Gustavo Porpino, PhD em Administração pela FGV EAESP. É colaborador de iniciativas da FAO e ONU Meio Ambiente sobre sistemas alimentares circulares e co-fundador do Pacto contra a Fome. Pesquisador na Embrapa Alimentos e Territórios
Luciana Vieira, Professora e Pesquisadora na linha de Gestão de Operações e Sustentabilidade na FGV EAESP. PhD em Economia Agro-alimentar pela University of Reading, Reino Unido
Camila Moraes, PhD em Engenharia de Produção pela UFSCar. Pesquisadora de pós-doutorado sobre mecanismos de redistribuição de alimentos e professora colaboradora na FGV EAESP
João Perez, Mestre em Gestão de Políticas e Organizações Públicas pela UNIFESP. Membro do Comitê Gestor da Rede Brasileira de Bancos de Alimentos (MDS) e da CRSANS-SP. Secretário Executivo do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional de Osasco-SP. Diretor de Segurança Alimentar e Líder do Banco de Alimentos de Osasco
A transformação dos sistemas alimentares é uma urgência global para ampliar a capacidade de ofertar alimentos saudáveis à crescente população. Dada a relevância do tema, impulsionada pela pandemia da Covid-19, conflitos e crise climática, a ONU realizou em 2021, pela primeira vez, uma cúpula específica para tratar dos desafios relacionados aos sistemas alimentares. A crise sanitária da Covid-19 destacou ainda mais as fragilidades dos sistemas agroalimentares e a desigualdades existentes nas sociedades, gerando aumento da fome no mundo e crescente insegurança alimentar (IA) até mesmo em países desenvolvidos.
O modelo vigente, caracterizado pela sindemia global de desnutrição, obesidade e mudanças climáticas, requer repensar as políticas públicas e implementar mais ações perenes com enfoque multissetorial. O multissetorialismo implica a capacidade do governo liderar a agenda do combate à fome e a desnutrição com engajamento da sociedade civil, o envolvimento do terceiro setor e escuta à iniciativa privada.
Para além das políticas públicas, o acesso à alimentação saudável demanda geração de renda, dado que o custo da adoção de uma dieta saudável para uma família de quatro pessoas, no Brasil, supera em 43% o salário mínimo. Para além disso, segundo o relatório sobre "Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil", elaborado pela Rede Penssan (2022), são 125,2 milhões de pessoas em IA e mais de 33 milhões em situação de fome, expressa pela IA grave. De acordo com a pesquisa, mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com algum nível de insegurança alimentar, seja leve, moderada ou grave.
No atual sistema, os alimentos são repaginados, transformados e posicionados como se fossem saudáveis, mas na prática "assumem contornos cada vez mais industriais por meio da bioquímica de ingredientes e aditivos", conforme análise do professor John Wilkinson no recente livro "A transformação dos alimentos".
Algumas tendências impactam os sistemas alimentares e precisam ser analisadas para identificação e mitigação de riscos e desafios por diversos agentes da cadeia de suprimentos alimentar. Neste contexto, a agricultura vertical em áreas urbanas, a digitalização e produtos plant-based geram oportunidades para ampliar produção e comercialização de alimentos alinhados a tendências de consumo, mas podem contribuir para redução da diferenciação regional, queda na renda rural e monotonia das dietas. Um dos desafios é conciliar a agricultura vertical urbana, por exemplo, com o fortalecimento dos cinturões verdes.
Coalizões de empresas para incrementar as doações de alimentos a Bancos de Alimentos já existem no Brasil. O Movimento Todos à Mesa é um exemplo positivo. Considerada a primeira coalizão brasileira de organizações que se uniram para reduzir os impactos da fome no Brasil e atuar na redução do desperdício de alimentos, o movimento "TAM", como é conhecido, é formado por 22 empresas como Danone, iFood, Grupo Carrefour, Lopes Supermercados, Nestlé, M. Dias Branco, Pepsico, GPA, Facily, Mondelez, D`Maria, Nutriens, Frexco, Yara, Assaí Atacadista, Grupo Bimbo, KraftHeinz, Bauducco, Camil, DPA Brasil, Connecting Food e Supermercado Nordestão. O movimento tem alinhamento com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis, e favorece a troca de conhecimentos entre os participantes, além de incrementar a segurança jurídica.
Da mesma forma, o recém lançado Pacto Contra a Fome, iniciativa suprapartidária da sociedade civil que tem como meta erradicar a fome no Brasil até 2030, pode contribuir para incrementar a articulação entre terceiro setor, sociedade civil, líderes empresariais e diferentes níveis de governo. Outra iniciativa de destaque envolve construir ideias e iniciativas para o fortalecimento dos sistemas alimentares urbanos por meio do Laboratório Urbano de Políticas Públicas Alimentares (Luppa), liderado pelo Instituto Comida do Amanhã. O Luppa está alinhado com a abordagem intersetorial, sistêmica e circular dos sistemas alimentares. Parte também da premissa de que transformar os sistemas alimentares e fortalecer políticas públicas dependem de vontade política. A centralidade da alimentação na gestão municipal é um imperativo para o avanço da agenda de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN).
Com relação ao ambiente político e regulatório, os governos estaduais e federal precisam ouvir mais as cidades, porque são nos municípios que as políticas são executadas. Ainda é comum o delineamento de planos municipais de SAN sem possibilidade de execução. Para além de melhorar o planejamento, o poder público não pode abordar o tema SAN de forma isolada, mas em conjunto com a esfera municipal, estadual e federal, além da iniciativa privada e sociedade civil.
Os governos precisam elaborar estratégia para redução do desperdício de alimentos, e perceber a oportunidade de ampliar a oferta de alimentos via redução de perdas e desperdício de alimentos (PDA). Entende-se que o Brasil tem acúmulo de conhecimento sobre o tema, e precisa retomar a agenda e reposicionar o assunto em alinhamento com a estratégia de SAN. A fome e insegurança alimentar estão intrinsicamente relacionadas ao problema de PDA, sendo a redistribuição de alimentos para populações vulneráveis considerada como parte das ações mais prioritárias. Essa redistribuição permite que o alimento cumpra o seu propósito primário, que é a destinação ao consumo humano. No Brasil, essa redistribuição de alimentos é realizada tanto por negócios com fins lucrativos quanto por iniciativas sem fins lucrativos, o que comprova o enfoque multissetorial para solução desse problema. Outra oportunidade é fortalecer as feiras livres nas cidades e, consequentemente, dos produtores rurais.
A pandemia fez emergir muitas ações paliativas de fortalecimento da SAN, no qual foram uteis no momento mais crítico da crise sanitária para o enfrentamento da fome. Porém, o enfoque devem ser ações estruturantes. Há necessidade de delinear e implementar políticas públicas alimentares de Estado, que sejam perenes. A conexão dos produtores rurais com o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) gera impacto real e é exemplo de ação estruturante. Da mesma forma, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) revitalizado, e a possibilidade dos estados ou municípios terem seus PAAs também é ação estruturante.
A necessidade de acabar com a fome é notória, mas o problema precisa ser neutralizado com comida de verdade, para o combate à desnutrição. Ações estruturantes podem ser pensadas e implementadas a partir de diálogos intersetoriais via Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN). Além da CAISAN, CONSEA e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) são fundamentais para garantir a participação da sociedade civil e ampliar a mobilização em torno de políticas públicas permanentes.
Gerar renda e inclusão social são ações concomitantes com as políticas públicas de SAN para garantir erradicação da fome. O aumento das taxas de desemprego, a perda de renda e o aumento dos custos com alimentos contribuem para esse problema. É preciso ouvir e compreender os territórios periféricos. As calamidades nos territórios indígenas são exemplos do que a inviabilização de povos tradicionais pode causar. A superação da fome e participação social estão claramente no radar da conferência nacional de SAN, prevista para ocorrer em dezembro de 2023.
O produtor rural, notadamente os pequenos, precisa ser mais ouvidos. As perdas no campo, principalmente no cultivo de hortaliças, são elevadas. A dificuldade de acessar mercados aponta para o imperativo de organização mais cooperada dos produtores. Os pequenos produtores precisam ser empoderados e aproximados de mercados mais justos.
As Cozinhas Solidárias são espaços de muita afetividade que vão além da oferta dos alimentos em si. Criado por movimentos sociais da sociedade civil, oferecem também educação e capacitação para famílias da região onde atuam. Também dão dignidade a muitas pessoas, que têm nestes espaços a oportunidade de acessar a única refeição do dia. Segregação alimentar é um tema pouco abordado. A fome impacta negativamente no aprendizado e exclui a pessoa da sociedade. Combater a fome não pode ser confundido com assistencialismo. Há em debate a criação de um Projeto de Lei 491/23 para a criação do Programa Cozinha Solidária, que terá como objetivo distribuir alimentos à população em situação de vulnerabilidade social. O programa pretende ser mais um mecanismo para acelerar o processo de enfrentamento à situação de fome e insegurança alimentar no país.
Dado que três ministérios atuam com agricultura urbana, há um desafio de integração no âmbito do Governo Federal. Além disso, a integração entre diferentes níveis de governo também demanda esforços para liderar a agenda do combate à fome e a desnutrição.
A FGV EAESP contribui nesta agenda ao promover "Diálogos Intersetoriais sobre Segurança Alimentar: Desafios e Inovações" em parceria com o Banco de Alimentos de Osasco, realizado em abril, que apontou desafios para avanço da agenda de SAN:
- Desafio de integração dentro do Governo Federal, entre diferentes níveis de governo e entre governo, sociedade civil, terceiro setor e iniciativa privada;
- Necessidade do tema SAN ocupar espaço nobre nas agendas municipais com pessoal qualificado, orçamento e visão intersetorial;
- Desafio de delinear e implementar políticas públicas alimentares que sejam agendas de Estado;
- Amenizar conflitos de interesse e ao mesmo tempo ampliar a intersetorialidade das ações de SAN;
- Alinhar-se com as tendências portadoras de futuro, mas sem esquecer a tradição e o potencial de gerar riqueza nos cinturões verdes com o fortalecimento da agricultura familiar;
- Alinhar as estratégias de combate à fome com a de redução do desperdício de alimentos, como, por exemplo, o fortalecimento dos Bancos de Alimentos em sinergia com empresas do setor de alimentos;
- Incrementar a coerência entre políticas e programas de governo alinhados ao tema SAN;
- Fortalecer circuitos curtos de produção e consumo para gerar renda no entorno das cidades e ampliar o acesso a alimentos saudáveis;
- Incremento de hortas pedagógicas como instrumento de educação alimentar e nutricional para as crianças e adolescentes, assim como a ampliação da agricultura urbana e periurbana para preservação do meio ambiente e produção de alimentos saudáveis.
A proposta de diálogos intersetoriais cria espaços de fala, escuta e aprendizado mútuo. A deliberação de uma agenda comum para redução da fome, independente das agendas individuais e eventuais conflitos, contribui para avanços com a celeridade que os desafios exigem. A capacidade de replicar iniciativas lideradas pela sociedade durante a pandemia em políticas públicas adaptadas ao novo contexto pós pandemia se faz necessária.
Artigo elaborado a partir dos debates do Seminário "Diálogos Intersetoriais sobre Segurança Alimentar: Desafios e Inovações", disponível no canal do YouTube da FGV