notas

[i] Fischer, Frank (2007). Deliberative Policy Analysis as Practical Reason: Integrating Empirical and Normative Arguments. In: FISHER, F; MILLER, G. J.; SIDNEY, M (ed.) Handbook of public policy analysis: theory, politics, and methods / edited by Frank Fischer, Gerald J. Nova York: CRC Press, Taylor & Francis Group.

[ii] Crenshaw, Kimberlé. (2012). A Interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. Curso Educação, Relações Raciais e Direitos Humanos (1ª ed). 27 de setembro de 2012. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/?p=1533 Acesso em 30 dez. 2017.

Aldaiza Sposati, Professora titular sênior da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora em Serviço Social (PUC-SP). Pesquisadora CNPq. Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social -NEPSAS/PUC-SP

Rosana de Freitas Boullosa, Professora da Universidade de Brasília (UnB)/Departamento de Gestão de Políticas Públicas (GPP/UnB). Doutora em Políticas Públicas (Università IUAV di Venezia - Itália). Coordenadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais da UnB (Neur/Ceam/UnB). Editora da revista Critical Policy Studies

Edgilson Tavares de Araújo, Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Vice coordenador do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS/UFBA).  Doutor em Serviço Social (PUC-SP). Conselheiro e ex-presidente da Associação Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão do Campo de Públicas (ANEPECP). Membro fundador da Rede de Pesquisadores/as em Gestão Social (RGS)

Os direitos sociais no Brasil encontram inequívocos fundamentos na Constituição Cidadã de 1988. Dentre estes, está o acesso aos direitos socioassistenciais a quem deles necessitar - o que significa dar provisão de atenção e cuidados de proteção social a determinadas necessidades materiais ou imateriais sob financiamento estatal.Pertencem à Seguridade Social, pois a Constituição Federal de 1988 (CF-88) unificou, sob propósitos comuns, os direitos à Saúde, à Previdência Social e à Assistência Social. Um tripé que nem sempre é muito fácil de ser entendido como de direitos ou de assim ser reconhecido. Com essa nova construção, alargou-se a cobertura estatal pública da proteção social, nela incluída a Assistência Social. Passados 30 anos, entende-se também que a Segurança Alimentar deva ser incluída como parte da Seguridade Social brasileira.

A visibilidade desse entendimento é baixa e reside na dificuldade em ser aceita a proteção social como campo de política pública, voltada para efetivação do artigo 6º da CF-88 e garantia de trato da dignidade humana como direito humano e social, ainda persiste. Por isso, é sempre bom lembrar que, quando um/a cidadão/ã, independentemente da idade, gênero, raça ou classe social, requer proteção social pública, não significa que ela/e seja um necessitada/o social, isto é, um/a pobre, miserável, vadio/a pelo fato de não contar com renda pessoal para ser consumidor/a.

A decisão da CF-88 em realizar a expansão da proteção pública estatal exercida pela Seguridade Social foi uma novidade. As políticas sociais no Brasil foram instituídas em tempos e situações diversas, sob identidade individual, responsabilidades e orçamentos específicos. Atuaram (e ainda atuam) isoladamente mesmo quando seus serviços são avizinhados em um só território. À Saúde, um direito de todos, não só do trabalhador formal, coube operar os serviços, historicamente vinculados Previdência e à Assistência Social, junto à Legião Brasileira de Assistência (LBA). À Previdência Social coube a gestão do seguro, uma proteção contributiva, de natureza trabalhista, substitutiva da remuneração salarial do trabalhador formalizado. Já a Assistência Social assumiu a responsabilidade pela gestão do benefício não-contributivo de Renda Mensal Vitalícia, até então de gestão previdenciária, que foi nominado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, como Benefício de Prestação Continuada (BPC).

A Seguridade Social distinguiu em uma só unidade a proteção social contributiva da não-contributiva ou distributiva. Porém, para se constituir em campo de proteção não bastava à Assistência Social operar um benefício monetário às pessoas idosas com trajetória de trabalho informal ou com tempo incompleto de contribuição para a Previdência Social, mesmo que acrescidas das pessoas com deficiência, desde seu nascimento até a morte. Era preciso construir o campo da política de proteção social distributiva e isso implicou em consolidar novas responsabilidades do Estado Social brasileiro face às desproteções vivenciadas pela população e romper com histórico complexo pautado no assistencialismo, na ausência de direitos humanos e sociais e na falta de transparência na relação público-privado.

A ocupação parcial do campo da Assistência Social no Brasil, até a CF-88, não se deu na gestão direta do Estado, pois, ainda que sustentada com verbas públicas, se manteve sob o poder das esposas de governantes. Em 1942, foi criada a (Fundação) Legião Brasileira de Assistência (FBLA), inicialmente para apoiar famílias de combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Com o tempo, sua ação foi se complexificando, incluindo unidades de atenção à maternidade e à infância, por meio de centros sociais inundados de clubes de mães, sob orientação higienista da puericultura.

A máquina federal do que poderia vir a ser institucionalizado como campo da Assistência Social era o espólio da FLBA em instalações, sobretudo no Nordeste, e de trabalhadores, servidores federais. Se a infraestrutura de saúde passou de pronto para o Ministério da Saúde, o mesmo não aconteceu com a Assistência Social.

Foram momentos tormentosos entre 1988 e 1995.  A aprovação da Lei Orgânica da Assistência (LOAS) após o veto de Fernando Collor de Mello, que optou pela manutenção da LBA, foi uma luta vigorosa que só alcançou resultados em 1993, com Itamar Franco. Collor manteve a primeira-dama na presidência da LBA atravessada por escândalos de corrupção por desvio de verbas públicas, isenções imorais de impostos e tributos aplicadas pelo uso de falsos certificados de filantropia às entidades vinculadas a parlamentares, os chamados "Anões do Orçamento".

Os anos turbulentos foram marcados pelos embates entre os ventos da pressão popular organizada sobre velhos modos de ver os direitos sociais. A Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS) foi recriada, no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), e nova gestão democrática e paritária foi consolidada no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). O Presidente Fernando Henrique Cardoso extinguiu a LBA em 1995, mas manteve a gestão da primeira-dama, no Programa Comunidade Solidária, com ações focalizadas com organizações da sociedade civil. O peso político desse Programa presidencial foi fortalecido por seu vínculo com a Campanha de Combate à Fome, assentada na incidência de 32 milhões de brasileiros em estado de subnutrição.

Em 1996, começa a operação na SEAS do BPC e do Programa Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Os serviços procedentes da extinta LBA foram mantidos por diretorias regionais.  Até 2002, não foi possível estabilizar o campo de proteção social distributiva uma vez que permaneciam os resquícios da gestão patriarcal exercida pelas primeiras-damas. A ausência de perspectiva de gestão sistêmica e federativa para a Assistência Social se manteve praticamente, inalterada nesse período.

Em 2003, reacendeu no país, o movimento pela efetiva implantação da LOAS - que acaba de completar 28 anos, em 07 de dezembro de 2022. Após uma década, a lei não se fazia presente em todo o território nacional. O primeiro governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, instituiu o Ministério de Assistência Social (MAS), sob a liderança de uma mulher negra, a então deputada federal Benedita da Silva. De forma concomitante instalou no Gabinete da Presidência, uma comissão de experts, sem vínculo com a gestão do MAS, para desenhar um programa de transferência de renda, de modo unificar subsídios monetários/isenções existentes sob diferentes órgãos, que já mantinham o uso do CADÚnico, sem contar, contudo, com unidade de trato monetário.

Em 2004, o MAS foi extinto e a gestão de seu conteúdo rebaixada para uma Secretaria Nacional, integrada ao novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Razões variadas para essa decisão foram formuladas prevalecendo a avaliação de que o grupo dirigente do MAS era frágil para dirigir um programa nacional de transferência de renda, embora essas fossem tão só da expressão da proteção social monetarizada. A compreensão fragmentada   sobre a Assistência Social federal era expressa como lócus de gestão do BPC (por isso advogados e usuários nominam o BPC de "o LOAS"). Entendeu-se que esse campo não tinha densidade para constituir um Ministério ou para coordenar o Programa de Transferência de Renda, o Bolsa Família. A gestão das transferências monetárias foram gradativamente sendo retiradas da SNAS e deslocadas para outros órgãos, como ocorreu com BPC para o INSS. A transferência de renda constituiu uma secretaria própria com gestão paralela a SNAS, no caso, a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC).

A construção do conteúdo da proteção social distributiva foi historicamente refém de operações   monetarizadas, gestão centralizada e fragmentada em diferentes órgãos, operados sob ausência de vínculos entre a descentralização, participação e canais institucionais de uso contínuo pelas unidades de gestão federativa. Não houve o entendimento da dimensão federativa das atenções herdadas da LBA que incluíam desde vagas de creches a atenções a idosos e às pessoas com deficiência. Não se enxergou ou reconheceu a Assistência Social no Executivo Federal como política pública de direitos!

Como se pode perceber, até então, a Assistência Social não ganhara hegemonia, visibilidade da sua presença federativa na construção de rede de serviços socioassistenciais. Fazia falta a aprovação de uma Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que pudesse construir o conteúdo dessa política de proteção social para além da monetarização, ocorrendo sua aprovação em outubro de 2004. A regulação dos serviços socioassistenciais enquanto ofertas continuadas da política só ocorreu em 2009.

Nos governos Dilma Rousseff, seguiu-se com o MDS e a SNAS, aprofundando a lógica do desenvolvimento social, principalmente, por meio do Programa Brasil sem Miséria, lançado em junho de 2011, com o objetivo de retirar da situação de pobreza extrema 16,2 milhões de pessoas que viviam com menos de R$70,00 por mês. Houve uma tímida expansão de novos serviços socioassistenciais e supervalorização de instrumentos como o CadÚnico.

O caminho de enfrentamento e luta para superar o precário reconhecimento da Assistência Social como nos esclarece a LOAS, dever de Estado e direito de cidadania, parece encontrar significado no âmbito da disputa argumentativa quanto ao nexo do seu campo com a Seguridade Social ou com o Desenvolvimento Social. A natureza, a finalidade e o lócus dessa política pública se altera em um e outro argumento, sobretudo no que concernem aos objetivos do Sistema Único da Assistência Social (SUAS).

O vínculo da Assistência Social com a Seguridade Social a revela em sua maior inteireza como parte de um sistema articulado de garantias de proteção social distributiva que busca garantir um conjunto específico de direitos sociais. Sua natureza justifica e orienta, de modo mais direto, sua finalidade realizadora enquanto política pública federativa, assumindo a configuração de sistema único com operação alargada, em estrutura e responsabilidade, um meta-instrumento de política pública, para além da organização de benefícios, serviços e programas ofertados pelas unidades públicas e parceiros da rede privada. O SUAS é também um modelo de gestão participativa e colaborativa que poderia facilmente ser descrito como um exemplo importante de construção e deliberação coletiva. Como lócus, lidamos melhor também com uma disputa ontológica sobre a força das/os trabalhadoras/es do SUAS (assistentes sociais, psicólogas/os, gestoras/es, educadoras/es sociais, cuidadoras/es sociais, advogadas/os, ente outras/os), uma categoria que ainda luta pelo devido reconhecimento social e político enquanto implementadores/as de uma política pública de direitos, que devem atuar de modo crítico e engajado nos serviços socioassistenciais.

Como Desenvolvimento Social, a Assistência Social recebe tratamento ausente da lógica de direitos e se perde como operadora de um sistema, pois a pauta do crescimento objetiva o que é nominado de "portas de saída", isso é, um processo de estímulo ao esforço individual, ficando sua atuação mais facilmente refém daquele passado assistencialista, em competição com outras demandas e interesses. Corre o risco de se perder ou se encontrar tão só como algo restrito à atenção passiva e mais obediente dos pobres, necessitados de transferência desde que cumpram as condicionalidades, privados de qualquer canal ascendente de comunicação entre as unidades federativas e os cidadãos.

Desenvolvimento Social é um campo complexo com diferentes acepções. Embora importante para o país, envolve outras questões, além dos binômios pobreza e riqueza, econômico e social. Compreende dinâmicas diferentes de concepção, produção de informação, gestão, avaliação e mobilização social.

O SUAS sob o foco do desenvolvimento social perdeu centralidade em termos de projeção político-institucional e operou como se sua existência se desse "naturalmente" e fosse êxito dos programas ativados, o que não é verdade. O resultado foi um sistema que tem dificuldades de ver a si mesmo, em sua natureza federativa, recebendo pouca ênfase nas argumentações dos/as decisores/as políticos/as. Uma política pública pouco reconhecida como espaço de produção articulada de direitos, pois suas demandas e ações são reorganizadas e adaptadas em função de outras políticas.

É preciso reafirmar que as gestões federais da Assistência Social, entre 2016 e 2022, com o golpe jurídico e parlamentar, foram agudizando restrições à concretização de direitos sociais, à aplicação de princípios democráticos na gestão nacional do SUAS, que sofreu cortes intensos que deixaram sob penúria a orçamentação para a manutenção da rede nacional serviços socioassistenciais. O Governo Jair Bolsonaro despiu a gestão federal da Assistência Social transferindo parte de suas competências para outros ministérios, aprofundando a ausência da unidade de comando da política pública.

Seguridade Social e Desenvolvimento Social são, portanto, campos que têm suas próprias disputas, público e demandas. A proteção social deve ser oferecida pela garantida do direito, por meio da Assistência Social prestada pelo Estado, com acesso direto, fácil, tipificado, em unidades preparadas, por profissionais bem formados/as, como parte de um sistema sólido, reconhecido, bem operacionalizado, acolhedor, estável, mas também sensível e reflexivo, como deve ser o SUAS. Tudo isso é muito mais fácil quando a Assistência Social é discursivamente e politicamente parte da Seguridade Social, com o protagonismo que qualquer sistema que se pretenda único e universal deve ter. Limitá-la a parte, mesmo que importante, de um campo mais amplo, o do Desenvolvimento Social, significa alterar sua natureza e propósito. Denota também desconsiderar um movimento político pela expansão dos direitos sociais que ainda está em curso no país, afetado por retrocessos como as que temos visto nos últimos anos.

Tal movimento teve seus alcances ancorados em um processo intenso de participação social. Olhar a sua trajetória é também perceber nossos movimentos sociais na construção das profissões da Assistência Social e dos cursos de formação, para conceber a trajetória da política no país. Como resultado, temos um SUAS que nos oferece um passado e um presente construídos por e apoiado em conferências, conselhos, comissões tripartites e bipartites, fundos, além de outras instâncias de diálogo, consulta e deliberação.

O SUAS, mesmo com seus ainda inúmeros problemas, deve ser reconhecido como um modelo concreto e brasileiro de deliberação pública, de garantia de direitos sociais. Um modelo, contudo, que, por ser vivo e orgânico, precisa enfrentar desafios relacionados a sua estabilidade e resiliência. E nisso, ainda temos muito o que caminhar, não obstante os avanços alcançados antes do golpe contra a democracia e a presidenta Dilma Rousseff.

Neste urgente presente, três grandes desafios, pelo menos, precisam ser enfrentados: os sentidos e significados da assistência social no Brasil, seu lócus de produção e a incorporação da perspectiva interseccional ao SUAS. Os dois primeiros trazem de volta para o centro do debate disputas argumentativas que alguns acreditavam superadas, mas que retornaram nos últimos anos com força em nossa atual conformação social, cada vez mais marcada por afetos como medo, ódio, desespero e outras expressões produzidas por uma afetação mais ampla de um abandono público politicamente produzido. Sem os retomarmos, não avançaremos! Preocupa-nos quando vemos alguns pares entusiasmados com a volta de um governo de ampla frente progressista, com Lula à frente, achando que naturalmente retomaremos a caminhada pela defesa da Política de Assistência Social de onde argumentativa e valorativamente havíamos parado. Não vamos! É preciso mais do que a inércia!

Mas passemos aos desafios. O primeiro deles diz respeito aos sentidos e significados da Assistência Social no Brasil. Logo de cara, ele nos remete para uma emocionada arena política em que disputas entre compreensões antagônicas da relação entre Estado e Sociedade, entre indivíduo e coletivo, entre público e privado, mas também, entre Assistência Social e assistencialismo, universalização e focalização, transversalidade e interseccionalidade. São valores em debate que conformam parte do jogo em torno dos direitos socioassistenciais como campo político, mesmo quando não são explicitados. Construções de sentido que imaginávamos ter realizado se fragilizaram. Retrocedemos em uma disputa valorativa, na qual os terrenos e tecidos já ganhos, que ainda eram pouco articulados entre si, não tiveram forças suficientes para resistir aos ventos ultradireitistas, liberais e opressores (aporofóbicos, sexistas, racistas, capacitistas etc.) do atual governo Bolsonaro.

Logo em seguida, porém, nos remete para a ideia de um sistema discursivamente pouco resiliente em termos de políticas públicas, reforçado institucionalmente pelo desamparo do órgão gestor federal, que perdeu sua coordenação interfederativa. Chamamos a atenção que é necessário entender que linguagem, argumento e discurso são elementos essenciais de políticas públicas[i], para além de lógicas prescritivas e normativas. São por meio deles que transitam os valores, o que deveria ter nos levado para práticas comunicativas mais dialógicas, capazes de ampliar o debate público, as arenas públicas. O não enfrentamento deste desafio, que tem a ver com a falta de protagonismo do SUAS nos últimos anos, nos fez retroceder para um ponto ainda mais tenso de disputa de ideias. Não retomar o protagonismo é um erro que não podemos mais repetir!

O segundo desafio refere-se ao lócus de produção da Assistência Social e a sua materialidade, expressa, principalmente, nos benefícios, redes de serviços socioassistenciais e programas de transferência de renda. Por seu caráter de proteção social não-contributiva, historicamente tem lidado com lugares secundários na configuração institucional dos executivos das instâncias federais, estaduais e municipais, muitas vezes incorporada como secretaria especial ou como superintendência - situação muito diferente da Previdência Social, da Saúde e de outras políticas públicas. A Assistência Social vem sendo deliberadamente escondida, sem o protagonismo devido, porque ainda é praticada como uma instância de assistência ao povo, erroneamente tratado como os "vulneráveis" ou vista como a política para atender aos "pobres".

Os profissionais dos 8.545 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), que atuam na Proteção Social Básica, com caráter mais preventivo dos riscos e vulnerabilidades sociais, apesar dos avanços, são insuficientes e irregularmente distribuídos pelo país, tendo de dar conta de muitas demandas dentro da lógica instrumental do desenvolvimento social. O CadÚnico, por exemplo, tem pouca sensibilidade para as necessidades concretas de prestação dos serviços socioassistenciais regulados pelo SUAS - aliás, deveria estar esse a serviço do SUAS e não o contrário, embora esta seja matéria para uma outra discussão. A situação se torna ainda mais grave quando passamos para a realidade dos ainda mais escassos 2.780 Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), dos 300 Centros de Referência para a População em Situação de Rua (CentroPop), dos 1871 Centros-dia de Referência para Pessoas com Deficiência, dentre outros unidades que ofertam serviços socioassistencias, com profissionais em estado de forte pressão. Aliás, é importante frisar que tais profissionais não se reconhecem valorativamente, tampouco gramaticalmente, no campo do Desenvolvimento Social. Não se dizem trabalhadoras(es) do desenvolvimento social, mas da Assistência Social, do SUAS, dos seus equipamentos e serviços.

Por fim, o terceiro desafio diz respeito a uma necessária perspectiva interseccional para promover mais concretamente uma sociedade mais inclusiva por meio do SUAS. Este, enquanto sistema público, precisa avançar quanto a responsabilidade da não reprodução dos padrões de desigualdade hoje encontrados no Brasil. É preciso entender que tais avanços devem estar entrelaçados com as condições objetivas da população brasileira nas quais as desigualdades são marcadas pelas relações de gênero, de raça, da faixa etária, dos territórios vividos, e ainda, pelo grau de presença de condições relacionais de segurança social. Por isso, é preciso garantirmos além da segurança de renda, outras seguranças afiançadas em todo o arcabouço normativo do SUAS (seguranças de acolhida, de convívio, de desenvolvimento de autonomia, de benefícios materiais ou em pecúnia) considerando as intersecções que marcam os/as seus/suas usuários/as.

Não dá para pensar nas ações de governos e nas ações públicas, que envolvem mais atores, como caixinhas separadas. Sujeitas/os sociais sobre os/as quais recaem tais ações não sentem ou sofrem discriminações e opressões em caixinhas. O sofrimento, a fome, a pobreza, a dor tem de ser analisada sob um prisma interseccional, como já nos ensinou o feminismo negro. Quem sente, quem se afeta, não sente por partes. As afetações são complexas e, para além do combate as privações materiais, torna-se necessário atentar para outras dimensões menos tangíveis que afetam pessoas vulnerabilizadas, tais como, a subalternidade, a vergonha, a baixa autoestima, o medo, a falta de esperança, a baixa capacidade de agência, o pouco empoderamento, entre outros fatores amplamente tratados na literatura especializada. Para lidar com tais fatores, certamente, precisamos fortalecer os serviços socioassistenciais numa perspectiva de respeito às diversidades, combate aos preconceitos e desenho de ofertas considerando que não existem, por exemplo, apenas mulheres, mas mulheres negras, LGBTQIA+, indígenas, com deficiência, de comunidades tradicionais. Temos de avançar no SUAS com relação as abordagens sobre discriminação que consideram a subinclusão, ou seja, quando nos processos discriminatórios a diferença torna invisível um conjunto de problemas; bem como, a superinclusão, quando a própria diferença é invisibilizada[ii].

O enfrentamento desses três desafios passa por defendermos a criação do Ministério da Assistência Social, o qual pode ou não incorporar outras seguranças sociais, como a Segurança Alimentar e benefícios monetários, com trato permanente e gestão federativa democrática, priorizando a escuta e demandas dos/as usuários/as do SUAS. Estes apontamentos ao novo Governo Lula a partir de 2023, são para reforçar que precisamos trazer o SUAS de volta para ao centro do debate e da institucionalidade política, pois a sua materialidade se dá essencialmente pela garantia da oferta de serviços socioassistenciais articulados intra e intersetorialmente, com referência e contrarreferência claras, com fluxos de atendimento, acompanhamento e encaminhamento bem definidos, considerando as capacidades estatais da diversidade de municípios do Brasil. Entender como estamos é fundamental para saber por onde nos guiaremos.

Por todos os argumentos trazidos aqui, defendemos a legitimidade da Assistência Social realizada em um ministério próprio, como um campo singular de políticas públicas, sem o risco de (mais um) apagamento dentro de um hiperbólico ou metonímico "desenvolvimento social". Legitimar a política por sua essência é necessário a fim de que se fortaleçam as coalizões para uma reconstrução do pacto federativo visando o fortalecimento da Assistência Social enquanto política pública garantidora de direitos.

Que nesse novo governo Lula, de esperanças e desafios, toda pessoa que necessite concretizar direitos socioassistenciais possa tê-los garantidos, sentindo-se acolhida em suas necessidades, respeitada em seus vínculos e suas escolhas, socialmente protegida, garantida pela solidez e compreensividade de um SUAS cada vez mais amplo. Devemos estar atentas/os para que a Assistência Social não seja colocada num escopo de elipse.

Notas

[i] Fischer, Frank (2007). Deliberative Policy Analysis as Practical Reason: Integrating Empirical and Normative Arguments. In: FISHER, F; MILLER, G. J.; SIDNEY, M (ed.) Handbook of public policy analysis: theory, politics, and methods / edited by Frank Fischer, Gerald J. Nova York: CRC Press, Taylor & Francis Group.

[ii] Crenshaw, Kimberlé. (2012). A Interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. Curso Educação, Relações Raciais e Direitos Humanos (1ª ed). 27 de setembro de 2012. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/?p=1533 Acesso em 30 dez. 2017.

Aldaiza Sposati, Professora titular sênior da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutora em Serviço Social (PUC-SP). Pesquisadora CNPq. Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Seguridade e Assistência Social -NEPSAS/PUC-SP

Rosana de Freitas Boullosa, Professora da Universidade de Brasília (UnB)/Departamento de Gestão de Políticas Públicas (GPP/UnB). Doutora em Políticas Públicas (Università IUAV di Venezia - Itália). Coordenadora do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais da UnB (Neur/Ceam/UnB). Editora da revista Critical Policy Studies

Edgilson Tavares de Araújo, Professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Vice coordenador do Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento e Gestão Social (PDGS/UFBA).  Doutor em Serviço Social (PUC-SP). Conselheiro e ex-presidente da Associação Nacional de Ensino, Pesquisa e Extensão do Campo de Públicas (ANEPECP). Membro fundador da Rede de Pesquisadores/as em Gestão Social (RGS)

Os direitos sociais no Brasil encontram inequívocos fundamentos na Constituição Cidadã de 1988. Dentre estes, está o acesso aos direitos socioassistenciais a quem deles necessitar - o que significa dar provisão de atenção e cuidados de proteção social a determinadas necessidades materiais ou imateriais sob financiamento estatal.Pertencem à Seguridade Social, pois a Constituição Federal de 1988 (CF-88) unificou, sob propósitos comuns, os direitos à Saúde, à Previdência Social e à Assistência Social. Um tripé que nem sempre é muito fácil de ser entendido como de direitos ou de assim ser reconhecido. Com essa nova construção, alargou-se a cobertura estatal pública da proteção social, nela incluída a Assistência Social. Passados 30 anos, entende-se também que a Segurança Alimentar deva ser incluída como parte da Seguridade Social brasileira.

A visibilidade desse entendimento é baixa e reside na dificuldade em ser aceita a proteção social como campo de política pública, voltada para efetivação do artigo 6º da CF-88 e garantia de trato da dignidade humana como direito humano e social, ainda persiste. Por isso, é sempre bom lembrar que, quando um/a cidadão/ã, independentemente da idade, gênero, raça ou classe social, requer proteção social pública, não significa que ela/e seja um necessitada/o social, isto é, um/a pobre, miserável, vadio/a pelo fato de não contar com renda pessoal para ser consumidor/a.

A decisão da CF-88 em realizar a expansão da proteção pública estatal exercida pela Seguridade Social foi uma novidade. As políticas sociais no Brasil foram instituídas em tempos e situações diversas, sob identidade individual, responsabilidades e orçamentos específicos. Atuaram (e ainda atuam) isoladamente mesmo quando seus serviços são avizinhados em um só território. À Saúde, um direito de todos, não só do trabalhador formal, coube operar os serviços, historicamente vinculados Previdência e à Assistência Social, junto à Legião Brasileira de Assistência (LBA). À Previdência Social coube a gestão do seguro, uma proteção contributiva, de natureza trabalhista, substitutiva da remuneração salarial do trabalhador formalizado. Já a Assistência Social assumiu a responsabilidade pela gestão do benefício não-contributivo de Renda Mensal Vitalícia, até então de gestão previdenciária, que foi nominado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, como Benefício de Prestação Continuada (BPC).

A Seguridade Social distinguiu em uma só unidade a proteção social contributiva da não-contributiva ou distributiva. Porém, para se constituir em campo de proteção não bastava à Assistência Social operar um benefício monetário às pessoas idosas com trajetória de trabalho informal ou com tempo incompleto de contribuição para a Previdência Social, mesmo que acrescidas das pessoas com deficiência, desde seu nascimento até a morte. Era preciso construir o campo da política de proteção social distributiva e isso implicou em consolidar novas responsabilidades do Estado Social brasileiro face às desproteções vivenciadas pela população e romper com histórico complexo pautado no assistencialismo, na ausência de direitos humanos e sociais e na falta de transparência na relação público-privado.

A ocupação parcial do campo da Assistência Social no Brasil, até a CF-88, não se deu na gestão direta do Estado, pois, ainda que sustentada com verbas públicas, se manteve sob o poder das esposas de governantes. Em 1942, foi criada a (Fundação) Legião Brasileira de Assistência (FBLA), inicialmente para apoiar famílias de combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Com o tempo, sua ação foi se complexificando, incluindo unidades de atenção à maternidade e à infância, por meio de centros sociais inundados de clubes de mães, sob orientação higienista da puericultura.

A máquina federal do que poderia vir a ser institucionalizado como campo da Assistência Social era o espólio da FLBA em instalações, sobretudo no Nordeste, e de trabalhadores, servidores federais. Se a infraestrutura de saúde passou de pronto para o Ministério da Saúde, o mesmo não aconteceu com a Assistência Social.

Foram momentos tormentosos entre 1988 e 1995.  A aprovação da Lei Orgânica da Assistência (LOAS) após o veto de Fernando Collor de Mello, que optou pela manutenção da LBA, foi uma luta vigorosa que só alcançou resultados em 1993, com Itamar Franco. Collor manteve a primeira-dama na presidência da LBA atravessada por escândalos de corrupção por desvio de verbas públicas, isenções imorais de impostos e tributos aplicadas pelo uso de falsos certificados de filantropia às entidades vinculadas a parlamentares, os chamados "Anões do Orçamento".

Os anos turbulentos foram marcados pelos embates entre os ventos da pressão popular organizada sobre velhos modos de ver os direitos sociais. A Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS) foi recriada, no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), e nova gestão democrática e paritária foi consolidada no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). O Presidente Fernando Henrique Cardoso extinguiu a LBA em 1995, mas manteve a gestão da primeira-dama, no Programa Comunidade Solidária, com ações focalizadas com organizações da sociedade civil. O peso político desse Programa presidencial foi fortalecido por seu vínculo com a Campanha de Combate à Fome, assentada na incidência de 32 milhões de brasileiros em estado de subnutrição.

Em 1996, começa a operação na SEAS do BPC e do Programa Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Os serviços procedentes da extinta LBA foram mantidos por diretorias regionais.  Até 2002, não foi possível estabilizar o campo de proteção social distributiva uma vez que permaneciam os resquícios da gestão patriarcal exercida pelas primeiras-damas. A ausência de perspectiva de gestão sistêmica e federativa para a Assistência Social se manteve praticamente, inalterada nesse período.

Em 2003, reacendeu no país, o movimento pela efetiva implantação da LOAS - que acaba de completar 28 anos, em 07 de dezembro de 2022. Após uma década, a lei não se fazia presente em todo o território nacional. O primeiro governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, instituiu o Ministério de Assistência Social (MAS), sob a liderança de uma mulher negra, a então deputada federal Benedita da Silva. De forma concomitante instalou no Gabinete da Presidência, uma comissão de experts, sem vínculo com a gestão do MAS, para desenhar um programa de transferência de renda, de modo unificar subsídios monetários/isenções existentes sob diferentes órgãos, que já mantinham o uso do CADÚnico, sem contar, contudo, com unidade de trato monetário.

Em 2004, o MAS foi extinto e a gestão de seu conteúdo rebaixada para uma Secretaria Nacional, integrada ao novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Razões variadas para essa decisão foram formuladas prevalecendo a avaliação de que o grupo dirigente do MAS era frágil para dirigir um programa nacional de transferência de renda, embora essas fossem tão só da expressão da proteção social monetarizada. A compreensão fragmentada   sobre a Assistência Social federal era expressa como lócus de gestão do BPC (por isso advogados e usuários nominam o BPC de "o LOAS"). Entendeu-se que esse campo não tinha densidade para constituir um Ministério ou para coordenar o Programa de Transferência de Renda, o Bolsa Família. A gestão das transferências monetárias foram gradativamente sendo retiradas da SNAS e deslocadas para outros órgãos, como ocorreu com BPC para o INSS. A transferência de renda constituiu uma secretaria própria com gestão paralela a SNAS, no caso, a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC).

A construção do conteúdo da proteção social distributiva foi historicamente refém de operações   monetarizadas, gestão centralizada e fragmentada em diferentes órgãos, operados sob ausência de vínculos entre a descentralização, participação e canais institucionais de uso contínuo pelas unidades de gestão federativa. Não houve o entendimento da dimensão federativa das atenções herdadas da LBA que incluíam desde vagas de creches a atenções a idosos e às pessoas com deficiência. Não se enxergou ou reconheceu a Assistência Social no Executivo Federal como política pública de direitos!

Como se pode perceber, até então, a Assistência Social não ganhara hegemonia, visibilidade da sua presença federativa na construção de rede de serviços socioassistenciais. Fazia falta a aprovação de uma Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que pudesse construir o conteúdo dessa política de proteção social para além da monetarização, ocorrendo sua aprovação em outubro de 2004. A regulação dos serviços socioassistenciais enquanto ofertas continuadas da política só ocorreu em 2009.

Nos governos Dilma Rousseff, seguiu-se com o MDS e a SNAS, aprofundando a lógica do desenvolvimento social, principalmente, por meio do Programa Brasil sem Miséria, lançado em junho de 2011, com o objetivo de retirar da situação de pobreza extrema 16,2 milhões de pessoas que viviam com menos de R$70,00 por mês. Houve uma tímida expansão de novos serviços socioassistenciais e supervalorização de instrumentos como o CadÚnico.

O caminho de enfrentamento e luta para superar o precário reconhecimento da Assistência Social como nos esclarece a LOAS, dever de Estado e direito de cidadania, parece encontrar significado no âmbito da disputa argumentativa quanto ao nexo do seu campo com a Seguridade Social ou com o Desenvolvimento Social. A natureza, a finalidade e o lócus dessa política pública se altera em um e outro argumento, sobretudo no que concernem aos objetivos do Sistema Único da Assistência Social (SUAS).

O vínculo da Assistência Social com a Seguridade Social a revela em sua maior inteireza como parte de um sistema articulado de garantias de proteção social distributiva que busca garantir um conjunto específico de direitos sociais. Sua natureza justifica e orienta, de modo mais direto, sua finalidade realizadora enquanto política pública federativa, assumindo a configuração de sistema único com operação alargada, em estrutura e responsabilidade, um meta-instrumento de política pública, para além da organização de benefícios, serviços e programas ofertados pelas unidades públicas e parceiros da rede privada. O SUAS é também um modelo de gestão participativa e colaborativa que poderia facilmente ser descrito como um exemplo importante de construção e deliberação coletiva. Como lócus, lidamos melhor também com uma disputa ontológica sobre a força das/os trabalhadoras/es do SUAS (assistentes sociais, psicólogas/os, gestoras/es, educadoras/es sociais, cuidadoras/es sociais, advogadas/os, ente outras/os), uma categoria que ainda luta pelo devido reconhecimento social e político enquanto implementadores/as de uma política pública de direitos, que devem atuar de modo crítico e engajado nos serviços socioassistenciais.

Como Desenvolvimento Social, a Assistência Social recebe tratamento ausente da lógica de direitos e se perde como operadora de um sistema, pois a pauta do crescimento objetiva o que é nominado de "portas de saída", isso é, um processo de estímulo ao esforço individual, ficando sua atuação mais facilmente refém daquele passado assistencialista, em competição com outras demandas e interesses. Corre o risco de se perder ou se encontrar tão só como algo restrito à atenção passiva e mais obediente dos pobres, necessitados de transferência desde que cumpram as condicionalidades, privados de qualquer canal ascendente de comunicação entre as unidades federativas e os cidadãos.

Desenvolvimento Social é um campo complexo com diferentes acepções. Embora importante para o país, envolve outras questões, além dos binômios pobreza e riqueza, econômico e social. Compreende dinâmicas diferentes de concepção, produção de informação, gestão, avaliação e mobilização social.

O SUAS sob o foco do desenvolvimento social perdeu centralidade em termos de projeção político-institucional e operou como se sua existência se desse "naturalmente" e fosse êxito dos programas ativados, o que não é verdade. O resultado foi um sistema que tem dificuldades de ver a si mesmo, em sua natureza federativa, recebendo pouca ênfase nas argumentações dos/as decisores/as políticos/as. Uma política pública pouco reconhecida como espaço de produção articulada de direitos, pois suas demandas e ações são reorganizadas e adaptadas em função de outras políticas.

É preciso reafirmar que as gestões federais da Assistência Social, entre 2016 e 2022, com o golpe jurídico e parlamentar, foram agudizando restrições à concretização de direitos sociais, à aplicação de princípios democráticos na gestão nacional do SUAS, que sofreu cortes intensos que deixaram sob penúria a orçamentação para a manutenção da rede nacional serviços socioassistenciais. O Governo Jair Bolsonaro despiu a gestão federal da Assistência Social transferindo parte de suas competências para outros ministérios, aprofundando a ausência da unidade de comando da política pública.

Seguridade Social e Desenvolvimento Social são, portanto, campos que têm suas próprias disputas, público e demandas. A proteção social deve ser oferecida pela garantida do direito, por meio da Assistência Social prestada pelo Estado, com acesso direto, fácil, tipificado, em unidades preparadas, por profissionais bem formados/as, como parte de um sistema sólido, reconhecido, bem operacionalizado, acolhedor, estável, mas também sensível e reflexivo, como deve ser o SUAS. Tudo isso é muito mais fácil quando a Assistência Social é discursivamente e politicamente parte da Seguridade Social, com o protagonismo que qualquer sistema que se pretenda único e universal deve ter. Limitá-la a parte, mesmo que importante, de um campo mais amplo, o do Desenvolvimento Social, significa alterar sua natureza e propósito. Denota também desconsiderar um movimento político pela expansão dos direitos sociais que ainda está em curso no país, afetado por retrocessos como as que temos visto nos últimos anos.

Tal movimento teve seus alcances ancorados em um processo intenso de participação social. Olhar a sua trajetória é também perceber nossos movimentos sociais na construção das profissões da Assistência Social e dos cursos de formação, para conceber a trajetória da política no país. Como resultado, temos um SUAS que nos oferece um passado e um presente construídos por e apoiado em conferências, conselhos, comissões tripartites e bipartites, fundos, além de outras instâncias de diálogo, consulta e deliberação.

O SUAS, mesmo com seus ainda inúmeros problemas, deve ser reconhecido como um modelo concreto e brasileiro de deliberação pública, de garantia de direitos sociais. Um modelo, contudo, que, por ser vivo e orgânico, precisa enfrentar desafios relacionados a sua estabilidade e resiliência. E nisso, ainda temos muito o que caminhar, não obstante os avanços alcançados antes do golpe contra a democracia e a presidenta Dilma Rousseff.

Neste urgente presente, três grandes desafios, pelo menos, precisam ser enfrentados: os sentidos e significados da assistência social no Brasil, seu lócus de produção e a incorporação da perspectiva interseccional ao SUAS. Os dois primeiros trazem de volta para o centro do debate disputas argumentativas que alguns acreditavam superadas, mas que retornaram nos últimos anos com força em nossa atual conformação social, cada vez mais marcada por afetos como medo, ódio, desespero e outras expressões produzidas por uma afetação mais ampla de um abandono público politicamente produzido. Sem os retomarmos, não avançaremos! Preocupa-nos quando vemos alguns pares entusiasmados com a volta de um governo de ampla frente progressista, com Lula à frente, achando que naturalmente retomaremos a caminhada pela defesa da Política de Assistência Social de onde argumentativa e valorativamente havíamos parado. Não vamos! É preciso mais do que a inércia!

Mas passemos aos desafios. O primeiro deles diz respeito aos sentidos e significados da Assistência Social no Brasil. Logo de cara, ele nos remete para uma emocionada arena política em que disputas entre compreensões antagônicas da relação entre Estado e Sociedade, entre indivíduo e coletivo, entre público e privado, mas também, entre Assistência Social e assistencialismo, universalização e focalização, transversalidade e interseccionalidade. São valores em debate que conformam parte do jogo em torno dos direitos socioassistenciais como campo político, mesmo quando não são explicitados. Construções de sentido que imaginávamos ter realizado se fragilizaram. Retrocedemos em uma disputa valorativa, na qual os terrenos e tecidos já ganhos, que ainda eram pouco articulados entre si, não tiveram forças suficientes para resistir aos ventos ultradireitistas, liberais e opressores (aporofóbicos, sexistas, racistas, capacitistas etc.) do atual governo Bolsonaro.

Logo em seguida, porém, nos remete para a ideia de um sistema discursivamente pouco resiliente em termos de políticas públicas, reforçado institucionalmente pelo desamparo do órgão gestor federal, que perdeu sua coordenação interfederativa. Chamamos a atenção que é necessário entender que linguagem, argumento e discurso são elementos essenciais de políticas públicas[i], para além de lógicas prescritivas e normativas. São por meio deles que transitam os valores, o que deveria ter nos levado para práticas comunicativas mais dialógicas, capazes de ampliar o debate público, as arenas públicas. O não enfrentamento deste desafio, que tem a ver com a falta de protagonismo do SUAS nos últimos anos, nos fez retroceder para um ponto ainda mais tenso de disputa de ideias. Não retomar o protagonismo é um erro que não podemos mais repetir!

O segundo desafio refere-se ao lócus de produção da Assistência Social e a sua materialidade, expressa, principalmente, nos benefícios, redes de serviços socioassistenciais e programas de transferência de renda. Por seu caráter de proteção social não-contributiva, historicamente tem lidado com lugares secundários na configuração institucional dos executivos das instâncias federais, estaduais e municipais, muitas vezes incorporada como secretaria especial ou como superintendência - situação muito diferente da Previdência Social, da Saúde e de outras políticas públicas. A Assistência Social vem sendo deliberadamente escondida, sem o protagonismo devido, porque ainda é praticada como uma instância de assistência ao povo, erroneamente tratado como os "vulneráveis" ou vista como a política para atender aos "pobres".

Os profissionais dos 8.545 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), que atuam na Proteção Social Básica, com caráter mais preventivo dos riscos e vulnerabilidades sociais, apesar dos avanços, são insuficientes e irregularmente distribuídos pelo país, tendo de dar conta de muitas demandas dentro da lógica instrumental do desenvolvimento social. O CadÚnico, por exemplo, tem pouca sensibilidade para as necessidades concretas de prestação dos serviços socioassistenciais regulados pelo SUAS - aliás, deveria estar esse a serviço do SUAS e não o contrário, embora esta seja matéria para uma outra discussão. A situação se torna ainda mais grave quando passamos para a realidade dos ainda mais escassos 2.780 Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), dos 300 Centros de Referência para a População em Situação de Rua (CentroPop), dos 1871 Centros-dia de Referência para Pessoas com Deficiência, dentre outros unidades que ofertam serviços socioassistencias, com profissionais em estado de forte pressão. Aliás, é importante frisar que tais profissionais não se reconhecem valorativamente, tampouco gramaticalmente, no campo do Desenvolvimento Social. Não se dizem trabalhadoras(es) do desenvolvimento social, mas da Assistência Social, do SUAS, dos seus equipamentos e serviços.

Por fim, o terceiro desafio diz respeito a uma necessária perspectiva interseccional para promover mais concretamente uma sociedade mais inclusiva por meio do SUAS. Este, enquanto sistema público, precisa avançar quanto a responsabilidade da não reprodução dos padrões de desigualdade hoje encontrados no Brasil. É preciso entender que tais avanços devem estar entrelaçados com as condições objetivas da população brasileira nas quais as desigualdades são marcadas pelas relações de gênero, de raça, da faixa etária, dos territórios vividos, e ainda, pelo grau de presença de condições relacionais de segurança social. Por isso, é preciso garantirmos além da segurança de renda, outras seguranças afiançadas em todo o arcabouço normativo do SUAS (seguranças de acolhida, de convívio, de desenvolvimento de autonomia, de benefícios materiais ou em pecúnia) considerando as intersecções que marcam os/as seus/suas usuários/as.

Não dá para pensar nas ações de governos e nas ações públicas, que envolvem mais atores, como caixinhas separadas. Sujeitas/os sociais sobre os/as quais recaem tais ações não sentem ou sofrem discriminações e opressões em caixinhas. O sofrimento, a fome, a pobreza, a dor tem de ser analisada sob um prisma interseccional, como já nos ensinou o feminismo negro. Quem sente, quem se afeta, não sente por partes. As afetações são complexas e, para além do combate as privações materiais, torna-se necessário atentar para outras dimensões menos tangíveis que afetam pessoas vulnerabilizadas, tais como, a subalternidade, a vergonha, a baixa autoestima, o medo, a falta de esperança, a baixa capacidade de agência, o pouco empoderamento, entre outros fatores amplamente tratados na literatura especializada. Para lidar com tais fatores, certamente, precisamos fortalecer os serviços socioassistenciais numa perspectiva de respeito às diversidades, combate aos preconceitos e desenho de ofertas considerando que não existem, por exemplo, apenas mulheres, mas mulheres negras, LGBTQIA+, indígenas, com deficiência, de comunidades tradicionais. Temos de avançar no SUAS com relação as abordagens sobre discriminação que consideram a subinclusão, ou seja, quando nos processos discriminatórios a diferença torna invisível um conjunto de problemas; bem como, a superinclusão, quando a própria diferença é invisibilizada[ii].

O enfrentamento desses três desafios passa por defendermos a criação do Ministério da Assistência Social, o qual pode ou não incorporar outras seguranças sociais, como a Segurança Alimentar e benefícios monetários, com trato permanente e gestão federativa democrática, priorizando a escuta e demandas dos/as usuários/as do SUAS. Estes apontamentos ao novo Governo Lula a partir de 2023, são para reforçar que precisamos trazer o SUAS de volta para ao centro do debate e da institucionalidade política, pois a sua materialidade se dá essencialmente pela garantia da oferta de serviços socioassistenciais articulados intra e intersetorialmente, com referência e contrarreferência claras, com fluxos de atendimento, acompanhamento e encaminhamento bem definidos, considerando as capacidades estatais da diversidade de municípios do Brasil. Entender como estamos é fundamental para saber por onde nos guiaremos.

Por todos os argumentos trazidos aqui, defendemos a legitimidade da Assistência Social realizada em um ministério próprio, como um campo singular de políticas públicas, sem o risco de (mais um) apagamento dentro de um hiperbólico ou metonímico "desenvolvimento social". Legitimar a política por sua essência é necessário a fim de que se fortaleçam as coalizões para uma reconstrução do pacto federativo visando o fortalecimento da Assistência Social enquanto política pública garantidora de direitos.

Que nesse novo governo Lula, de esperanças e desafios, toda pessoa que necessite concretizar direitos socioassistenciais possa tê-los garantidos, sentindo-se acolhida em suas necessidades, respeitada em seus vínculos e suas escolhas, socialmente protegida, garantida pela solidez e compreensividade de um SUAS cada vez mais amplo. Devemos estar atentas/os para que a Assistência Social não seja colocada num escopo de elipse.

Notas

[i] Fischer, Frank (2007). Deliberative Policy Analysis as Practical Reason: Integrating Empirical and Normative Arguments. In: FISHER, F; MILLER, G. J.; SIDNEY, M (ed.) Handbook of public policy analysis: theory, politics, and methods / edited by Frank Fischer, Gerald J. Nova York: CRC Press, Taylor & Francis Group.

[ii] Crenshaw, Kimberlé. (2012). A Interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. Curso Educação, Relações Raciais e Direitos Humanos (1ª ed). 27 de setembro de 2012. Disponível em: http://www.acaoeducativa.org.br/fdh/?p=1533 Acesso em 30 dez. 2017.

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