Pedro Cavalcante, Doutor em Ciência Política (UnB), Professor de Pós-graduação do Idp e Gestor Governamental
A política de inovação consiste em uma combinação de instrumentos formulada e implementada em frentes de atuação complementares (regulação, financiamento, pesquisa, ensino, etc.) e por diferentes organizações sempre com o propósito de fornecer suporte, promover e catalisar processos de geração, introdução, difusão, adoção e uso de inovações. No caso do Brasil, o arranjo de governança dessa área é historicamente liderado por políticas governamentais, state-led innovation model, no qual o governo federal atua como protagonista.
A despeito dos avanços observados desde o fim dos anos 90, recentemente, predomina um processo de desmonte, também denominado pela literatura internacional como policy dismantling[1]. Esse cenário é preocupante, pois ocorre de maneira acelerada com baixo grau de transparência e debate público e, sobretudo, traz sérios riscos e consequências ao desenvolvimento econômico e à qualidade de vida da população brasileira.
São duas as formas clássicas de desmonte das políticas públicas: i) densidade e intensidade. A primeira envolve a redução na amplitude das áreas de atuação e na quantidade de instrumentos efetivamente implementados, enquanto a segunda corresponde à diminuição do grau de priorização no governo, materializado no destaque da agenda legislativa, no quantitativo de pessoal e, principalmente, no orçamento dos órgãos/programas. Na atual conjuntura, o desmantelamento desse arranjo de governança se efetiva em ambas as formas, como veremos nos dados a seguir.
As políticas de apoio direto às firmas para investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação (P&D) são a estratégia mais tradicional que, no caso doméstico, correspondem principalmente ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) e seus fundos setoriais (quinze no total) vinculados. O gráfico seguinte retrata, em barras, o orçamento destinado e efetivamente pago e, na linha escura, o percentual dessa relação. A redução se inicia em 2011, porém desde 2015 que o percentual de execução dá início a uma queda contínua ao menor patamar histórico, somente 14% do montante arrecadado.
Gráfico 1 - Evolução do FNDCT, 2003-2020 (em R$ 1 mi)
Fontes: Câmara dos Deputados Serviço de Informação ao Cidadão/BNDES.
Nota: Valores deflacionados com correção pelo IPCA-E (IBGE) - jan/2021.
O BNDES também exerce um papel de destaque como financiador das empresas dentro do ecossistema de inovação. Essa atuação avançou consideravelmente após 2006, atingindo o auge dez anos depois. Em meados da década passada, contudo, o processo de expansão dá lugar ao desmantelamento, tanto na densidade quanto na intensidade dos programas e instrumentos do Banco voltados para inovação. Esses passaram de 50 para 22, em 2020, com os desembolsos reduzidos a 23% dos valores de 2014.
Gráfico 2 - Programas/Instrumentos e Desembolsos do BNDES relativos à Inovação, 2003-2020
Fonte: Serviço de Informação ao Cidadão/BNDES.
Nota: Valores deflacionados com correção pelo IPCA-E (IBGE) - jan/2021.
Dado o caráter transversal de um sistema nacional de inovação, o seu arranjo de governança também inclui instrumentos com outros objetivos e em diferentes setores governamentais, como Ciência e Tecnologia (C&T), indústria e comércio. Os gráficos a seguir demonstram a evolução de subfunções orçamentárias do governo federal essenciais para o fortalecimento de ambientes e capacidades inovadoras em qualquer economia.
É nítido que a expansão observada até meados da década passada foi substituída por drásticas diminuições nesses dispêndios, que incluem programas estratégicos nas áreas de defesa, telecomunicações, energia, sustentabilidade, entre outros. Esse processo se efetiva ainda com a extinção de políticas até então prioritárias, como Ciências sem Fronteiras e Pronatec, e com retração, a exemplo do fim de várias modalidades do Inova Empresa.
Gráfico 3 - Evolução da Execução Orçamentária, por subfunções, 2003-2020 (em R$ 1mi)
Fontes: Câmara dos Deputados Serviço de Informação ao Cidadão/BNDES.
Nota: Valores deflacionados com correção pelo IPCA-E (IBGE) - jan/2021.
Os dados comprovam, portanto, um amplo e intenso desmonte das políticas públicas de inovação, fenômeno esse que também vem acontecendo em outras áreas do Estado brasileiro[2]. Naturalmente, esse processo traz riscos imediatos, entre eles, a perda de aprendizado e capacidade adaptativa das organizações públicas envolvidas, o desperdício de esforços e investimentos de longo prazo, a fragmentação de ações e a desarticulação entre os atores centrais do ecossistema, bem como o baixo engajamento empresarial em projetos inovadores.
Com efeito, as consequências para o país também são sérias, uma vez que essa desestruturação tende a refletir diretamente em dependência tecnológica, ambiente hostil aos negócios e baixos níveis de complexidade e produtividade do trabalho, nos afastando ainda mais dos desejáveis processos de upgrading econômico e tecnológico.
Por fim, diante das notórias disparidades de recuperação entre os países e dos novos desafios impostos pela pandemia da Covid-19[3], é importante salientar que esse movimento de desmantelamento se encontra em total contramão em relação às diretrizes promovidas pelas nações desenvolvidas. Enquanto os Estados Unidos[4] e Alemanha[5], por exemplo, propõem investimentos massivos (C&T) para fazer frente às dinâmicas transformações econômicas, sociais e ambientais, por aqui, a ordem do dia é promover a desconstrução do Sistema Nacional de Inovação amparado no discurso de panaceia da austeridade fiscal. Essa situação nos lembra o refrão de uma popular canção de Caetano: "Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem...Mundial".
Notas
[1] Bauer, M. et al. (2012). Dismantling Public Policy. Preferences, Strategies and Effects. Oxford, Oxford University Press.
[2] https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/desmantelando-o-estado-social-brasileiro-causas-estrategias-e-consequencias/.
[3] Organisation for Economic Co-operation and Development - OECD (2021). OECD Economic Outlook, Volume 2021 Issue 1, OECD Publishing, Paris.
[4]https://www.science.org/content/article/biden-proposes-250-billion-investment-research.
[5]https://sciencebusiness.net/news/what-germanys-new-government-means-research-and-innovation.