Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Essencial, mas marginal: o trabalho doméstico remunerado antes e durante a pandemia


Por Redação

Luana Junqueira Dias Myrrha

Doutora em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora no Departamento de Demografia e Ciências Atuariais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Jordana Cristina de Jesus

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Doutora em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora no Departamento de Demografia e Ciências Atuariais na UFRN

Mariana Mazzini Marcondes

Doutora em Administração Pública e Governo pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP/FGV) e professora de Administração Pública e Gestão Social na UFRN

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A pandemia de Covid-19 modificou notavelmente o cotidiano das brasileiras e dos brasileiros. Máscara, álcool em gel, quarentena, achatar a curva, auxílio emergencial, calle home office. Um extenso repertório de palavras rapidamente povoou a comunicação diária, efeito das profundas mudanças nas práticas sociais. Houve, contudo, palavras que também se fizeram mais visíveis no dia a dia, ainda que sem nomearem uma novidade. Cuidado e trabalho doméstico são dois exemplos. Ainda que a pandemia tenha sido o momento da descoberta, para algumas pessoas, do que significam as práticas por detrás dessas palavras (e que máquina de lavar não apita quando termina), os movimentos feministas já reivindicavam, há muitas décadas, que o cuidado e o trabalho doméstico tivessem a mesma centralidade no debate político que possuem para a sustentabilidade da vida humana.

As pesquisas de mulheres feministas foram fundamentais para produzir conhecimentos sobre o cuidado e o trabalho doméstico. Por meio delas, evidenciou-se que a quantidade de tempo que as mulheres dedicam ao trabalho doméstico e de cuidado varia com o ciclo de vida, o casamento ou não, o número de filhos/as ou a convivência com pessoas idosas. Mas, além disso, essa quantidade responde também às condições socioeconômicas dessas mulheres. Na média, quanto maior o nível de renda (em que cresce a predominância de mulheres brancas), menor a carga de trabalho doméstico a qual uma mulher está submetida. Isso acontece porque nos mais altos níveis de renda é possível adquirir serviços que substituem ou amenizam o tempo dedicado ao trabalho doméstico não remunerado, como a contratação de diaristas, empregadas domésticas e babás, ou de berçários e creches, além de compra de refeições prontas.

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A renda permite, ainda, equipar os domicílios com eletrodomésticos que diminuem a intensidade de tempo demandado, como máquina de lavar roupa. Em casos mais extremos, é fator para garantir acesso à água encanada. Esse conjunto de fatores resulta que as mulheres mais pobres, majoritariamente negras, acabam por dedicar muito mais tempo ao trabalho doméstico não remunerado. São elas, ainda, que exercem, o trabalho doméstico remunerado.

A importância do trabalho doméstico remunerado para sustentar o modo de reprodução da vida humana no Brasil não é uma novidade para os feminismos. O título "Bipolaridade do trabalho feminino contemporâneo" soa atual, mas intitula artigo publicado por Cristina Bruschini e Maria Rosa Lombardi nos anos 2000, ou seja, há vinte anos. De lá para cá, segue contemporânea a articulação entre trabalho doméstico remunerado e não remunerado, por meio de um modelo de delegações entre mulheres.

É por meio da delegação que se enredam as personagens de uma insustentável trama, que se desenrola no lugar doméstico. De um lado, majoritariamente, mulheres brancas e de classes médias e altas, que delegam (total ou parcialmente) a execução do trabalho doméstico às trabalhadoras domésticas e, por isso, dispõem de tempo para a inserção nas "boas ocupações" (nos termos de Bruschini e Lombardi). De outro, sobretudo, mulheres negras, empobrecidas e em trabalhos precários, nobeco sem saídado modelo de delegação. E, ocultado, um terceiro sujeito: os homens, no exercício de sua irresponsabilidade privilegiada, já que não houve uma profunda reorganização das responsabilidades familiares entre mulheres e homens.

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A pandemia de Covid-19 atualizou essa narrativa com dramáticos exemplos. A primeira morte confirmada no Rio de Janeiro  foi de uma trabalhadora doméstica, que contraiu a doença de sua empregadora, que acabara de voltar de férias na Itália. Em Recife, a morte do menino Miguel chocou o país. Enquanto Mirtes Souza, sua mãe, passeava com o cachorro da patroa, Sarí Corte Real impacientava-se com o menino, deixando-o sozinho no elevador, o que tragicamente o levou à morte. Estados como o Pará incluíram o serviço doméstico entre as atividades essenciais, para que o trabalho doméstico remunerado não fosse paralisado durante a quarentena. Essencial, porém marginal.

Nesse contexto, de aprofundamento e escancaramento das desigualdades, é fundamental refletir sobre as mudanças e permanências em relação ao trabalho doméstico, a fim de contribuir com um projeto de Estado e sociedade verdadeiramente inclusivos. Para isso, nesse artigo, iniciamos caracterizando o trabalho doméstico pré-covid 19. Em seguida, discutimos os resultados de uma pesquisa realizada sobre a contratação de trabalho doméstico remunerado.

No Brasil, historicamente, os trabalhos domésticos são construídos e reforçados como responsabilidade das mulheres, independentemente da sua situação social e de sua posição na família. O emprego doméstico segue sendo uma ocupação tipicamente feminina e absorve importante parcela das mulheres ocupadas. No quarto trimestre do ano de 2019, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral (PNADCT/IBGE), as mulheres representavam 92,4% de um universo de 6,3 milhões de profissionais  do trabalho doméstico (razão pela qual usamos o gênero feminino para nos referirmos a esse trabalho ao longo do texto). Além disso, opeso desta ocupação no conjunto da força de trabalho feminina representava cerca de 14% do total, correspondendo aosegundo grupo de atividade mais frequente entre as mulheres que estavam no mercado de trabalho brasileiro.

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Uma consequência do modelo de delegação é que diferentes mulheres ocupam diferentes lugares na articulação trabalho doméstico remunerado e não remunerado. Por isso, é importante entender as articulações de gênero, classe e raça que estruturam as realidades dessa ocupação. Uma das características do trabalho doméstico remunerado é o elevado grau de informalidade, que conecta a atualidade da profissão com suas raízes escravocratas. Isso ajuda, ainda, a explicar o desprestígio desse trabalho na esfera civil e jurídica, ainda que haja avanços.

Em 2013, a Constituição Federal foi alterada pela que ficou conhecida como a Pec das Domésticas, que ampliou direitos da categoria de modo a aproximá-los aos direitos de demais trabalhadores/as. Entretanto, a formalização permanece baixa desde 2012: em média, apenas 31% das pessoas empregadas no trabalho doméstico tinham carteira assinada, o que, no último semestre de 2019, reduziu para 28%. Além de ser majoritariamente feminino e informal, o trabalho doméstico remunerado é, em sua maioria, exercido por pessoas negras (66%), com baixa escolaridade e que auferiam remuneração média de R$ 916,00 no último trimestre de 2019, valor inferior ao salário mínimo.

Assim, no cenário pré-pandemia da Covid-19, o lugar que ocupavam as trabalhadoras domésticas era, em regra, o do desvalor, da vulnerabilidade econômica e desproteção social, da precarização e das jornadas intensas, extensas e intermitentes. O início da pandemia acionou o alerta para o que poderia ocorrer em relação a esse cenário. Isso levou a ONU Mulheres a classificar as trabalhadoras domésticas entre as  mais vulneráveis economicamente. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, considerou a categoria entre as mais expostas ao risco de contaminação pela Covid-19, pois trabalham em contato direto com empregadores/es e familiares/es, além de dependerem de transporte coletivo para ir e vir do trabalho. É possível constatar essa realidade com base no Gráfico 1.

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 Foto: Estadão

O Gráfico 1 revela o impacto da pandemia da Covid-19 nos postos de trabalho de todos os grupos de atividades no Brasil e o grupo "serviços domésticos" se apresenta como o segundo mais afetado, perdendo apenas para o setor de "Alojamento e alimentação", que inclui as atividades do turismo. Com efeito, houve uma retração de 24% no número de profissionais do trabalho doméstico remunerado no País, resultando em uma redução de 1,1 milhões de postos de trabalho. Considerando que essa profissão é fortemente feminizada, isso significa que mais de um milhão de trabalhadoras domésticas estão desempregadas.

O distanciamento social, praticado para reduzir o contágio e proliferação do novo coronavírus, resultou no aumento considerável do trabalho doméstico, devido à nova rotina. A maior permanência em casa também significa mais refeições e limpeza, além de cuidado diário das crianças, que não estão frequentando escolas. Como reagiram as pessoas que contratam o trabalho doméstico em face desse cenário? O modelo de delegação seguiu funcionando, ou garantiu-se o afastamento das trabalhadoras, mantendo-se a relação de trabalho?

Diante dessas perguntas, um grupo de pesquisadoras/es da UFRN, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Regional do Cariri (URCA) e Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), realizaram uma pesquisa online intitulada "A contratação do emprego doméstico durante a pandemia da Covid-19" no Brasil. O público-alvo foram contratantes do trabalho doméstico remunerado ("patrões" e "patroas"), com acesso à internet. O questionário online coletou 1.696 respostas nas cinco grandes regiões do país, entre os dias 25/05/2020 e 06/06/2020.

Os resultados evidenciam que ao longo do período do distanciamento social, vários respondentes praticaram mais de uma ação em relação às trabalhadoras domésticas. É o que se poder depreender do gráfico 2.

 Foto: Estadão

A ação mais frequente foi a manutenção da relação de trabalho e remuneração, com ou sem suspensão do contrato, tendo a trabalhadora permanecido afastada, durante o distanciamento social (49,8%). A segunda ação mais frequente foi a manutenção da relação de trabalho com a mesma remuneração, com continuidade no exercício do trabalho, total ou parcialmente (26,2%). E a terceira resposta mais comum foi a demissão ou não contratação dos serviços (12,6%).

Tais ações se diferenciam de acordo com o tipo de trabalho doméstico feito pela trabalhadora.Aquelas que desempenham atividades de cuidado dos membros do domicílio (bebês, crianças e pessoas idosas) foram principalmente mantidas trabalhando durante o isolamento social. Enquanto 54,7% das trabalhadoras que exerciam cuidados de pessoas dependentes foram mantidas em suas atividades laborais, apenas 33,8% das trabalhadoras de atividades domésticas estavam na mesma situação. Esse resultado reforça a centralidade e a constância das atividades de cuidados no dia a dia das famílias, uma vez que essas demandas não podem ser adaptadas ou adiadas. Isso também se confirma com a baixa manutenção de diaristas (19,8%), que raramente desempenham atividades de cuidados. Além disso, as diaristas foram as que mais vivenciaram o desemprego (18,1%), porque os seus serviços são solicitados com menor frequência, geralmente menos de 3 vezes por semana.

O arranjo domiciliar também influenciou a decisão de contratantes, pois a quantidade de afazeres domésticos depende do número de pessoas adultas, crianças, adolescentes e idosas que compõem o domicílio. O volume de afazeres domésticos foi considerado na decisão por afastar ou não a trabalhadora, como discutimos a partir do gráfico 3.

 Foto: Estadão

O Gráfico 3 demonstra que a presença de crianças até 14 anos de idade nos arranjos com casais ou monoparentais aumentou o percentual da ação "Manteve a relação de trabalho com a mesma remuneração e a trabalhadora continuou a trabalhar normalmente ou parcialmente", se comparado aos arranjos sem crianças.

Com base nos dados analisados, podemos refletir que os trabalhos domésticos (remunerado e não remunerado) são fundamentais para a reprodução social e a sustentabilidade da vida humana em nossa sociedade, o que foi escancarado pela pandemia. Embora tenhamos esses indicativos de aumento do trabalho doméstico e de cuidados, é importante ressaltar que antes da pandemia as famílias já lidavam com demandas e níveis distintos e com desigualdades importantes entre quem cuida e quem é cuidado.E na base dos cuidados estão as mulheres pobres e negras, que sofrem diretamente com o impacto da pandemia, tanto no trabalho remunerado como no não remunerado.

As permanências e mudanças que analisamos nesse artigo sugerem que, mais do que nunca, é necessário ecoar as reivindicações feministas, para que o cuidado e o trabalho doméstico tenham a mesma importância no debate político (e na estruturação de políticas públicas) que possuem na garantia da sustentabilidade da vida humana, antes, durante e depois da pandemia. Com as eleições municipais se aproximando, as lições aprendidas no passado e no presente sobre o tema podem (e devem) ter efeitos no debate político sobre o futuro.

 

Quer saber mais? Algumas sugestões para ler, ouvir e escutar!

Ao longo do texto identificamos, pelos links, algumas das leituras clássicas e atuais sobre o tema. Para finalizar, sugerimos que você pode, também, escutar o podcast "Cuidar - Verbo Coletivo". O episódio 6 chama "Trabalhadoras domésticas na pandemia" e entrevista Luiza Batista Pereira, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), e Louisa Acciari, pós-doutoranda na Universidade Federal dl Rio de Janeiro (UFRJ) e oficial de programa da Federação Internacional das Trabalhadoras Domésticas. O curta Domésticas também é interessante para conhecer a história de vida e de luta da categoria. Assim como as histórias de Neca e Zeza, duas trabalhadoras domésticas que enfrentam a crise de saúde e econômica causada pela covid-19. Enquanto Neca conseguiu manter seu emprego e cruza São Paulo para trabalhar, Zeza perdeu todos os trabalhos que tinha como diarista e ficou presa na pequena casa onde vive com a família, enquanto busca emprego.

Luana Junqueira Dias Myrrha

Doutora em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora no Departamento de Demografia e Ciências Atuariais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Jordana Cristina de Jesus

Doutora em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora no Departamento de Demografia e Ciências Atuariais na UFRN

Mariana Mazzini Marcondes

Doutora em Administração Pública e Governo pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP/FGV) e professora de Administração Pública e Gestão Social na UFRN

 

A pandemia de Covid-19 modificou notavelmente o cotidiano das brasileiras e dos brasileiros. Máscara, álcool em gel, quarentena, achatar a curva, auxílio emergencial, calle home office. Um extenso repertório de palavras rapidamente povoou a comunicação diária, efeito das profundas mudanças nas práticas sociais. Houve, contudo, palavras que também se fizeram mais visíveis no dia a dia, ainda que sem nomearem uma novidade. Cuidado e trabalho doméstico são dois exemplos. Ainda que a pandemia tenha sido o momento da descoberta, para algumas pessoas, do que significam as práticas por detrás dessas palavras (e que máquina de lavar não apita quando termina), os movimentos feministas já reivindicavam, há muitas décadas, que o cuidado e o trabalho doméstico tivessem a mesma centralidade no debate político que possuem para a sustentabilidade da vida humana.

As pesquisas de mulheres feministas foram fundamentais para produzir conhecimentos sobre o cuidado e o trabalho doméstico. Por meio delas, evidenciou-se que a quantidade de tempo que as mulheres dedicam ao trabalho doméstico e de cuidado varia com o ciclo de vida, o casamento ou não, o número de filhos/as ou a convivência com pessoas idosas. Mas, além disso, essa quantidade responde também às condições socioeconômicas dessas mulheres. Na média, quanto maior o nível de renda (em que cresce a predominância de mulheres brancas), menor a carga de trabalho doméstico a qual uma mulher está submetida. Isso acontece porque nos mais altos níveis de renda é possível adquirir serviços que substituem ou amenizam o tempo dedicado ao trabalho doméstico não remunerado, como a contratação de diaristas, empregadas domésticas e babás, ou de berçários e creches, além de compra de refeições prontas.

A renda permite, ainda, equipar os domicílios com eletrodomésticos que diminuem a intensidade de tempo demandado, como máquina de lavar roupa. Em casos mais extremos, é fator para garantir acesso à água encanada. Esse conjunto de fatores resulta que as mulheres mais pobres, majoritariamente negras, acabam por dedicar muito mais tempo ao trabalho doméstico não remunerado. São elas, ainda, que exercem, o trabalho doméstico remunerado.

A importância do trabalho doméstico remunerado para sustentar o modo de reprodução da vida humana no Brasil não é uma novidade para os feminismos. O título "Bipolaridade do trabalho feminino contemporâneo" soa atual, mas intitula artigo publicado por Cristina Bruschini e Maria Rosa Lombardi nos anos 2000, ou seja, há vinte anos. De lá para cá, segue contemporânea a articulação entre trabalho doméstico remunerado e não remunerado, por meio de um modelo de delegações entre mulheres.

É por meio da delegação que se enredam as personagens de uma insustentável trama, que se desenrola no lugar doméstico. De um lado, majoritariamente, mulheres brancas e de classes médias e altas, que delegam (total ou parcialmente) a execução do trabalho doméstico às trabalhadoras domésticas e, por isso, dispõem de tempo para a inserção nas "boas ocupações" (nos termos de Bruschini e Lombardi). De outro, sobretudo, mulheres negras, empobrecidas e em trabalhos precários, nobeco sem saídado modelo de delegação. E, ocultado, um terceiro sujeito: os homens, no exercício de sua irresponsabilidade privilegiada, já que não houve uma profunda reorganização das responsabilidades familiares entre mulheres e homens.

A pandemia de Covid-19 atualizou essa narrativa com dramáticos exemplos. A primeira morte confirmada no Rio de Janeiro  foi de uma trabalhadora doméstica, que contraiu a doença de sua empregadora, que acabara de voltar de férias na Itália. Em Recife, a morte do menino Miguel chocou o país. Enquanto Mirtes Souza, sua mãe, passeava com o cachorro da patroa, Sarí Corte Real impacientava-se com o menino, deixando-o sozinho no elevador, o que tragicamente o levou à morte. Estados como o Pará incluíram o serviço doméstico entre as atividades essenciais, para que o trabalho doméstico remunerado não fosse paralisado durante a quarentena. Essencial, porém marginal.

Nesse contexto, de aprofundamento e escancaramento das desigualdades, é fundamental refletir sobre as mudanças e permanências em relação ao trabalho doméstico, a fim de contribuir com um projeto de Estado e sociedade verdadeiramente inclusivos. Para isso, nesse artigo, iniciamos caracterizando o trabalho doméstico pré-covid 19. Em seguida, discutimos os resultados de uma pesquisa realizada sobre a contratação de trabalho doméstico remunerado.

No Brasil, historicamente, os trabalhos domésticos são construídos e reforçados como responsabilidade das mulheres, independentemente da sua situação social e de sua posição na família. O emprego doméstico segue sendo uma ocupação tipicamente feminina e absorve importante parcela das mulheres ocupadas. No quarto trimestre do ano de 2019, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral (PNADCT/IBGE), as mulheres representavam 92,4% de um universo de 6,3 milhões de profissionais  do trabalho doméstico (razão pela qual usamos o gênero feminino para nos referirmos a esse trabalho ao longo do texto). Além disso, opeso desta ocupação no conjunto da força de trabalho feminina representava cerca de 14% do total, correspondendo aosegundo grupo de atividade mais frequente entre as mulheres que estavam no mercado de trabalho brasileiro.

Uma consequência do modelo de delegação é que diferentes mulheres ocupam diferentes lugares na articulação trabalho doméstico remunerado e não remunerado. Por isso, é importante entender as articulações de gênero, classe e raça que estruturam as realidades dessa ocupação. Uma das características do trabalho doméstico remunerado é o elevado grau de informalidade, que conecta a atualidade da profissão com suas raízes escravocratas. Isso ajuda, ainda, a explicar o desprestígio desse trabalho na esfera civil e jurídica, ainda que haja avanços.

Em 2013, a Constituição Federal foi alterada pela que ficou conhecida como a Pec das Domésticas, que ampliou direitos da categoria de modo a aproximá-los aos direitos de demais trabalhadores/as. Entretanto, a formalização permanece baixa desde 2012: em média, apenas 31% das pessoas empregadas no trabalho doméstico tinham carteira assinada, o que, no último semestre de 2019, reduziu para 28%. Além de ser majoritariamente feminino e informal, o trabalho doméstico remunerado é, em sua maioria, exercido por pessoas negras (66%), com baixa escolaridade e que auferiam remuneração média de R$ 916,00 no último trimestre de 2019, valor inferior ao salário mínimo.

Assim, no cenário pré-pandemia da Covid-19, o lugar que ocupavam as trabalhadoras domésticas era, em regra, o do desvalor, da vulnerabilidade econômica e desproteção social, da precarização e das jornadas intensas, extensas e intermitentes. O início da pandemia acionou o alerta para o que poderia ocorrer em relação a esse cenário. Isso levou a ONU Mulheres a classificar as trabalhadoras domésticas entre as  mais vulneráveis economicamente. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, considerou a categoria entre as mais expostas ao risco de contaminação pela Covid-19, pois trabalham em contato direto com empregadores/es e familiares/es, além de dependerem de transporte coletivo para ir e vir do trabalho. É possível constatar essa realidade com base no Gráfico 1.

 Foto: Estadão

O Gráfico 1 revela o impacto da pandemia da Covid-19 nos postos de trabalho de todos os grupos de atividades no Brasil e o grupo "serviços domésticos" se apresenta como o segundo mais afetado, perdendo apenas para o setor de "Alojamento e alimentação", que inclui as atividades do turismo. Com efeito, houve uma retração de 24% no número de profissionais do trabalho doméstico remunerado no País, resultando em uma redução de 1,1 milhões de postos de trabalho. Considerando que essa profissão é fortemente feminizada, isso significa que mais de um milhão de trabalhadoras domésticas estão desempregadas.

O distanciamento social, praticado para reduzir o contágio e proliferação do novo coronavírus, resultou no aumento considerável do trabalho doméstico, devido à nova rotina. A maior permanência em casa também significa mais refeições e limpeza, além de cuidado diário das crianças, que não estão frequentando escolas. Como reagiram as pessoas que contratam o trabalho doméstico em face desse cenário? O modelo de delegação seguiu funcionando, ou garantiu-se o afastamento das trabalhadoras, mantendo-se a relação de trabalho?

Diante dessas perguntas, um grupo de pesquisadoras/es da UFRN, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Regional do Cariri (URCA) e Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), realizaram uma pesquisa online intitulada "A contratação do emprego doméstico durante a pandemia da Covid-19" no Brasil. O público-alvo foram contratantes do trabalho doméstico remunerado ("patrões" e "patroas"), com acesso à internet. O questionário online coletou 1.696 respostas nas cinco grandes regiões do país, entre os dias 25/05/2020 e 06/06/2020.

Os resultados evidenciam que ao longo do período do distanciamento social, vários respondentes praticaram mais de uma ação em relação às trabalhadoras domésticas. É o que se poder depreender do gráfico 2.

 Foto: Estadão

A ação mais frequente foi a manutenção da relação de trabalho e remuneração, com ou sem suspensão do contrato, tendo a trabalhadora permanecido afastada, durante o distanciamento social (49,8%). A segunda ação mais frequente foi a manutenção da relação de trabalho com a mesma remuneração, com continuidade no exercício do trabalho, total ou parcialmente (26,2%). E a terceira resposta mais comum foi a demissão ou não contratação dos serviços (12,6%).

Tais ações se diferenciam de acordo com o tipo de trabalho doméstico feito pela trabalhadora.Aquelas que desempenham atividades de cuidado dos membros do domicílio (bebês, crianças e pessoas idosas) foram principalmente mantidas trabalhando durante o isolamento social. Enquanto 54,7% das trabalhadoras que exerciam cuidados de pessoas dependentes foram mantidas em suas atividades laborais, apenas 33,8% das trabalhadoras de atividades domésticas estavam na mesma situação. Esse resultado reforça a centralidade e a constância das atividades de cuidados no dia a dia das famílias, uma vez que essas demandas não podem ser adaptadas ou adiadas. Isso também se confirma com a baixa manutenção de diaristas (19,8%), que raramente desempenham atividades de cuidados. Além disso, as diaristas foram as que mais vivenciaram o desemprego (18,1%), porque os seus serviços são solicitados com menor frequência, geralmente menos de 3 vezes por semana.

O arranjo domiciliar também influenciou a decisão de contratantes, pois a quantidade de afazeres domésticos depende do número de pessoas adultas, crianças, adolescentes e idosas que compõem o domicílio. O volume de afazeres domésticos foi considerado na decisão por afastar ou não a trabalhadora, como discutimos a partir do gráfico 3.

 Foto: Estadão

O Gráfico 3 demonstra que a presença de crianças até 14 anos de idade nos arranjos com casais ou monoparentais aumentou o percentual da ação "Manteve a relação de trabalho com a mesma remuneração e a trabalhadora continuou a trabalhar normalmente ou parcialmente", se comparado aos arranjos sem crianças.

Com base nos dados analisados, podemos refletir que os trabalhos domésticos (remunerado e não remunerado) são fundamentais para a reprodução social e a sustentabilidade da vida humana em nossa sociedade, o que foi escancarado pela pandemia. Embora tenhamos esses indicativos de aumento do trabalho doméstico e de cuidados, é importante ressaltar que antes da pandemia as famílias já lidavam com demandas e níveis distintos e com desigualdades importantes entre quem cuida e quem é cuidado.E na base dos cuidados estão as mulheres pobres e negras, que sofrem diretamente com o impacto da pandemia, tanto no trabalho remunerado como no não remunerado.

As permanências e mudanças que analisamos nesse artigo sugerem que, mais do que nunca, é necessário ecoar as reivindicações feministas, para que o cuidado e o trabalho doméstico tenham a mesma importância no debate político (e na estruturação de políticas públicas) que possuem na garantia da sustentabilidade da vida humana, antes, durante e depois da pandemia. Com as eleições municipais se aproximando, as lições aprendidas no passado e no presente sobre o tema podem (e devem) ter efeitos no debate político sobre o futuro.

 

Quer saber mais? Algumas sugestões para ler, ouvir e escutar!

Ao longo do texto identificamos, pelos links, algumas das leituras clássicas e atuais sobre o tema. Para finalizar, sugerimos que você pode, também, escutar o podcast "Cuidar - Verbo Coletivo". O episódio 6 chama "Trabalhadoras domésticas na pandemia" e entrevista Luiza Batista Pereira, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), e Louisa Acciari, pós-doutoranda na Universidade Federal dl Rio de Janeiro (UFRJ) e oficial de programa da Federação Internacional das Trabalhadoras Domésticas. O curta Domésticas também é interessante para conhecer a história de vida e de luta da categoria. Assim como as histórias de Neca e Zeza, duas trabalhadoras domésticas que enfrentam a crise de saúde e econômica causada pela covid-19. Enquanto Neca conseguiu manter seu emprego e cruza São Paulo para trabalhar, Zeza perdeu todos os trabalhos que tinha como diarista e ficou presa na pequena casa onde vive com a família, enquanto busca emprego.

Luana Junqueira Dias Myrrha

Doutora em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora no Departamento de Demografia e Ciências Atuariais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Jordana Cristina de Jesus

Doutora em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora no Departamento de Demografia e Ciências Atuariais na UFRN

Mariana Mazzini Marcondes

Doutora em Administração Pública e Governo pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (EAESP/FGV) e professora de Administração Pública e Gestão Social na UFRN

 

A pandemia de Covid-19 modificou notavelmente o cotidiano das brasileiras e dos brasileiros. Máscara, álcool em gel, quarentena, achatar a curva, auxílio emergencial, calle home office. Um extenso repertório de palavras rapidamente povoou a comunicação diária, efeito das profundas mudanças nas práticas sociais. Houve, contudo, palavras que também se fizeram mais visíveis no dia a dia, ainda que sem nomearem uma novidade. Cuidado e trabalho doméstico são dois exemplos. Ainda que a pandemia tenha sido o momento da descoberta, para algumas pessoas, do que significam as práticas por detrás dessas palavras (e que máquina de lavar não apita quando termina), os movimentos feministas já reivindicavam, há muitas décadas, que o cuidado e o trabalho doméstico tivessem a mesma centralidade no debate político que possuem para a sustentabilidade da vida humana.

As pesquisas de mulheres feministas foram fundamentais para produzir conhecimentos sobre o cuidado e o trabalho doméstico. Por meio delas, evidenciou-se que a quantidade de tempo que as mulheres dedicam ao trabalho doméstico e de cuidado varia com o ciclo de vida, o casamento ou não, o número de filhos/as ou a convivência com pessoas idosas. Mas, além disso, essa quantidade responde também às condições socioeconômicas dessas mulheres. Na média, quanto maior o nível de renda (em que cresce a predominância de mulheres brancas), menor a carga de trabalho doméstico a qual uma mulher está submetida. Isso acontece porque nos mais altos níveis de renda é possível adquirir serviços que substituem ou amenizam o tempo dedicado ao trabalho doméstico não remunerado, como a contratação de diaristas, empregadas domésticas e babás, ou de berçários e creches, além de compra de refeições prontas.

A renda permite, ainda, equipar os domicílios com eletrodomésticos que diminuem a intensidade de tempo demandado, como máquina de lavar roupa. Em casos mais extremos, é fator para garantir acesso à água encanada. Esse conjunto de fatores resulta que as mulheres mais pobres, majoritariamente negras, acabam por dedicar muito mais tempo ao trabalho doméstico não remunerado. São elas, ainda, que exercem, o trabalho doméstico remunerado.

A importância do trabalho doméstico remunerado para sustentar o modo de reprodução da vida humana no Brasil não é uma novidade para os feminismos. O título "Bipolaridade do trabalho feminino contemporâneo" soa atual, mas intitula artigo publicado por Cristina Bruschini e Maria Rosa Lombardi nos anos 2000, ou seja, há vinte anos. De lá para cá, segue contemporânea a articulação entre trabalho doméstico remunerado e não remunerado, por meio de um modelo de delegações entre mulheres.

É por meio da delegação que se enredam as personagens de uma insustentável trama, que se desenrola no lugar doméstico. De um lado, majoritariamente, mulheres brancas e de classes médias e altas, que delegam (total ou parcialmente) a execução do trabalho doméstico às trabalhadoras domésticas e, por isso, dispõem de tempo para a inserção nas "boas ocupações" (nos termos de Bruschini e Lombardi). De outro, sobretudo, mulheres negras, empobrecidas e em trabalhos precários, nobeco sem saídado modelo de delegação. E, ocultado, um terceiro sujeito: os homens, no exercício de sua irresponsabilidade privilegiada, já que não houve uma profunda reorganização das responsabilidades familiares entre mulheres e homens.

A pandemia de Covid-19 atualizou essa narrativa com dramáticos exemplos. A primeira morte confirmada no Rio de Janeiro  foi de uma trabalhadora doméstica, que contraiu a doença de sua empregadora, que acabara de voltar de férias na Itália. Em Recife, a morte do menino Miguel chocou o país. Enquanto Mirtes Souza, sua mãe, passeava com o cachorro da patroa, Sarí Corte Real impacientava-se com o menino, deixando-o sozinho no elevador, o que tragicamente o levou à morte. Estados como o Pará incluíram o serviço doméstico entre as atividades essenciais, para que o trabalho doméstico remunerado não fosse paralisado durante a quarentena. Essencial, porém marginal.

Nesse contexto, de aprofundamento e escancaramento das desigualdades, é fundamental refletir sobre as mudanças e permanências em relação ao trabalho doméstico, a fim de contribuir com um projeto de Estado e sociedade verdadeiramente inclusivos. Para isso, nesse artigo, iniciamos caracterizando o trabalho doméstico pré-covid 19. Em seguida, discutimos os resultados de uma pesquisa realizada sobre a contratação de trabalho doméstico remunerado.

No Brasil, historicamente, os trabalhos domésticos são construídos e reforçados como responsabilidade das mulheres, independentemente da sua situação social e de sua posição na família. O emprego doméstico segue sendo uma ocupação tipicamente feminina e absorve importante parcela das mulheres ocupadas. No quarto trimestre do ano de 2019, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral (PNADCT/IBGE), as mulheres representavam 92,4% de um universo de 6,3 milhões de profissionais  do trabalho doméstico (razão pela qual usamos o gênero feminino para nos referirmos a esse trabalho ao longo do texto). Além disso, opeso desta ocupação no conjunto da força de trabalho feminina representava cerca de 14% do total, correspondendo aosegundo grupo de atividade mais frequente entre as mulheres que estavam no mercado de trabalho brasileiro.

Uma consequência do modelo de delegação é que diferentes mulheres ocupam diferentes lugares na articulação trabalho doméstico remunerado e não remunerado. Por isso, é importante entender as articulações de gênero, classe e raça que estruturam as realidades dessa ocupação. Uma das características do trabalho doméstico remunerado é o elevado grau de informalidade, que conecta a atualidade da profissão com suas raízes escravocratas. Isso ajuda, ainda, a explicar o desprestígio desse trabalho na esfera civil e jurídica, ainda que haja avanços.

Em 2013, a Constituição Federal foi alterada pela que ficou conhecida como a Pec das Domésticas, que ampliou direitos da categoria de modo a aproximá-los aos direitos de demais trabalhadores/as. Entretanto, a formalização permanece baixa desde 2012: em média, apenas 31% das pessoas empregadas no trabalho doméstico tinham carteira assinada, o que, no último semestre de 2019, reduziu para 28%. Além de ser majoritariamente feminino e informal, o trabalho doméstico remunerado é, em sua maioria, exercido por pessoas negras (66%), com baixa escolaridade e que auferiam remuneração média de R$ 916,00 no último trimestre de 2019, valor inferior ao salário mínimo.

Assim, no cenário pré-pandemia da Covid-19, o lugar que ocupavam as trabalhadoras domésticas era, em regra, o do desvalor, da vulnerabilidade econômica e desproteção social, da precarização e das jornadas intensas, extensas e intermitentes. O início da pandemia acionou o alerta para o que poderia ocorrer em relação a esse cenário. Isso levou a ONU Mulheres a classificar as trabalhadoras domésticas entre as  mais vulneráveis economicamente. A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por sua vez, considerou a categoria entre as mais expostas ao risco de contaminação pela Covid-19, pois trabalham em contato direto com empregadores/es e familiares/es, além de dependerem de transporte coletivo para ir e vir do trabalho. É possível constatar essa realidade com base no Gráfico 1.

 Foto: Estadão

O Gráfico 1 revela o impacto da pandemia da Covid-19 nos postos de trabalho de todos os grupos de atividades no Brasil e o grupo "serviços domésticos" se apresenta como o segundo mais afetado, perdendo apenas para o setor de "Alojamento e alimentação", que inclui as atividades do turismo. Com efeito, houve uma retração de 24% no número de profissionais do trabalho doméstico remunerado no País, resultando em uma redução de 1,1 milhões de postos de trabalho. Considerando que essa profissão é fortemente feminizada, isso significa que mais de um milhão de trabalhadoras domésticas estão desempregadas.

O distanciamento social, praticado para reduzir o contágio e proliferação do novo coronavírus, resultou no aumento considerável do trabalho doméstico, devido à nova rotina. A maior permanência em casa também significa mais refeições e limpeza, além de cuidado diário das crianças, que não estão frequentando escolas. Como reagiram as pessoas que contratam o trabalho doméstico em face desse cenário? O modelo de delegação seguiu funcionando, ou garantiu-se o afastamento das trabalhadoras, mantendo-se a relação de trabalho?

Diante dessas perguntas, um grupo de pesquisadoras/es da UFRN, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Regional do Cariri (URCA) e Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), realizaram uma pesquisa online intitulada "A contratação do emprego doméstico durante a pandemia da Covid-19" no Brasil. O público-alvo foram contratantes do trabalho doméstico remunerado ("patrões" e "patroas"), com acesso à internet. O questionário online coletou 1.696 respostas nas cinco grandes regiões do país, entre os dias 25/05/2020 e 06/06/2020.

Os resultados evidenciam que ao longo do período do distanciamento social, vários respondentes praticaram mais de uma ação em relação às trabalhadoras domésticas. É o que se poder depreender do gráfico 2.

 Foto: Estadão

A ação mais frequente foi a manutenção da relação de trabalho e remuneração, com ou sem suspensão do contrato, tendo a trabalhadora permanecido afastada, durante o distanciamento social (49,8%). A segunda ação mais frequente foi a manutenção da relação de trabalho com a mesma remuneração, com continuidade no exercício do trabalho, total ou parcialmente (26,2%). E a terceira resposta mais comum foi a demissão ou não contratação dos serviços (12,6%).

Tais ações se diferenciam de acordo com o tipo de trabalho doméstico feito pela trabalhadora.Aquelas que desempenham atividades de cuidado dos membros do domicílio (bebês, crianças e pessoas idosas) foram principalmente mantidas trabalhando durante o isolamento social. Enquanto 54,7% das trabalhadoras que exerciam cuidados de pessoas dependentes foram mantidas em suas atividades laborais, apenas 33,8% das trabalhadoras de atividades domésticas estavam na mesma situação. Esse resultado reforça a centralidade e a constância das atividades de cuidados no dia a dia das famílias, uma vez que essas demandas não podem ser adaptadas ou adiadas. Isso também se confirma com a baixa manutenção de diaristas (19,8%), que raramente desempenham atividades de cuidados. Além disso, as diaristas foram as que mais vivenciaram o desemprego (18,1%), porque os seus serviços são solicitados com menor frequência, geralmente menos de 3 vezes por semana.

O arranjo domiciliar também influenciou a decisão de contratantes, pois a quantidade de afazeres domésticos depende do número de pessoas adultas, crianças, adolescentes e idosas que compõem o domicílio. O volume de afazeres domésticos foi considerado na decisão por afastar ou não a trabalhadora, como discutimos a partir do gráfico 3.

 Foto: Estadão

O Gráfico 3 demonstra que a presença de crianças até 14 anos de idade nos arranjos com casais ou monoparentais aumentou o percentual da ação "Manteve a relação de trabalho com a mesma remuneração e a trabalhadora continuou a trabalhar normalmente ou parcialmente", se comparado aos arranjos sem crianças.

Com base nos dados analisados, podemos refletir que os trabalhos domésticos (remunerado e não remunerado) são fundamentais para a reprodução social e a sustentabilidade da vida humana em nossa sociedade, o que foi escancarado pela pandemia. Embora tenhamos esses indicativos de aumento do trabalho doméstico e de cuidados, é importante ressaltar que antes da pandemia as famílias já lidavam com demandas e níveis distintos e com desigualdades importantes entre quem cuida e quem é cuidado.E na base dos cuidados estão as mulheres pobres e negras, que sofrem diretamente com o impacto da pandemia, tanto no trabalho remunerado como no não remunerado.

As permanências e mudanças que analisamos nesse artigo sugerem que, mais do que nunca, é necessário ecoar as reivindicações feministas, para que o cuidado e o trabalho doméstico tenham a mesma importância no debate político (e na estruturação de políticas públicas) que possuem na garantia da sustentabilidade da vida humana, antes, durante e depois da pandemia. Com as eleições municipais se aproximando, as lições aprendidas no passado e no presente sobre o tema podem (e devem) ter efeitos no debate político sobre o futuro.

 

Quer saber mais? Algumas sugestões para ler, ouvir e escutar!

Ao longo do texto identificamos, pelos links, algumas das leituras clássicas e atuais sobre o tema. Para finalizar, sugerimos que você pode, também, escutar o podcast "Cuidar - Verbo Coletivo". O episódio 6 chama "Trabalhadoras domésticas na pandemia" e entrevista Luiza Batista Pereira, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (FENATRAD), e Louisa Acciari, pós-doutoranda na Universidade Federal dl Rio de Janeiro (UFRJ) e oficial de programa da Federação Internacional das Trabalhadoras Domésticas. O curta Domésticas também é interessante para conhecer a história de vida e de luta da categoria. Assim como as histórias de Neca e Zeza, duas trabalhadoras domésticas que enfrentam a crise de saúde e econômica causada pela covid-19. Enquanto Neca conseguiu manter seu emprego e cruza São Paulo para trabalhar, Zeza perdeu todos os trabalhos que tinha como diarista e ficou presa na pequena casa onde vive com a família, enquanto busca emprego.

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