Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Juventude e trabalho na pandemia da covid-19: a experiência dos "bike-entregadores" de aplicativos de delivery


Por Redação
Imagem divulgação.  

Caíque Oliveira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: caique.diogo@outlook.com.br

Maria Carla Corrochano, Docente do Departamento de Ciências Humanas e Educação, e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Estudos da Condição Humana. Pesquisadora do CNPq. E-mail: mcarla@ufscar.br

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No início de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a covid-19 havia se transformado em uma pandemia global, já era possível prever que o período vindouro traria mudanças em diversos âmbitos da vida social. A situação gerou impactos sobre as populações nas diversas partes do globo, tais como medidas de isolamento e distanciamento social, e intensificou as desigualdades em vários setores para além da saúde.

No senso comum, reverberando na mídia e em outros segmentos da sociedade, a juventude foi posta como responsável pela propagação do vírus. Esse discurso recaiu sobre diferentes juventudes, porém foi especialmente estigmatizadora para com jovens das periferias urbanas, acusando-os de continuarem frequentando festas, baladas e provocando aglomerações, e assim, consequentemente disseminando o vírus (SOBRINHO; ABRAMO, 2021). O que se observou, no entanto, foi que boa parte da juventude no Brasil continuou saindo às ruas para trabalhar (CORROCHANO, 2021; SOBRINHO; ABRAMO, 2021).

O presente texto é um resumo do artigo Juventude e trabalho na pandemia de covid-19: a experiência dos "bike-entregadores" de aplicativos de delivery, publicado na Revista Princípios. A pesquisa foi realizada com 11 jovens que trabalham em aplicativos na capital paulista e contou com a realização de observações de campo e entrevistas realizadas de forma remota.

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Sem uma ocupação profissional que permitisse o home office, e com a diminuição da renda e elevação do desemprego entre familiares, muitos jovens não puderam praticar o auto-isolamento: aqueles e aquelas que trabalhavam nos chamados "serviços essenciais" continuaram a trabalhar neles e foram expostos cotidianamente ao risco de contrair a covid-19. Além disso, a juventude teve que enfrentar uma pandemia com limitado apoio do Estado, haja vista que o governo de Jair Bolsonaro deu fortes indícios de omissão e negação dos graves riscos da covid-19 no país.

Por mais que o Brasil tenha vivenciado os primeiros casos da covid-19 de maneira mais tardia que países da Ásia ou Europa, a necessidade de ficar em casa e trabalhar na própria residência se materializou no país como um direito restrito à uma parcela minoritária dos trabalhadores. O direito de trabalhar de casa foi efetivado de modo diferenciado segundo critérios etários e étnico-raciais. Entre os jovens que continuaram a sair às ruas estavam os entregadores de aplicativos.

O desenvolvimento das plataformas digitais de trabalho é relativamente recente na história do capitalismo. As transformações no mundo do trabalho na contemporaneidade têm modificado o modo como os indivíduos buscam e vivenciam a própria experiência laboral. Acessadas pelo toque na tela do próprio telefone, as plataformas digitais têm levado milhões de pessoas pelo mundo a novas experiências laborais.

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Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o trabalho em plataformas digitais encontrou base na crise econômica e financeira de 2008. Após esse período, enquanto os países optaram por salvar bancos e flexibilizar a proteção social aos trabalhadores, emergiu um cenário de empregos sem regulamentação. No Sul Global, mais especificamente no Brasil, as plataformas digitais encontraram um cenário distinto, todavia igualmente ancorado no neoliberalismo. O capitalismo brasileiro possui uma larga tradição com o trabalho informal; e ainda, no período de crise pós-2014, desenhou-se um cenário cujas mudanças econômicas e políticas culminaram na reforma trabalhista contida na lei nº 13.467, de 2017. Essa modificação legal resultou em novos elementos de precariedade nas relações de trabalho e emprego.

Os serviços oferecidos por plataformas digitais que terceirizam trabalhadores são diversos, contudo, a entrega de mercadorias passou por amplo crescimento de demanda durante a pandemia. As entregas com bicicletas representam o segmento no qual há maior inserção de jovens. Os dados existentes para o município de São Paulo indicam que, além de jovens, os entregadores apresentam um perfil majoritariamente masculino, negro e periférico (ALIANÇA BIKE, 2019).

Entre os entregadores entrevistados por nossa pesquisa, verificou-se que os interlocutores têm uma trajetória ocupacional semelhante às trajetórias laborais de boa parte da juventude trabalhadora do Brasil. Entre os entrevistados, há trajetórias pregressas em ocupações diversas, as quais passaram por call centers, comércio, redes de fast-food, aprendizes e jovens cuja primeira experiência laboral estava ocorrendo nas plataformas.

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Os principais obstáculos apontados por jovens para conseguir um emprego são a escassez de postos de trabalho e não ter experiência profissional comprovada (VENTURI; TORINI, 2014). Tais obstáculos aparecem nas entrevistas com "bike-entregadores". Ao buscarem as plataformas como primeira experiência de trabalho, alguns deles procuravam enfrentar a falta de experiência e da baixa escolaridade, ou seja, as razões para o chamado "desemprego de inserção" (POCHMANN, 2007), uma vez que nem escolaridade nem experiência são requisitos para o ingresso nesse tipo de ocupação.

Para começar a trabalhar nas plataformas de delivery, os jovens passam por um processo relativamente "simples" de inserção. Diferentemente de outros tipos de trabalho, especialmente nos empregos do setor formal, as plataformas de aplicativos fazem poucas exigências para aqueles que desejam ingressar nas plataformas. Normalmente é solicitado um cadastro, feito de maneira remota em relação à filial da empresa, por meio do smartphone do próprio indivíduo.

Diante da ampliação das vulnerabilidades ao longo da crise vivenciada durante a pandemia da covid-19, o custo de vida tornou-se mais caro, e a elevação dos índices de insegurança alimentar e inflação apareceram nas entrevistas, indicando a necessidade de continuar a trabalhar mesmo em condições adversas. Assim, foi possível identificar diversos jovens que buscaram as plataformas para suprir a necessidade de renda para enfrentar os desafios de sobrevivência na pandemia, o que significou combinar jornadas duplas ou até triplas de trabalho.

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Além da necessidade de renda, alguns entrevistados ingressaram nas plataformas como forma de obter um trabalho com maior flexibilidade na carga horária e remuneração próxima àquela oferecida pelo setor formal. Nesses casos, são jovens que saíram de setores que ofereciam remuneração pouco superior a um salário mínimo e rumaram em direção aos aplicativos. Essa mudança é por vezes justificada pelo fato de a remuneração ser próxima ao valor que recebiam, e também por aquilo que definem como "ser o próprio chefe", dado que os entregadores podem organizar suas jornadas de trabalho segundo suas próprias necessidades. Por mais que a atuação nas plataformas não torne as jornadas laborais diárias necessariamente mais curtas, esse "autogerenciamento subordinado" da rotina, para lembrar a definição de Abílio (2020), tem significados de autonomia importantes para esses jovens.

Uma vez ativos nas plataformas de delivery, os jovens "bike-entregadores" precisam enfrentar uma série de situações de precariedade. Além da exploração, os jovens enfrentam situações de risco no trabalho de entregas. Na experiência de trabalho durante o período pandêmico, somaram-se aos perigos da própria ocupação -- pedalar pelo trânsito paulistano -- os riscos de contrair o vírus. Enquanto os jovens entrevistados estavam trabalhando, durante o mês de abril de 2021, o Brasil bateu o recorde diário no número de mortes por conta da covid-19, chegando a registrar um total de 4.195 óbitos.

Mesmo durante as fases mais restritivas, em que diversos estabelecimentos comerciais estiveram fechados para o público ou quando a prefeitura da cidade de São Paulo - lócus da pesquisa - decretou a chamada "fase roxa", período em que hospitais já não possuíam leitos nem unidades de tratamento intensivo (UTIs) suficientes, os entregadores continuaram saindo às ruas. Sobre esse ponto, os jovens também expressaram a preocupação com a possibilidade de contaminar os próprios familiares, ao continuar circulando pelas ruas.

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Em geral, na pergunta sobre os riscos, os jovens tendiam a enfatizar os perigos enfrentados nas entregas como acidentes, porém há também referências às medidas preventivas dos protocolos sanitários. O trabalho nos aplicativos carece de estrutura básica: não encontravam (e ainda não encontram) sequer um lugar para higiene pessoal. Na maior parte das vezes, os entregadores precisam fazer uso das instalações dos restaurantes em que coletam os pedidos, entretanto, nem sempre os estabelecimentos oferecem medidas protetivas ou permitem que os entregadores façam uso da infraestrutura local.

A exploração do trabalho e os riscos não foram vivenciados em silêncio pelos entregadores. Durante o ano de 2020, duas grandes paralisações, de abrangência nacional -- e até internacional --, foram realizadas para contestar as condições laborais. Intitulado "Breque dos apps", o movimento teve seu primeiro ato em 1º de julho e o segundo no dia 25 de julho. A ampla adesão de entregadores e o conjunto expressivo de denúncias, bem como o apoio de usuários das plataformas por meio das redes sociais, repercutiram em diversos meios de comunicação. Outras paralisações também ocorreram em 2021.

Somente depois de dois anos, após mais de 22 milhões de infecções, com 619.599 óbitos registrados e diversas manifestações pelo Brasil, a lei nº 14.297, sancionada em janeiro de 2022, determinou que os estabelecimentos deveriam oferecer instalações para os entregadores. Com a lei, as plataformas deveriam afastar entregadores com covid-19 e pagar uma ajuda financeira equivalente à média dos três últimos pagamentos mensais recebidos, ao longo de 15 dias, para que fosse possível manter o trabalhador em isolamento, compensando os dias em que não tenha podido sair às ruas para trabalhar.

Notou-se que os jovens "bike-entregadores" também enfrentaram dificuldades na combinação entre trabalho e estudos. Apesar da suposta possibilidade de "fazer o próprio horário", estudar e trabalhar é um desafio para esses jovens, tendo em vista, entre outros aspectos, o desgaste físico de pedalar aproximadamente 40 quilômetros por dia. Diante da dita flexibilidade e "autonomia" promovida pela dinâmica dos aplicativos, identificamos entre os interlocutores mais relatos de interrupção dos estudos do que de matrículas.

Portanto, se durante a pandemia os estereótipos atribuídos aos jovens foram reforçados como forma de culpabilizar esses indivíduos pela continuidade da disseminação do vírus, verificamos no estudo que uma parcela da juventude precisou continuar a trabalhar nesse período, sobretudo pela necessidade, sendo muito mais exposta aos riscos de contaminação. Assim, nota-se o acirramento de desigualdades e desafios vividos pela juventude trabalhadora durante a pandemia da covid-19.

Publicado originalmente no Boletim Lua Nova em 10/08/2023

*Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC ou do Gestão, Política & Sociedade

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos Cebrap, v. 39, p. 579-597, 2020.

BRASIL. Senado Federal. CPI da Pandemia: relatório final. Brasília: Senado Federal, 26 out. 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/72c805d3-888b-4228-8682-260175471243>. Acesso em: 13 fev. 2023.

CORROCHANO, Maria Carla. Pandemia e condição juvenil: o futuro também é o agora. Blog SBS, 27 ago. 2021. Disponível em: https://sbsociologia.com.br/pandemia-e-condicao-juvenil-o-futuro-tambem-e-o-agora>. Acesso em: 13 fev. 2023.

POCHMANN, Márcio. Situação do jovem no mercado de trabalho no Brasil: um balanço dos últimos 10 anos. Observatório do Ensino Médio, 2007. Disponível em: https://observatoriodoensinomedio.ufpr.br/wp-content/uploads/2014/04/situac3a7c3a3o-do-jovem-no-mercado-de-trabalho-marcio-pochman.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2023.

SOBRINHO, André; ABRAMO, Helena Wendel. A juventude na mira da pandemia. Agência Fiocruz de Notícias, 26 abr. 2021. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/juventude-na-mira-da-pandemia>. Acesso em: 13 fev. 2023.

VENTURI, Gustavo; TORINI, Danilo. Transições da escola para o trabalho dos jovens homens e mulheres no Brasil. Organização Internacional do Trabalho. Genebra: OIT, 2014.

Imagem divulgação.  

Caíque Oliveira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: caique.diogo@outlook.com.br

Maria Carla Corrochano, Docente do Departamento de Ciências Humanas e Educação, e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Estudos da Condição Humana. Pesquisadora do CNPq. E-mail: mcarla@ufscar.br

No início de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a covid-19 havia se transformado em uma pandemia global, já era possível prever que o período vindouro traria mudanças em diversos âmbitos da vida social. A situação gerou impactos sobre as populações nas diversas partes do globo, tais como medidas de isolamento e distanciamento social, e intensificou as desigualdades em vários setores para além da saúde.

No senso comum, reverberando na mídia e em outros segmentos da sociedade, a juventude foi posta como responsável pela propagação do vírus. Esse discurso recaiu sobre diferentes juventudes, porém foi especialmente estigmatizadora para com jovens das periferias urbanas, acusando-os de continuarem frequentando festas, baladas e provocando aglomerações, e assim, consequentemente disseminando o vírus (SOBRINHO; ABRAMO, 2021). O que se observou, no entanto, foi que boa parte da juventude no Brasil continuou saindo às ruas para trabalhar (CORROCHANO, 2021; SOBRINHO; ABRAMO, 2021).

O presente texto é um resumo do artigo Juventude e trabalho na pandemia de covid-19: a experiência dos "bike-entregadores" de aplicativos de delivery, publicado na Revista Princípios. A pesquisa foi realizada com 11 jovens que trabalham em aplicativos na capital paulista e contou com a realização de observações de campo e entrevistas realizadas de forma remota.

Sem uma ocupação profissional que permitisse o home office, e com a diminuição da renda e elevação do desemprego entre familiares, muitos jovens não puderam praticar o auto-isolamento: aqueles e aquelas que trabalhavam nos chamados "serviços essenciais" continuaram a trabalhar neles e foram expostos cotidianamente ao risco de contrair a covid-19. Além disso, a juventude teve que enfrentar uma pandemia com limitado apoio do Estado, haja vista que o governo de Jair Bolsonaro deu fortes indícios de omissão e negação dos graves riscos da covid-19 no país.

Por mais que o Brasil tenha vivenciado os primeiros casos da covid-19 de maneira mais tardia que países da Ásia ou Europa, a necessidade de ficar em casa e trabalhar na própria residência se materializou no país como um direito restrito à uma parcela minoritária dos trabalhadores. O direito de trabalhar de casa foi efetivado de modo diferenciado segundo critérios etários e étnico-raciais. Entre os jovens que continuaram a sair às ruas estavam os entregadores de aplicativos.

O desenvolvimento das plataformas digitais de trabalho é relativamente recente na história do capitalismo. As transformações no mundo do trabalho na contemporaneidade têm modificado o modo como os indivíduos buscam e vivenciam a própria experiência laboral. Acessadas pelo toque na tela do próprio telefone, as plataformas digitais têm levado milhões de pessoas pelo mundo a novas experiências laborais.

Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o trabalho em plataformas digitais encontrou base na crise econômica e financeira de 2008. Após esse período, enquanto os países optaram por salvar bancos e flexibilizar a proteção social aos trabalhadores, emergiu um cenário de empregos sem regulamentação. No Sul Global, mais especificamente no Brasil, as plataformas digitais encontraram um cenário distinto, todavia igualmente ancorado no neoliberalismo. O capitalismo brasileiro possui uma larga tradição com o trabalho informal; e ainda, no período de crise pós-2014, desenhou-se um cenário cujas mudanças econômicas e políticas culminaram na reforma trabalhista contida na lei nº 13.467, de 2017. Essa modificação legal resultou em novos elementos de precariedade nas relações de trabalho e emprego.

Os serviços oferecidos por plataformas digitais que terceirizam trabalhadores são diversos, contudo, a entrega de mercadorias passou por amplo crescimento de demanda durante a pandemia. As entregas com bicicletas representam o segmento no qual há maior inserção de jovens. Os dados existentes para o município de São Paulo indicam que, além de jovens, os entregadores apresentam um perfil majoritariamente masculino, negro e periférico (ALIANÇA BIKE, 2019).

Entre os entregadores entrevistados por nossa pesquisa, verificou-se que os interlocutores têm uma trajetória ocupacional semelhante às trajetórias laborais de boa parte da juventude trabalhadora do Brasil. Entre os entrevistados, há trajetórias pregressas em ocupações diversas, as quais passaram por call centers, comércio, redes de fast-food, aprendizes e jovens cuja primeira experiência laboral estava ocorrendo nas plataformas.

Os principais obstáculos apontados por jovens para conseguir um emprego são a escassez de postos de trabalho e não ter experiência profissional comprovada (VENTURI; TORINI, 2014). Tais obstáculos aparecem nas entrevistas com "bike-entregadores". Ao buscarem as plataformas como primeira experiência de trabalho, alguns deles procuravam enfrentar a falta de experiência e da baixa escolaridade, ou seja, as razões para o chamado "desemprego de inserção" (POCHMANN, 2007), uma vez que nem escolaridade nem experiência são requisitos para o ingresso nesse tipo de ocupação.

Para começar a trabalhar nas plataformas de delivery, os jovens passam por um processo relativamente "simples" de inserção. Diferentemente de outros tipos de trabalho, especialmente nos empregos do setor formal, as plataformas de aplicativos fazem poucas exigências para aqueles que desejam ingressar nas plataformas. Normalmente é solicitado um cadastro, feito de maneira remota em relação à filial da empresa, por meio do smartphone do próprio indivíduo.

Diante da ampliação das vulnerabilidades ao longo da crise vivenciada durante a pandemia da covid-19, o custo de vida tornou-se mais caro, e a elevação dos índices de insegurança alimentar e inflação apareceram nas entrevistas, indicando a necessidade de continuar a trabalhar mesmo em condições adversas. Assim, foi possível identificar diversos jovens que buscaram as plataformas para suprir a necessidade de renda para enfrentar os desafios de sobrevivência na pandemia, o que significou combinar jornadas duplas ou até triplas de trabalho.

Além da necessidade de renda, alguns entrevistados ingressaram nas plataformas como forma de obter um trabalho com maior flexibilidade na carga horária e remuneração próxima àquela oferecida pelo setor formal. Nesses casos, são jovens que saíram de setores que ofereciam remuneração pouco superior a um salário mínimo e rumaram em direção aos aplicativos. Essa mudança é por vezes justificada pelo fato de a remuneração ser próxima ao valor que recebiam, e também por aquilo que definem como "ser o próprio chefe", dado que os entregadores podem organizar suas jornadas de trabalho segundo suas próprias necessidades. Por mais que a atuação nas plataformas não torne as jornadas laborais diárias necessariamente mais curtas, esse "autogerenciamento subordinado" da rotina, para lembrar a definição de Abílio (2020), tem significados de autonomia importantes para esses jovens.

Uma vez ativos nas plataformas de delivery, os jovens "bike-entregadores" precisam enfrentar uma série de situações de precariedade. Além da exploração, os jovens enfrentam situações de risco no trabalho de entregas. Na experiência de trabalho durante o período pandêmico, somaram-se aos perigos da própria ocupação -- pedalar pelo trânsito paulistano -- os riscos de contrair o vírus. Enquanto os jovens entrevistados estavam trabalhando, durante o mês de abril de 2021, o Brasil bateu o recorde diário no número de mortes por conta da covid-19, chegando a registrar um total de 4.195 óbitos.

Mesmo durante as fases mais restritivas, em que diversos estabelecimentos comerciais estiveram fechados para o público ou quando a prefeitura da cidade de São Paulo - lócus da pesquisa - decretou a chamada "fase roxa", período em que hospitais já não possuíam leitos nem unidades de tratamento intensivo (UTIs) suficientes, os entregadores continuaram saindo às ruas. Sobre esse ponto, os jovens também expressaram a preocupação com a possibilidade de contaminar os próprios familiares, ao continuar circulando pelas ruas.

Em geral, na pergunta sobre os riscos, os jovens tendiam a enfatizar os perigos enfrentados nas entregas como acidentes, porém há também referências às medidas preventivas dos protocolos sanitários. O trabalho nos aplicativos carece de estrutura básica: não encontravam (e ainda não encontram) sequer um lugar para higiene pessoal. Na maior parte das vezes, os entregadores precisam fazer uso das instalações dos restaurantes em que coletam os pedidos, entretanto, nem sempre os estabelecimentos oferecem medidas protetivas ou permitem que os entregadores façam uso da infraestrutura local.

A exploração do trabalho e os riscos não foram vivenciados em silêncio pelos entregadores. Durante o ano de 2020, duas grandes paralisações, de abrangência nacional -- e até internacional --, foram realizadas para contestar as condições laborais. Intitulado "Breque dos apps", o movimento teve seu primeiro ato em 1º de julho e o segundo no dia 25 de julho. A ampla adesão de entregadores e o conjunto expressivo de denúncias, bem como o apoio de usuários das plataformas por meio das redes sociais, repercutiram em diversos meios de comunicação. Outras paralisações também ocorreram em 2021.

Somente depois de dois anos, após mais de 22 milhões de infecções, com 619.599 óbitos registrados e diversas manifestações pelo Brasil, a lei nº 14.297, sancionada em janeiro de 2022, determinou que os estabelecimentos deveriam oferecer instalações para os entregadores. Com a lei, as plataformas deveriam afastar entregadores com covid-19 e pagar uma ajuda financeira equivalente à média dos três últimos pagamentos mensais recebidos, ao longo de 15 dias, para que fosse possível manter o trabalhador em isolamento, compensando os dias em que não tenha podido sair às ruas para trabalhar.

Notou-se que os jovens "bike-entregadores" também enfrentaram dificuldades na combinação entre trabalho e estudos. Apesar da suposta possibilidade de "fazer o próprio horário", estudar e trabalhar é um desafio para esses jovens, tendo em vista, entre outros aspectos, o desgaste físico de pedalar aproximadamente 40 quilômetros por dia. Diante da dita flexibilidade e "autonomia" promovida pela dinâmica dos aplicativos, identificamos entre os interlocutores mais relatos de interrupção dos estudos do que de matrículas.

Portanto, se durante a pandemia os estereótipos atribuídos aos jovens foram reforçados como forma de culpabilizar esses indivíduos pela continuidade da disseminação do vírus, verificamos no estudo que uma parcela da juventude precisou continuar a trabalhar nesse período, sobretudo pela necessidade, sendo muito mais exposta aos riscos de contaminação. Assim, nota-se o acirramento de desigualdades e desafios vividos pela juventude trabalhadora durante a pandemia da covid-19.

Publicado originalmente no Boletim Lua Nova em 10/08/2023

*Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC ou do Gestão, Política & Sociedade

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos Cebrap, v. 39, p. 579-597, 2020.

BRASIL. Senado Federal. CPI da Pandemia: relatório final. Brasília: Senado Federal, 26 out. 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/72c805d3-888b-4228-8682-260175471243>. Acesso em: 13 fev. 2023.

CORROCHANO, Maria Carla. Pandemia e condição juvenil: o futuro também é o agora. Blog SBS, 27 ago. 2021. Disponível em: https://sbsociologia.com.br/pandemia-e-condicao-juvenil-o-futuro-tambem-e-o-agora>. Acesso em: 13 fev. 2023.

POCHMANN, Márcio. Situação do jovem no mercado de trabalho no Brasil: um balanço dos últimos 10 anos. Observatório do Ensino Médio, 2007. Disponível em: https://observatoriodoensinomedio.ufpr.br/wp-content/uploads/2014/04/situac3a7c3a3o-do-jovem-no-mercado-de-trabalho-marcio-pochman.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2023.

SOBRINHO, André; ABRAMO, Helena Wendel. A juventude na mira da pandemia. Agência Fiocruz de Notícias, 26 abr. 2021. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/juventude-na-mira-da-pandemia>. Acesso em: 13 fev. 2023.

VENTURI, Gustavo; TORINI, Danilo. Transições da escola para o trabalho dos jovens homens e mulheres no Brasil. Organização Internacional do Trabalho. Genebra: OIT, 2014.

Imagem divulgação.  

Caíque Oliveira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: caique.diogo@outlook.com.br

Maria Carla Corrochano, Docente do Departamento de Ciências Humanas e Educação, e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Estudos da Condição Humana. Pesquisadora do CNPq. E-mail: mcarla@ufscar.br

No início de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a covid-19 havia se transformado em uma pandemia global, já era possível prever que o período vindouro traria mudanças em diversos âmbitos da vida social. A situação gerou impactos sobre as populações nas diversas partes do globo, tais como medidas de isolamento e distanciamento social, e intensificou as desigualdades em vários setores para além da saúde.

No senso comum, reverberando na mídia e em outros segmentos da sociedade, a juventude foi posta como responsável pela propagação do vírus. Esse discurso recaiu sobre diferentes juventudes, porém foi especialmente estigmatizadora para com jovens das periferias urbanas, acusando-os de continuarem frequentando festas, baladas e provocando aglomerações, e assim, consequentemente disseminando o vírus (SOBRINHO; ABRAMO, 2021). O que se observou, no entanto, foi que boa parte da juventude no Brasil continuou saindo às ruas para trabalhar (CORROCHANO, 2021; SOBRINHO; ABRAMO, 2021).

O presente texto é um resumo do artigo Juventude e trabalho na pandemia de covid-19: a experiência dos "bike-entregadores" de aplicativos de delivery, publicado na Revista Princípios. A pesquisa foi realizada com 11 jovens que trabalham em aplicativos na capital paulista e contou com a realização de observações de campo e entrevistas realizadas de forma remota.

Sem uma ocupação profissional que permitisse o home office, e com a diminuição da renda e elevação do desemprego entre familiares, muitos jovens não puderam praticar o auto-isolamento: aqueles e aquelas que trabalhavam nos chamados "serviços essenciais" continuaram a trabalhar neles e foram expostos cotidianamente ao risco de contrair a covid-19. Além disso, a juventude teve que enfrentar uma pandemia com limitado apoio do Estado, haja vista que o governo de Jair Bolsonaro deu fortes indícios de omissão e negação dos graves riscos da covid-19 no país.

Por mais que o Brasil tenha vivenciado os primeiros casos da covid-19 de maneira mais tardia que países da Ásia ou Europa, a necessidade de ficar em casa e trabalhar na própria residência se materializou no país como um direito restrito à uma parcela minoritária dos trabalhadores. O direito de trabalhar de casa foi efetivado de modo diferenciado segundo critérios etários e étnico-raciais. Entre os jovens que continuaram a sair às ruas estavam os entregadores de aplicativos.

O desenvolvimento das plataformas digitais de trabalho é relativamente recente na história do capitalismo. As transformações no mundo do trabalho na contemporaneidade têm modificado o modo como os indivíduos buscam e vivenciam a própria experiência laboral. Acessadas pelo toque na tela do próprio telefone, as plataformas digitais têm levado milhões de pessoas pelo mundo a novas experiências laborais.

Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o trabalho em plataformas digitais encontrou base na crise econômica e financeira de 2008. Após esse período, enquanto os países optaram por salvar bancos e flexibilizar a proteção social aos trabalhadores, emergiu um cenário de empregos sem regulamentação. No Sul Global, mais especificamente no Brasil, as plataformas digitais encontraram um cenário distinto, todavia igualmente ancorado no neoliberalismo. O capitalismo brasileiro possui uma larga tradição com o trabalho informal; e ainda, no período de crise pós-2014, desenhou-se um cenário cujas mudanças econômicas e políticas culminaram na reforma trabalhista contida na lei nº 13.467, de 2017. Essa modificação legal resultou em novos elementos de precariedade nas relações de trabalho e emprego.

Os serviços oferecidos por plataformas digitais que terceirizam trabalhadores são diversos, contudo, a entrega de mercadorias passou por amplo crescimento de demanda durante a pandemia. As entregas com bicicletas representam o segmento no qual há maior inserção de jovens. Os dados existentes para o município de São Paulo indicam que, além de jovens, os entregadores apresentam um perfil majoritariamente masculino, negro e periférico (ALIANÇA BIKE, 2019).

Entre os entregadores entrevistados por nossa pesquisa, verificou-se que os interlocutores têm uma trajetória ocupacional semelhante às trajetórias laborais de boa parte da juventude trabalhadora do Brasil. Entre os entrevistados, há trajetórias pregressas em ocupações diversas, as quais passaram por call centers, comércio, redes de fast-food, aprendizes e jovens cuja primeira experiência laboral estava ocorrendo nas plataformas.

Os principais obstáculos apontados por jovens para conseguir um emprego são a escassez de postos de trabalho e não ter experiência profissional comprovada (VENTURI; TORINI, 2014). Tais obstáculos aparecem nas entrevistas com "bike-entregadores". Ao buscarem as plataformas como primeira experiência de trabalho, alguns deles procuravam enfrentar a falta de experiência e da baixa escolaridade, ou seja, as razões para o chamado "desemprego de inserção" (POCHMANN, 2007), uma vez que nem escolaridade nem experiência são requisitos para o ingresso nesse tipo de ocupação.

Para começar a trabalhar nas plataformas de delivery, os jovens passam por um processo relativamente "simples" de inserção. Diferentemente de outros tipos de trabalho, especialmente nos empregos do setor formal, as plataformas de aplicativos fazem poucas exigências para aqueles que desejam ingressar nas plataformas. Normalmente é solicitado um cadastro, feito de maneira remota em relação à filial da empresa, por meio do smartphone do próprio indivíduo.

Diante da ampliação das vulnerabilidades ao longo da crise vivenciada durante a pandemia da covid-19, o custo de vida tornou-se mais caro, e a elevação dos índices de insegurança alimentar e inflação apareceram nas entrevistas, indicando a necessidade de continuar a trabalhar mesmo em condições adversas. Assim, foi possível identificar diversos jovens que buscaram as plataformas para suprir a necessidade de renda para enfrentar os desafios de sobrevivência na pandemia, o que significou combinar jornadas duplas ou até triplas de trabalho.

Além da necessidade de renda, alguns entrevistados ingressaram nas plataformas como forma de obter um trabalho com maior flexibilidade na carga horária e remuneração próxima àquela oferecida pelo setor formal. Nesses casos, são jovens que saíram de setores que ofereciam remuneração pouco superior a um salário mínimo e rumaram em direção aos aplicativos. Essa mudança é por vezes justificada pelo fato de a remuneração ser próxima ao valor que recebiam, e também por aquilo que definem como "ser o próprio chefe", dado que os entregadores podem organizar suas jornadas de trabalho segundo suas próprias necessidades. Por mais que a atuação nas plataformas não torne as jornadas laborais diárias necessariamente mais curtas, esse "autogerenciamento subordinado" da rotina, para lembrar a definição de Abílio (2020), tem significados de autonomia importantes para esses jovens.

Uma vez ativos nas plataformas de delivery, os jovens "bike-entregadores" precisam enfrentar uma série de situações de precariedade. Além da exploração, os jovens enfrentam situações de risco no trabalho de entregas. Na experiência de trabalho durante o período pandêmico, somaram-se aos perigos da própria ocupação -- pedalar pelo trânsito paulistano -- os riscos de contrair o vírus. Enquanto os jovens entrevistados estavam trabalhando, durante o mês de abril de 2021, o Brasil bateu o recorde diário no número de mortes por conta da covid-19, chegando a registrar um total de 4.195 óbitos.

Mesmo durante as fases mais restritivas, em que diversos estabelecimentos comerciais estiveram fechados para o público ou quando a prefeitura da cidade de São Paulo - lócus da pesquisa - decretou a chamada "fase roxa", período em que hospitais já não possuíam leitos nem unidades de tratamento intensivo (UTIs) suficientes, os entregadores continuaram saindo às ruas. Sobre esse ponto, os jovens também expressaram a preocupação com a possibilidade de contaminar os próprios familiares, ao continuar circulando pelas ruas.

Em geral, na pergunta sobre os riscos, os jovens tendiam a enfatizar os perigos enfrentados nas entregas como acidentes, porém há também referências às medidas preventivas dos protocolos sanitários. O trabalho nos aplicativos carece de estrutura básica: não encontravam (e ainda não encontram) sequer um lugar para higiene pessoal. Na maior parte das vezes, os entregadores precisam fazer uso das instalações dos restaurantes em que coletam os pedidos, entretanto, nem sempre os estabelecimentos oferecem medidas protetivas ou permitem que os entregadores façam uso da infraestrutura local.

A exploração do trabalho e os riscos não foram vivenciados em silêncio pelos entregadores. Durante o ano de 2020, duas grandes paralisações, de abrangência nacional -- e até internacional --, foram realizadas para contestar as condições laborais. Intitulado "Breque dos apps", o movimento teve seu primeiro ato em 1º de julho e o segundo no dia 25 de julho. A ampla adesão de entregadores e o conjunto expressivo de denúncias, bem como o apoio de usuários das plataformas por meio das redes sociais, repercutiram em diversos meios de comunicação. Outras paralisações também ocorreram em 2021.

Somente depois de dois anos, após mais de 22 milhões de infecções, com 619.599 óbitos registrados e diversas manifestações pelo Brasil, a lei nº 14.297, sancionada em janeiro de 2022, determinou que os estabelecimentos deveriam oferecer instalações para os entregadores. Com a lei, as plataformas deveriam afastar entregadores com covid-19 e pagar uma ajuda financeira equivalente à média dos três últimos pagamentos mensais recebidos, ao longo de 15 dias, para que fosse possível manter o trabalhador em isolamento, compensando os dias em que não tenha podido sair às ruas para trabalhar.

Notou-se que os jovens "bike-entregadores" também enfrentaram dificuldades na combinação entre trabalho e estudos. Apesar da suposta possibilidade de "fazer o próprio horário", estudar e trabalhar é um desafio para esses jovens, tendo em vista, entre outros aspectos, o desgaste físico de pedalar aproximadamente 40 quilômetros por dia. Diante da dita flexibilidade e "autonomia" promovida pela dinâmica dos aplicativos, identificamos entre os interlocutores mais relatos de interrupção dos estudos do que de matrículas.

Portanto, se durante a pandemia os estereótipos atribuídos aos jovens foram reforçados como forma de culpabilizar esses indivíduos pela continuidade da disseminação do vírus, verificamos no estudo que uma parcela da juventude precisou continuar a trabalhar nesse período, sobretudo pela necessidade, sendo muito mais exposta aos riscos de contaminação. Assim, nota-se o acirramento de desigualdades e desafios vividos pela juventude trabalhadora durante a pandemia da covid-19.

Publicado originalmente no Boletim Lua Nova em 10/08/2023

*Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC ou do Gestão, Política & Sociedade

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos Cebrap, v. 39, p. 579-597, 2020.

BRASIL. Senado Federal. CPI da Pandemia: relatório final. Brasília: Senado Federal, 26 out. 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/72c805d3-888b-4228-8682-260175471243>. Acesso em: 13 fev. 2023.

CORROCHANO, Maria Carla. Pandemia e condição juvenil: o futuro também é o agora. Blog SBS, 27 ago. 2021. Disponível em: https://sbsociologia.com.br/pandemia-e-condicao-juvenil-o-futuro-tambem-e-o-agora>. Acesso em: 13 fev. 2023.

POCHMANN, Márcio. Situação do jovem no mercado de trabalho no Brasil: um balanço dos últimos 10 anos. Observatório do Ensino Médio, 2007. Disponível em: https://observatoriodoensinomedio.ufpr.br/wp-content/uploads/2014/04/situac3a7c3a3o-do-jovem-no-mercado-de-trabalho-marcio-pochman.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2023.

SOBRINHO, André; ABRAMO, Helena Wendel. A juventude na mira da pandemia. Agência Fiocruz de Notícias, 26 abr. 2021. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/juventude-na-mira-da-pandemia>. Acesso em: 13 fev. 2023.

VENTURI, Gustavo; TORINI, Danilo. Transições da escola para o trabalho dos jovens homens e mulheres no Brasil. Organização Internacional do Trabalho. Genebra: OIT, 2014.

Imagem divulgação.  

Caíque Oliveira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: caique.diogo@outlook.com.br

Maria Carla Corrochano, Docente do Departamento de Ciências Humanas e Educação, e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Estudos da Condição Humana. Pesquisadora do CNPq. E-mail: mcarla@ufscar.br

No início de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a covid-19 havia se transformado em uma pandemia global, já era possível prever que o período vindouro traria mudanças em diversos âmbitos da vida social. A situação gerou impactos sobre as populações nas diversas partes do globo, tais como medidas de isolamento e distanciamento social, e intensificou as desigualdades em vários setores para além da saúde.

No senso comum, reverberando na mídia e em outros segmentos da sociedade, a juventude foi posta como responsável pela propagação do vírus. Esse discurso recaiu sobre diferentes juventudes, porém foi especialmente estigmatizadora para com jovens das periferias urbanas, acusando-os de continuarem frequentando festas, baladas e provocando aglomerações, e assim, consequentemente disseminando o vírus (SOBRINHO; ABRAMO, 2021). O que se observou, no entanto, foi que boa parte da juventude no Brasil continuou saindo às ruas para trabalhar (CORROCHANO, 2021; SOBRINHO; ABRAMO, 2021).

O presente texto é um resumo do artigo Juventude e trabalho na pandemia de covid-19: a experiência dos "bike-entregadores" de aplicativos de delivery, publicado na Revista Princípios. A pesquisa foi realizada com 11 jovens que trabalham em aplicativos na capital paulista e contou com a realização de observações de campo e entrevistas realizadas de forma remota.

Sem uma ocupação profissional que permitisse o home office, e com a diminuição da renda e elevação do desemprego entre familiares, muitos jovens não puderam praticar o auto-isolamento: aqueles e aquelas que trabalhavam nos chamados "serviços essenciais" continuaram a trabalhar neles e foram expostos cotidianamente ao risco de contrair a covid-19. Além disso, a juventude teve que enfrentar uma pandemia com limitado apoio do Estado, haja vista que o governo de Jair Bolsonaro deu fortes indícios de omissão e negação dos graves riscos da covid-19 no país.

Por mais que o Brasil tenha vivenciado os primeiros casos da covid-19 de maneira mais tardia que países da Ásia ou Europa, a necessidade de ficar em casa e trabalhar na própria residência se materializou no país como um direito restrito à uma parcela minoritária dos trabalhadores. O direito de trabalhar de casa foi efetivado de modo diferenciado segundo critérios etários e étnico-raciais. Entre os jovens que continuaram a sair às ruas estavam os entregadores de aplicativos.

O desenvolvimento das plataformas digitais de trabalho é relativamente recente na história do capitalismo. As transformações no mundo do trabalho na contemporaneidade têm modificado o modo como os indivíduos buscam e vivenciam a própria experiência laboral. Acessadas pelo toque na tela do próprio telefone, as plataformas digitais têm levado milhões de pessoas pelo mundo a novas experiências laborais.

Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o trabalho em plataformas digitais encontrou base na crise econômica e financeira de 2008. Após esse período, enquanto os países optaram por salvar bancos e flexibilizar a proteção social aos trabalhadores, emergiu um cenário de empregos sem regulamentação. No Sul Global, mais especificamente no Brasil, as plataformas digitais encontraram um cenário distinto, todavia igualmente ancorado no neoliberalismo. O capitalismo brasileiro possui uma larga tradição com o trabalho informal; e ainda, no período de crise pós-2014, desenhou-se um cenário cujas mudanças econômicas e políticas culminaram na reforma trabalhista contida na lei nº 13.467, de 2017. Essa modificação legal resultou em novos elementos de precariedade nas relações de trabalho e emprego.

Os serviços oferecidos por plataformas digitais que terceirizam trabalhadores são diversos, contudo, a entrega de mercadorias passou por amplo crescimento de demanda durante a pandemia. As entregas com bicicletas representam o segmento no qual há maior inserção de jovens. Os dados existentes para o município de São Paulo indicam que, além de jovens, os entregadores apresentam um perfil majoritariamente masculino, negro e periférico (ALIANÇA BIKE, 2019).

Entre os entregadores entrevistados por nossa pesquisa, verificou-se que os interlocutores têm uma trajetória ocupacional semelhante às trajetórias laborais de boa parte da juventude trabalhadora do Brasil. Entre os entrevistados, há trajetórias pregressas em ocupações diversas, as quais passaram por call centers, comércio, redes de fast-food, aprendizes e jovens cuja primeira experiência laboral estava ocorrendo nas plataformas.

Os principais obstáculos apontados por jovens para conseguir um emprego são a escassez de postos de trabalho e não ter experiência profissional comprovada (VENTURI; TORINI, 2014). Tais obstáculos aparecem nas entrevistas com "bike-entregadores". Ao buscarem as plataformas como primeira experiência de trabalho, alguns deles procuravam enfrentar a falta de experiência e da baixa escolaridade, ou seja, as razões para o chamado "desemprego de inserção" (POCHMANN, 2007), uma vez que nem escolaridade nem experiência são requisitos para o ingresso nesse tipo de ocupação.

Para começar a trabalhar nas plataformas de delivery, os jovens passam por um processo relativamente "simples" de inserção. Diferentemente de outros tipos de trabalho, especialmente nos empregos do setor formal, as plataformas de aplicativos fazem poucas exigências para aqueles que desejam ingressar nas plataformas. Normalmente é solicitado um cadastro, feito de maneira remota em relação à filial da empresa, por meio do smartphone do próprio indivíduo.

Diante da ampliação das vulnerabilidades ao longo da crise vivenciada durante a pandemia da covid-19, o custo de vida tornou-se mais caro, e a elevação dos índices de insegurança alimentar e inflação apareceram nas entrevistas, indicando a necessidade de continuar a trabalhar mesmo em condições adversas. Assim, foi possível identificar diversos jovens que buscaram as plataformas para suprir a necessidade de renda para enfrentar os desafios de sobrevivência na pandemia, o que significou combinar jornadas duplas ou até triplas de trabalho.

Além da necessidade de renda, alguns entrevistados ingressaram nas plataformas como forma de obter um trabalho com maior flexibilidade na carga horária e remuneração próxima àquela oferecida pelo setor formal. Nesses casos, são jovens que saíram de setores que ofereciam remuneração pouco superior a um salário mínimo e rumaram em direção aos aplicativos. Essa mudança é por vezes justificada pelo fato de a remuneração ser próxima ao valor que recebiam, e também por aquilo que definem como "ser o próprio chefe", dado que os entregadores podem organizar suas jornadas de trabalho segundo suas próprias necessidades. Por mais que a atuação nas plataformas não torne as jornadas laborais diárias necessariamente mais curtas, esse "autogerenciamento subordinado" da rotina, para lembrar a definição de Abílio (2020), tem significados de autonomia importantes para esses jovens.

Uma vez ativos nas plataformas de delivery, os jovens "bike-entregadores" precisam enfrentar uma série de situações de precariedade. Além da exploração, os jovens enfrentam situações de risco no trabalho de entregas. Na experiência de trabalho durante o período pandêmico, somaram-se aos perigos da própria ocupação -- pedalar pelo trânsito paulistano -- os riscos de contrair o vírus. Enquanto os jovens entrevistados estavam trabalhando, durante o mês de abril de 2021, o Brasil bateu o recorde diário no número de mortes por conta da covid-19, chegando a registrar um total de 4.195 óbitos.

Mesmo durante as fases mais restritivas, em que diversos estabelecimentos comerciais estiveram fechados para o público ou quando a prefeitura da cidade de São Paulo - lócus da pesquisa - decretou a chamada "fase roxa", período em que hospitais já não possuíam leitos nem unidades de tratamento intensivo (UTIs) suficientes, os entregadores continuaram saindo às ruas. Sobre esse ponto, os jovens também expressaram a preocupação com a possibilidade de contaminar os próprios familiares, ao continuar circulando pelas ruas.

Em geral, na pergunta sobre os riscos, os jovens tendiam a enfatizar os perigos enfrentados nas entregas como acidentes, porém há também referências às medidas preventivas dos protocolos sanitários. O trabalho nos aplicativos carece de estrutura básica: não encontravam (e ainda não encontram) sequer um lugar para higiene pessoal. Na maior parte das vezes, os entregadores precisam fazer uso das instalações dos restaurantes em que coletam os pedidos, entretanto, nem sempre os estabelecimentos oferecem medidas protetivas ou permitem que os entregadores façam uso da infraestrutura local.

A exploração do trabalho e os riscos não foram vivenciados em silêncio pelos entregadores. Durante o ano de 2020, duas grandes paralisações, de abrangência nacional -- e até internacional --, foram realizadas para contestar as condições laborais. Intitulado "Breque dos apps", o movimento teve seu primeiro ato em 1º de julho e o segundo no dia 25 de julho. A ampla adesão de entregadores e o conjunto expressivo de denúncias, bem como o apoio de usuários das plataformas por meio das redes sociais, repercutiram em diversos meios de comunicação. Outras paralisações também ocorreram em 2021.

Somente depois de dois anos, após mais de 22 milhões de infecções, com 619.599 óbitos registrados e diversas manifestações pelo Brasil, a lei nº 14.297, sancionada em janeiro de 2022, determinou que os estabelecimentos deveriam oferecer instalações para os entregadores. Com a lei, as plataformas deveriam afastar entregadores com covid-19 e pagar uma ajuda financeira equivalente à média dos três últimos pagamentos mensais recebidos, ao longo de 15 dias, para que fosse possível manter o trabalhador em isolamento, compensando os dias em que não tenha podido sair às ruas para trabalhar.

Notou-se que os jovens "bike-entregadores" também enfrentaram dificuldades na combinação entre trabalho e estudos. Apesar da suposta possibilidade de "fazer o próprio horário", estudar e trabalhar é um desafio para esses jovens, tendo em vista, entre outros aspectos, o desgaste físico de pedalar aproximadamente 40 quilômetros por dia. Diante da dita flexibilidade e "autonomia" promovida pela dinâmica dos aplicativos, identificamos entre os interlocutores mais relatos de interrupção dos estudos do que de matrículas.

Portanto, se durante a pandemia os estereótipos atribuídos aos jovens foram reforçados como forma de culpabilizar esses indivíduos pela continuidade da disseminação do vírus, verificamos no estudo que uma parcela da juventude precisou continuar a trabalhar nesse período, sobretudo pela necessidade, sendo muito mais exposta aos riscos de contaminação. Assim, nota-se o acirramento de desigualdades e desafios vividos pela juventude trabalhadora durante a pandemia da covid-19.

Publicado originalmente no Boletim Lua Nova em 10/08/2023

*Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC ou do Gestão, Política & Sociedade

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos Cebrap, v. 39, p. 579-597, 2020.

BRASIL. Senado Federal. CPI da Pandemia: relatório final. Brasília: Senado Federal, 26 out. 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/72c805d3-888b-4228-8682-260175471243>. Acesso em: 13 fev. 2023.

CORROCHANO, Maria Carla. Pandemia e condição juvenil: o futuro também é o agora. Blog SBS, 27 ago. 2021. Disponível em: https://sbsociologia.com.br/pandemia-e-condicao-juvenil-o-futuro-tambem-e-o-agora>. Acesso em: 13 fev. 2023.

POCHMANN, Márcio. Situação do jovem no mercado de trabalho no Brasil: um balanço dos últimos 10 anos. Observatório do Ensino Médio, 2007. Disponível em: https://observatoriodoensinomedio.ufpr.br/wp-content/uploads/2014/04/situac3a7c3a3o-do-jovem-no-mercado-de-trabalho-marcio-pochman.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2023.

SOBRINHO, André; ABRAMO, Helena Wendel. A juventude na mira da pandemia. Agência Fiocruz de Notícias, 26 abr. 2021. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/juventude-na-mira-da-pandemia>. Acesso em: 13 fev. 2023.

VENTURI, Gustavo; TORINI, Danilo. Transições da escola para o trabalho dos jovens homens e mulheres no Brasil. Organização Internacional do Trabalho. Genebra: OIT, 2014.

Imagem divulgação.  

Caíque Oliveira, Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: caique.diogo@outlook.com.br

Maria Carla Corrochano, Docente do Departamento de Ciências Humanas e Educação, e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Estudos da Condição Humana. Pesquisadora do CNPq. E-mail: mcarla@ufscar.br

No início de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a covid-19 havia se transformado em uma pandemia global, já era possível prever que o período vindouro traria mudanças em diversos âmbitos da vida social. A situação gerou impactos sobre as populações nas diversas partes do globo, tais como medidas de isolamento e distanciamento social, e intensificou as desigualdades em vários setores para além da saúde.

No senso comum, reverberando na mídia e em outros segmentos da sociedade, a juventude foi posta como responsável pela propagação do vírus. Esse discurso recaiu sobre diferentes juventudes, porém foi especialmente estigmatizadora para com jovens das periferias urbanas, acusando-os de continuarem frequentando festas, baladas e provocando aglomerações, e assim, consequentemente disseminando o vírus (SOBRINHO; ABRAMO, 2021). O que se observou, no entanto, foi que boa parte da juventude no Brasil continuou saindo às ruas para trabalhar (CORROCHANO, 2021; SOBRINHO; ABRAMO, 2021).

O presente texto é um resumo do artigo Juventude e trabalho na pandemia de covid-19: a experiência dos "bike-entregadores" de aplicativos de delivery, publicado na Revista Princípios. A pesquisa foi realizada com 11 jovens que trabalham em aplicativos na capital paulista e contou com a realização de observações de campo e entrevistas realizadas de forma remota.

Sem uma ocupação profissional que permitisse o home office, e com a diminuição da renda e elevação do desemprego entre familiares, muitos jovens não puderam praticar o auto-isolamento: aqueles e aquelas que trabalhavam nos chamados "serviços essenciais" continuaram a trabalhar neles e foram expostos cotidianamente ao risco de contrair a covid-19. Além disso, a juventude teve que enfrentar uma pandemia com limitado apoio do Estado, haja vista que o governo de Jair Bolsonaro deu fortes indícios de omissão e negação dos graves riscos da covid-19 no país.

Por mais que o Brasil tenha vivenciado os primeiros casos da covid-19 de maneira mais tardia que países da Ásia ou Europa, a necessidade de ficar em casa e trabalhar na própria residência se materializou no país como um direito restrito à uma parcela minoritária dos trabalhadores. O direito de trabalhar de casa foi efetivado de modo diferenciado segundo critérios etários e étnico-raciais. Entre os jovens que continuaram a sair às ruas estavam os entregadores de aplicativos.

O desenvolvimento das plataformas digitais de trabalho é relativamente recente na história do capitalismo. As transformações no mundo do trabalho na contemporaneidade têm modificado o modo como os indivíduos buscam e vivenciam a própria experiência laboral. Acessadas pelo toque na tela do próprio telefone, as plataformas digitais têm levado milhões de pessoas pelo mundo a novas experiências laborais.

Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, o trabalho em plataformas digitais encontrou base na crise econômica e financeira de 2008. Após esse período, enquanto os países optaram por salvar bancos e flexibilizar a proteção social aos trabalhadores, emergiu um cenário de empregos sem regulamentação. No Sul Global, mais especificamente no Brasil, as plataformas digitais encontraram um cenário distinto, todavia igualmente ancorado no neoliberalismo. O capitalismo brasileiro possui uma larga tradição com o trabalho informal; e ainda, no período de crise pós-2014, desenhou-se um cenário cujas mudanças econômicas e políticas culminaram na reforma trabalhista contida na lei nº 13.467, de 2017. Essa modificação legal resultou em novos elementos de precariedade nas relações de trabalho e emprego.

Os serviços oferecidos por plataformas digitais que terceirizam trabalhadores são diversos, contudo, a entrega de mercadorias passou por amplo crescimento de demanda durante a pandemia. As entregas com bicicletas representam o segmento no qual há maior inserção de jovens. Os dados existentes para o município de São Paulo indicam que, além de jovens, os entregadores apresentam um perfil majoritariamente masculino, negro e periférico (ALIANÇA BIKE, 2019).

Entre os entregadores entrevistados por nossa pesquisa, verificou-se que os interlocutores têm uma trajetória ocupacional semelhante às trajetórias laborais de boa parte da juventude trabalhadora do Brasil. Entre os entrevistados, há trajetórias pregressas em ocupações diversas, as quais passaram por call centers, comércio, redes de fast-food, aprendizes e jovens cuja primeira experiência laboral estava ocorrendo nas plataformas.

Os principais obstáculos apontados por jovens para conseguir um emprego são a escassez de postos de trabalho e não ter experiência profissional comprovada (VENTURI; TORINI, 2014). Tais obstáculos aparecem nas entrevistas com "bike-entregadores". Ao buscarem as plataformas como primeira experiência de trabalho, alguns deles procuravam enfrentar a falta de experiência e da baixa escolaridade, ou seja, as razões para o chamado "desemprego de inserção" (POCHMANN, 2007), uma vez que nem escolaridade nem experiência são requisitos para o ingresso nesse tipo de ocupação.

Para começar a trabalhar nas plataformas de delivery, os jovens passam por um processo relativamente "simples" de inserção. Diferentemente de outros tipos de trabalho, especialmente nos empregos do setor formal, as plataformas de aplicativos fazem poucas exigências para aqueles que desejam ingressar nas plataformas. Normalmente é solicitado um cadastro, feito de maneira remota em relação à filial da empresa, por meio do smartphone do próprio indivíduo.

Diante da ampliação das vulnerabilidades ao longo da crise vivenciada durante a pandemia da covid-19, o custo de vida tornou-se mais caro, e a elevação dos índices de insegurança alimentar e inflação apareceram nas entrevistas, indicando a necessidade de continuar a trabalhar mesmo em condições adversas. Assim, foi possível identificar diversos jovens que buscaram as plataformas para suprir a necessidade de renda para enfrentar os desafios de sobrevivência na pandemia, o que significou combinar jornadas duplas ou até triplas de trabalho.

Além da necessidade de renda, alguns entrevistados ingressaram nas plataformas como forma de obter um trabalho com maior flexibilidade na carga horária e remuneração próxima àquela oferecida pelo setor formal. Nesses casos, são jovens que saíram de setores que ofereciam remuneração pouco superior a um salário mínimo e rumaram em direção aos aplicativos. Essa mudança é por vezes justificada pelo fato de a remuneração ser próxima ao valor que recebiam, e também por aquilo que definem como "ser o próprio chefe", dado que os entregadores podem organizar suas jornadas de trabalho segundo suas próprias necessidades. Por mais que a atuação nas plataformas não torne as jornadas laborais diárias necessariamente mais curtas, esse "autogerenciamento subordinado" da rotina, para lembrar a definição de Abílio (2020), tem significados de autonomia importantes para esses jovens.

Uma vez ativos nas plataformas de delivery, os jovens "bike-entregadores" precisam enfrentar uma série de situações de precariedade. Além da exploração, os jovens enfrentam situações de risco no trabalho de entregas. Na experiência de trabalho durante o período pandêmico, somaram-se aos perigos da própria ocupação -- pedalar pelo trânsito paulistano -- os riscos de contrair o vírus. Enquanto os jovens entrevistados estavam trabalhando, durante o mês de abril de 2021, o Brasil bateu o recorde diário no número de mortes por conta da covid-19, chegando a registrar um total de 4.195 óbitos.

Mesmo durante as fases mais restritivas, em que diversos estabelecimentos comerciais estiveram fechados para o público ou quando a prefeitura da cidade de São Paulo - lócus da pesquisa - decretou a chamada "fase roxa", período em que hospitais já não possuíam leitos nem unidades de tratamento intensivo (UTIs) suficientes, os entregadores continuaram saindo às ruas. Sobre esse ponto, os jovens também expressaram a preocupação com a possibilidade de contaminar os próprios familiares, ao continuar circulando pelas ruas.

Em geral, na pergunta sobre os riscos, os jovens tendiam a enfatizar os perigos enfrentados nas entregas como acidentes, porém há também referências às medidas preventivas dos protocolos sanitários. O trabalho nos aplicativos carece de estrutura básica: não encontravam (e ainda não encontram) sequer um lugar para higiene pessoal. Na maior parte das vezes, os entregadores precisam fazer uso das instalações dos restaurantes em que coletam os pedidos, entretanto, nem sempre os estabelecimentos oferecem medidas protetivas ou permitem que os entregadores façam uso da infraestrutura local.

A exploração do trabalho e os riscos não foram vivenciados em silêncio pelos entregadores. Durante o ano de 2020, duas grandes paralisações, de abrangência nacional -- e até internacional --, foram realizadas para contestar as condições laborais. Intitulado "Breque dos apps", o movimento teve seu primeiro ato em 1º de julho e o segundo no dia 25 de julho. A ampla adesão de entregadores e o conjunto expressivo de denúncias, bem como o apoio de usuários das plataformas por meio das redes sociais, repercutiram em diversos meios de comunicação. Outras paralisações também ocorreram em 2021.

Somente depois de dois anos, após mais de 22 milhões de infecções, com 619.599 óbitos registrados e diversas manifestações pelo Brasil, a lei nº 14.297, sancionada em janeiro de 2022, determinou que os estabelecimentos deveriam oferecer instalações para os entregadores. Com a lei, as plataformas deveriam afastar entregadores com covid-19 e pagar uma ajuda financeira equivalente à média dos três últimos pagamentos mensais recebidos, ao longo de 15 dias, para que fosse possível manter o trabalhador em isolamento, compensando os dias em que não tenha podido sair às ruas para trabalhar.

Notou-se que os jovens "bike-entregadores" também enfrentaram dificuldades na combinação entre trabalho e estudos. Apesar da suposta possibilidade de "fazer o próprio horário", estudar e trabalhar é um desafio para esses jovens, tendo em vista, entre outros aspectos, o desgaste físico de pedalar aproximadamente 40 quilômetros por dia. Diante da dita flexibilidade e "autonomia" promovida pela dinâmica dos aplicativos, identificamos entre os interlocutores mais relatos de interrupção dos estudos do que de matrículas.

Portanto, se durante a pandemia os estereótipos atribuídos aos jovens foram reforçados como forma de culpabilizar esses indivíduos pela continuidade da disseminação do vírus, verificamos no estudo que uma parcela da juventude precisou continuar a trabalhar nesse período, sobretudo pela necessidade, sendo muito mais exposta aos riscos de contaminação. Assim, nota-se o acirramento de desigualdades e desafios vividos pela juventude trabalhadora durante a pandemia da covid-19.

Publicado originalmente no Boletim Lua Nova em 10/08/2023

*Este texto não representa necessariamente a opinião do Boletim Lua Nova ou do CEDEC ou do Gestão, Política & Sociedade

Referências

ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização e juventude periférica. Desigualdades, autogerenciamento e novas formas de controle do trabalho. Novos Estudos Cebrap, v. 39, p. 579-597, 2020.

BRASIL. Senado Federal. CPI da Pandemia: relatório final. Brasília: Senado Federal, 26 out. 2021. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento/download/72c805d3-888b-4228-8682-260175471243>. Acesso em: 13 fev. 2023.

CORROCHANO, Maria Carla. Pandemia e condição juvenil: o futuro também é o agora. Blog SBS, 27 ago. 2021. Disponível em: https://sbsociologia.com.br/pandemia-e-condicao-juvenil-o-futuro-tambem-e-o-agora>. Acesso em: 13 fev. 2023.

POCHMANN, Márcio. Situação do jovem no mercado de trabalho no Brasil: um balanço dos últimos 10 anos. Observatório do Ensino Médio, 2007. Disponível em: https://observatoriodoensinomedio.ufpr.br/wp-content/uploads/2014/04/situac3a7c3a3o-do-jovem-no-mercado-de-trabalho-marcio-pochman.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2023.

SOBRINHO, André; ABRAMO, Helena Wendel. A juventude na mira da pandemia. Agência Fiocruz de Notícias, 26 abr. 2021. Disponível em: https://agencia.fiocruz.br/juventude-na-mira-da-pandemia>. Acesso em: 13 fev. 2023.

VENTURI, Gustavo; TORINI, Danilo. Transições da escola para o trabalho dos jovens homens e mulheres no Brasil. Organização Internacional do Trabalho. Genebra: OIT, 2014.

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