José Celso Cardoso Jr., Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e atualmente exerce o cargo de Secretário de Gestão de Pessoas no Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI)
O debate usual sobre o tema do desempenho de servidores no setor público (que é algo correlacionado, mas diferente do desempenho setorial ou agregado do setor público) parte de premissas geralmente equivocadas, trata o assunto com simplificações exageradas, faz comparações descabidas com o setor privado e, por fim, apresenta propostas ou soluções desconectadas da complexidade institucional do Estado.
Apenas para exemplificar: i) a premissa de que o setor público é grande e caro, em termos do quantitativo de pessoal e folha global de vencimentos, vem sendo sistematicamente negada pelo compêndio de dados empíricos contidos no Atlas do Estado Brasileiro (https://www.ipea.gov.br/atlasestado/) produzido pelo Ipea; ii) a simplificação sobre a suposta ineficiência da máquina pública não possui nenhum embasamento empírico sólido e desconsidera a imensa heterogeneidade interna do setor público; iii) qualquer comparação com o setor privado é metodologicamente destituída de sentido, já que são mundos que operam segundo lógicas e objetivos qualitativamente diversos; iv) propostas tais quais as contidas na PEC 32/2020, com aparência de serem soluções rápidas e fáceis, estão fadadas ao fracasso, pois raramente possuem aderência crível às formas de organização e funcionamento dos aparatos de Estado.
Tudo somado, pode-se afirmar que os custos econômicos, sociais, ambientais, políticos e institucionais de reformas administrativas que falsamente se vendem como solução, serão muito maiores que a alegada economia fiscal que se espera obter delas. Linhas gerais, a pretensa reforma administrativa contida na PEC 32/2020 mal esconde o viés ideológico, negativista do Estado e dos servidores, que está por detrás das suas intenções fiscais e privatistas, passando longe de qualquer ideia de melhoria real do desempenho estatal.
Desta maneira, um ponto de partida mais honesto deveria reconhecer que o emprego público não está fundado - conceitual e juridicamente - em relações contratuais tais quais aquelas que tipificam as relações de assalariamento entre trabalhadores e empregadores no mundo privado. Ao contrário, o servidor público estatutário possui uma relação de deveres e direitos com o Estado-empregador e com a própria sociedade, ancorada desde a CF-1988 no chamado Regime Jurídico Único (RJU), na Lei 8.112/1990 e outros regramentos subsequentes que disciplinam sua atuação e conduta, e que, evidentemente, podem e devem passar por aperfeiçoamentos constantes.
Em particular, há distinções claras relativamente aos empregos do setor privado, dada a natureza pública das ocupações que se dão a mando do Estado e a serviço da coletividade, cujo objetivo último não é a produção de lucro, mas sim a produção de cidadania e bem-estar social. Neste sentido, há sete fundamentos da ocupação no setor público, presentes em maior ou menor medida nos Estados nacionais contemporâneos, que precisam ser levados em consideração para uma boa estrutura de governança e por incentivos corretos à produtividade e ao desempenho satisfatório (individual e coletivo) ao longo do tempo. São eles: i) a democracia como valor político em si e como método de governo para a obtenção de consensos mais aderentes à realidade e duradouros no tempo; ii) a diversidade social como fator de convergência entre o perfil da população e o perfil da força de trabalho no setor público brasileiro; iii) a estabilidade na ocupação, idealmente conquistada por critérios meritocráticos em ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social, visando a proteção contra assédios e arbitrariedades - inclusive político-partidárias - cometidas pelo Estado-empregador;[1] iv) a remuneração adequada, isonômica e previsível ao longo do ciclo laboral; v) a escolaridade e/ou qualificação elevadas desde a entrada e capacitação permanente no âmbito das funções precípuas dos respectivos cargos e organizações; vi) a cooperação - ao invés da competição - interpessoal e intra/inter organizações como critério de atuação e método primordial de trabalho no setor público; e vii) a liberdade de organização e autonomia de atuação sindical no setor público.
Diretamente correlacionada com o desempenho dos servidores, dados relativos à escolarização mostram que a força de trabalho ocupada no setor público brasileiro já vem se qualificando e se profissionalizando para o desempenho de suas funções. Segundo informações do Atlas do Estado Brasileiro, a expansão vem acontecendo, em termos absolutos e relativos, com vínculos públicos que possuem nível superior completo de formação, que passaram, nos três níveis da federação, de pouco mais de 900 mil para mais de 5,5 milhões, de 1986 a 2020. Percentualmente, este nível saltou de 19% em 1986 para perto de 50% do contingente de vínculos em 2020.
Nos municípios, onde está concentrada a maior parte dos servidores públicos, em áreas finalísticas de atendimento direto à população, tais como saúde, assistência social, limpeza urbana e ensino fundamental, a tendência de aumento de escolarização foi também bastante acentuada. A escolaridade superior completa aumentou de 10% para mais de 40% entre 1986 e 2020. A do ensino médio completo ou superior incompleto aumentou de 22% para 40% no mesmo período. Já a escolaridade de nível médio incompleto e nível fundamental caíram, respetivamente, de 14% para 10% e 53% para menos de 9% do total.
Esses dados revelam que a escolarização média dos trabalhadores no setor público, em praticamente todos os níveis da federação e áreas setoriais de atuação governamental, está hoje acima da escolarização média correspondente às ocupações do setor privado. Desta maneira, eles servem para desmistificar afirmações infundadas sobre eficiência, eficácia e desempenho estatal na implementação de políticas públicas e na prestação de serviços e entregas à população. Pois a qualidade das políticas públicas, bem como os graus de institucionalização e profissionalização do Estado em cada área específica de atuação, são dimensões tributárias da escolarização/qualificação que os servidores trazem consigo ao ingressarem no setor público e daquela obtida ao longo de seu ciclo laboral, incluindo-se aí o conhecimento tácito, que é um tipo de conhecimento praticamente impossível de ser conseguido por meio de livros e manuais, já que adquirido ao longo de anos pela prática cotidiana de atuação, erros, acertos, interações e inovações incrementais no local de trabalho. Ou seja, obtido de forma pessoal, portanto, geralmente intransferível e insubstituível, sendo esta mais uma razão para defender a estabilidade/proteção relativa dos servidores e criticar as propostas da PEC 32/2020 que preveem a flexibilização/precarização das formas de contratação e demissão no setor público, pois o incremento de rotatividade delas derivado implicará, além de outros efeitos nefastos, em perda irrecuperável de memória institucional, maiores descontinuidades nas políticas públicas e fragilização estatal na provisão de bens e serviços à população. Tudo somado, embora outros fatores influenciem no sucesso e qualidade das políticas, tais como a disponibilidade de recursos, as regras institucionais etc., sabe-se que recrutar pessoas com maior e melhor formação é desejável, e indicativo de aprimoramento/profissionalização dos quadros que manejam a entrega de bens e serviços aos cidadãos.
Com isso, o desempenho de servidores no setor público, devido à amplitude e complexidade de temas e novas áreas programáticas de atuação governamental que continuamente se projetam ao futuro, depende, portanto, de processo permanente e necessário de profissionalização - ao invés de sucateamento! - da burocracia e dos serviços públicos. É claro que as exigências citadas acima colocam desafios imensos às políticas públicas de pessoal e sugerem atrelamento de fases e tratamento orgânico aos novos servidores, desde a seleção por concursos, trilhas de capacitação e alocação funcional, critérios justos para avaliação e progressão funcional, incentivos não pecuniários e técnicas organizacionais que combinem as vocações e interesses individuais com as exigências organizacionais de aperfeiçoamento das funções públicas. Em suma, nem incentivos dados por meio de remuneração variável, ainda mais se pensadas para terem caráter permanente, nem ameaças ou penalidades sugeridas por abordagens punitivistas de desempenho, servem como referência concreta para a obtenção de ganhos de produtividade e de maior ou melhor desempenho dos servidores e servidoras.
Por isso, uma vez que se entenda serem os serviços públicos altamente intensivos em recursos humanos, percebe-se a relevância de estruturas administrativas centradas em gestão de pessoas e gestão de desempenho. Com isso, a indução de maior e melhor desempenho deve estar associada à valorização da autonomia relativa de servidores públicos estáveis para inovar e aprender a partir da reflexão sobre suas próprias práticas. Para tanto, práticas colaborativas em âmbito estatal devem estar conectadas aos próprios objetivos do desempenho individual e coletivo em perspectiva institucional. Quando o desempenho é concebido como atenção tanto à qualidade dos processos como à qualidade dos resultados, procura-se iluminar em uma organização a sua capacidade reflexiva para desempenhar e sua habilidade em converter tal capacidade em resultados (produtos e impactos) sustentáveis ao longo do tempo.
É essa noção de cooperação e desempenho, que permite romper com a limitação das perspectivas liberais e gerencialistas, substituindo-as por abordagens mais criativas sobre as relações entre processos de trabalho (recursos, procedimentos e formas de atuação) e seus respectivos resultados. Nestas condições, a cooperação interpessoal e intra/inter organizações emerge como corolário dos atributos e fundamentos anteriores (isto é: as questões já citadas da estabilidade, remunerações e capacitação dos servidores), colocando-se como método primordial de gestão do trabalho no setor público e critério substancial de atuação da administração pública. No setor privado, a competição, disfarçada de cooperação, é incentivada por meio de penalidades e estímulos individuais pecuniários (mas não só) no ambiente de trabalho, em função da facilidade relativa com a qual se pode individualizar o cálculo privado da produtividade e os custos e ganhos monetários por trabalhador.
No setor público, ao contrário, a operação de individualização das entregas (bens e serviços), voltadas direta e indiretamente para a coletividade, é tarefa estatística e metodologicamente difícil, ao mesmo tempo que política e socialmente indesejável. Simplesmente pelo fato de que a função-objetivo do setor público não é produzir valor econômico na forma de lucro, mas sim gerar valor social, cidadania e bem-estar de forma equânime e sustentável ao conjunto da população por todo o território nacional.
Por esta e outras razões, portanto, a cooperação - e sua natureza coletiva, contínua e cumulativa no tempo - é que deveria ser incentivada e valorizada no setor público. Esse é, por sua vez, um dos desafios centrais e perenes para a gestão de burocracias: equacionar o dilema entre o controle da atuação de seus funcionários e a flexibilidade, criatividade, adaptabilidade e expansão de suas capacidades reflexivas necessárias para a resolução de problemas complexos em todas as etapas do circuito de políticas públicas - formulação, implementação, gestão, participação, monitoramento, avaliação e controle.
Além disso, a abordagem reflexiva/experimentalista aqui defendida rejeita os pressupostos simplificadores do comportamento humano nos quais se baseiam os sistemas (em geral, quantitativistas) de incentivo para o desempenho, tal como propostos pelas abordagens gerencialistas, fundadas em percepções (em geral, equivocadas) de que os indivíduos (ou grupos e organizações) são motivados, fundamentalmente, pelo desejo de obter recompensas (como dinheiro ou status) e evitar sanções. Ao contrário, a tarefa da gestão do desempenho envolve o estabelecimento de rotinas que possibilitem aos agentes envolvidos a reflexão e a revisão contínua das atividades e ações burocráticas, de modo que o monitoramento do desempenho seja, em si, parte de um processo mais amplo - contínuo, coletivo e cumulativo - de aprendizagem e inovação institucional, no qual as relações entre diferentes processos de trabalho e seus respectivos resultados, em cada contexto específico, estão sempre em foco.
Mecanismos de revisão qualitativa do desempenho, em contraposição a sistemas de aferição de resultados quantitativos, criam relacionamentos diferentes entre funcionários na linha de frente e os supervisores em seus centros administrativos. Ao invés de serem objeto da aferição de metas numéricas pré-determinadas, os profissionais passam a ser participantes ativos na (re)construção de metas, procedimentos e estratégias de atuação, com base em atributos do conhecimento tácito citado acima e em resultados advindos de suas operações concretas no dia a dia das políticas públicas.
Não há, portanto, choque de gestão, reforma fiscal, ou reforma administrativa contrária ao interesse público, que superem ou substituam o acima indicado.
Nota
[1] Ressalte-se que o critério weberiano-meritocrático de seleção de quadros permanentes e bem capacitados (técnica, emocional e moralmente) para o Estado depende de condições objetivas ainda longe das realmente vigentes no Brasil, quais sejam: ambiente geral de homogeneidade econômica, republicanismo político e democracia social. Apenas diante de tais condições é que, idealmente, o critério meritocrático conseguiria recrutar as pessoas mais adequadas (técnica, emocional e moralmente), sem viés dominante ou decisivo de renda, da posição social e/ou da herança familiar ou influência política.