Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

O IPHAN e as políticas patrimoniais no Governo Lula 3: balanço do início da gestão Grass, perspectivas e sugestão contra o marasmo atual


Por Redação
Fonte: arquivo pessoal.  

André Fontan Köhler, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP e Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP. Professor da EACH-USP do bacharelado em Lazer e Turismo e pesquisador do Laboratório de Gestão de Governamental (Lab.Gov) da USP

Passados mais de 100 dias do início do governo Lula 3 (2023-), pode-se fazer um balanço de sua atuação na seara do patrimônio cultural, principalmente por meio do estado e dos rumos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia que concentra o pouco que restou da vertente patrimonial abrigada no governo federal. Trata-se de uma vertente bem pouco importante, desde pelo menos a segunda metade dos anos 1990, frente a outros grupos e interesses contemplados nas políticas públicas do Ministério da Cultura.

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Para o IPHAN e a vertente patrimonial brasileira, o governo Bolsonaro (2019-2022) resultou em um estado de "terra arrasada", a qual foi, posteriormente, salgada e chamuscada. Parece não ter sido feito, rigorosamente, nada de benéfico ao patrimônio histórico e artístico nacional, salvo obras pontuais, por meio das quais a autarquia federal "arrasta-se", a carecer de políticas dotadas de recursos humanos, materiais e econômico-financeiros.

A partir deste quadro de "terra arrasada" e dada a importância atribuída às políticas culturais, durante a campanha da chapa Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho, o que o Governo Lula 3 "prometia" para o IPHAN e as políticas patrimoniais brasileiras? Em aparente paradoxo, pouca coisa, quase nada. Isso se deve, basicamente, a três fatores, a saber:

  1. não houve, rigorosamente, nenhum grande programa implantado no período dos quatro governos petistas (2003-2016) - não há resultados concretos e relevantes para mostrar na seara patrimonial. O muito bem formulado Programa de Aceleração do Crescimento - Cidades Históricas (PAC-CH) do governo Lula 2 (2007-2010) ficou no papel, e sua versão rebaixada e degenerada implantada nos governos de Dilma Rousseff produziu poucos resultados concretos, tendo continuado o padrão de restauro de grandes monumentos arquitetônicos. Ou seja, na seara patrimonial, o governo Lula 3 não tem o que retomar, ao contrário de o que ocorreu em várias áreas deste governo;
  2. por mais que o governo Bolsonaro tenha tentado desbaratar o IPHAN e as políticas patrimoniais brasileiras, o cerne de sua atuação - e da consequente resistência de parte da sociedade civil, da classe artística e da classe política - centrou-se na produção cultural contemporânea e na promoção e valorização de identidades coletivas particulares; aquela foi vista como rebaixada e subversiva, estas acabaram por ser avaliadas como divisivas e causadoras de (novos) privilégios. Foi isto que mobilizou o debate político, e gerou as mais fortes reações ao governo Bolsonaro. Perto destas duas questões, o ataque ao IPHAN não gerou assunto, no que concerne a sua repercussão;
  3. pela composição do Ministério da Cultura e pelo apoio de expressiva parcela da classe artística brasileira, a atuação do governo Lula 3 tende a passar ao lado da vertente patrimonial. Os públicos "tradicionais" do Partido dos Trabalhadores não se interessam pela questão do patrimônio histórico e artístico nacional. Desta seara, a classe artística não deriva prestígio nem sequer recursos econômico-financeiros. E, após décadas de atrofia, o que restou da vertente patrimonial não consegue mobilizar força política, interesses econômicos e apoio popular, em escala suficiente.

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Dentro deste contexto, houve a chegada de Leandro Antonio Grass Peixoto à presidência do IPHAN, jovem político do Distrito Federal, cuja trajetória acadêmica e política é mais afeita a questões ligadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável, por mais que tenha formação em Gestão Cultural (lato sensu, aparentemente). Isto representa certa novidade nas indicações à presidência do IPHAN, pois, até a nomeação de Katia Santos Bogéa, durante o governo Temer (2016-2018), era de praxe a colocação de profissionais com trajetória de forte atuação na seara patrimonial. A nomeação de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra à presidência do IPHAN, no governo Bolsonaro, "quebrou" uma tradição de décadas; ironicamente, o governo Lula 3 seguiu nesta "quebra" de tradição.

Até o presente momento, o que tem representado a chegada de Leandro Grass à presidência do IPHAN? Infelizmente, pouca coisa, quase nada de concreto em projetos anunciados e ações efetivas, por mais que não se pode colocar, nesta análise, a formulação de políticas públicas e a construção de articulações para sua sustentação, as quais não vieram, ainda, a público.

Para este levantamento, foi útil pesquisar o sítio eletrônico e as redes sociais do IPHAN, assim como ter conversado com algumas funcionárias de carreira, em Brasília e em superintendências estaduais. A isto, acompanharam-se as redes sociais de Leandro Grass e entrevistas e declarações dadas à imprensa.

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O primeiro ponto que se destaca é a falta de um rumo claro às políticas patrimoniais brasileiras. Afinal de contas, para além da retórica, qual é sua importância para o atual governo, quais são suas prioridades, e como serão feitas? No balanço dos primeiros 100 dias do governo Lula 3, muitas áreas conseguiram exercer um forte contraste com a atuação do governo Bolsonaro. Já o patrimônio cultural acabou por ficar na incômoda companhia de outras áreas, a exemplo do turismo, nas quais a mudança - ou a volta, à moda de "O Brasil voltou" - tem ficado, apenas, na retórica e no discurso.

O segundo ponto de destaque é a comunicação do presidente do IPHAN, por meio de suas redes sociais. Tomando o Twitter como exemplo, dado que é a rede social na qual Leandro Grass mais publica, aparentemente, tem-se a impressão de que o patrimônio histórico e artístico nacional é um mero detalhe de sua atuação no governo federal. As redes sociais são dele - usa-as como quiser e bem entender. Contudo, cumpre observar o seguinte:

I. o tipo mais presente de publicação - de autoria de Leandro Grass ou compartilhada por ele - nada tem a ver com o patrimônio histórico e artístico nacional. Trata-se de ações, projetos, conquistas e posições do governo federal como um todo, centrado na figura do presidente da república;

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II. outro tipo numeroso é a crítica ao atual governo do Distrito Federal, cujo chefe do poder executivo (Ibaneis Rocha Barros Junior) derrotou, logo no primeiro turno de 2022, o candidato Leandro Grass. No mais das vezes, são abordadas searas que não a do patrimônio cultural;

Aqui, tem-se claro algo que foi além do verificado no governo Bolsonaro, a saber: a colocação, na presidência do IPHAN, de um político profissional, o qual parece mirar o governo do Distrito Federal. Abrigar aliados derrotados é uma ação que remonta ao governo Lula 1 (2003-2006), a qual gerou o termo "derrotério", misto de neologismo e de troça da imprensa e da então oposição política. No governo Lula 3, Marcelo Freixo é o exemplo mais visível.

De um lado, a ação de Leandro Grass parece solapar um princípio que resistiu a décadas e aos mais variados governos, tanto em períodos democráticos quanto autoritários, a saber: o tratamento da seara patrimonial como política de Estado, o elevado rigor e critério técnico das decisões e a autonomia da autarquia, com sua resistência a interferências externas. Tratou-se de um isolamento sem negociações com atores externos, cujas características e resultados foram já alvo de vários trabalhos, inclusive de outro texto meu publicado neste blogue, em 12/06/2020 ("OS ULTIMATOS DE JAIR MESSIAS BOLSONARO AO IPHAN E OS VELHOS MALES DA AUTARQUIA PÚBLICA FEDERAL: a verdadeira questão não é conjuntural, mas sim estrutural"). Leandro Grass contrapõe, a esta tradição, uma politização sem precedentes na atuação do IPHAN, mesmo em contraste com a presente no governo Bolsonaro; trata-se, seguindo-se a fala do presidente do IPHAN, de se contrapor à "extrema direita" e seu "pensamento nazista".

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Nesta linha, é comum a publicação de Leandro Grass com políticos eleitos e ocupantes de cargos importantes no governo federal, ao passo que não se verifica a mesma "vontade" com integrantes da vertente patrimonial. Esta politização do IPHAN, visível em sua comunicação e na de seu presidente, é inegável. Trará apoio externo à autarquia federal, ou se trata, apenas, da promoção de seu dirigente? A ver. Prejudicará a autonomia e o elevado rigor técnico do IPHAN? A ver, também. Para esta segunda pergunta, o caso do Pão de Açúcar, objeto de texto de Sonia Rabello, publicado neste blogue em 21/04/2023, pode começar a formar uma resposta ("O caso da mutilação do Pão de Açúcar, no Rio").

III. são listadas e celebradas obras e entregas do IPHAN, as quais contam, quase sempre, com um pequeno "detalhe", a saber: elas foram de responsabilidade, em sua maioria, de governos passados, notadamente o governo Bolsonaro. No caso do restauro de grandes monumentos arquitetônicos, a exemplo da Igreja de São Pedro dos Clérigos (Recife, Estado de Pernambuco) e da Fortaleza de Santo Antônio de Ratones (Florianópolis, Estado de Santa Catarina), o envolvimento do atual governo quase se resumiu a entrega das obras e pagamento dos trabalhos finais;

Ou seja, a pretensa retomada - ou volta - das políticas patrimoniais tem sido defendida, tomando-se como base a conclusão de obras pontuais, as quais estavam já em curso, cujo início e grosso dos trabalhos foram de responsabilidade de governos passados. No caso da Igreja de São Pedro dos Clérigos, o início das obras ocorreu em 2013; a falta de recursos nos dois últimos governos petistas protelou os trabalhos de restauro, os quais foram feitos, em grande monta, nos governos Temer e Bolsonaro. Foram necessários 10 anos para o restauro de um único monumento, por mais que se trate de um dos mais importantes do Brasil Colônia (1500-1822).

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E, por fim, temos o seguinte ponto:

IV. o anúncio de medidas realmente importantes, no sentido de dar um novo rumo às políticas patrimoniais, concentra-se nas redes sociais do atual presidente do IPHAN, em publicações de difícil avaliação e decifração práticas.

Contudo, Leandro Grass anuncia, apenas, que se está trabalhando muito, arduamente, e que o patrimônio cultural é um importante instrumento de desenvolvimento e de redução das desigualdades. A situação lembra, tristemente, a constrangedora entrevista de Mário Luís Frias ao programa Os Pingos nos Is, então composto por uma bancada de jornalistas e comentaristas simpáticos ao governo Bolsonaro, feita pouco tempo depois de ter sido nomeado Secretário Especial da Cultura. Instado a apresentar seus projetos, o entrevistado começou a repetir que estava a trabalhar muito, arduamente, mas sem conseguir expor ações e projetos específicos.

De concreto, no que concerne a programas e projetos estruturadores, Leandro Grass anunciou, apenas, o pedido formal para a convocação de 25% do cadastro de reserva do último concurso do IPHAN, o que tem caráter emergencial à autarquia federal, depauperada de recursos humanos e econômico-financeiros. Per ipsum, trata-se de algo muito importante. No geral, passados quase quatro meses de governo Lula 3, é muito, muito pouco.

Em texto anterior publicado neste blogue, em 23/08/2023 ("E O PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL? O extraordinário e enigmático silêncio do Governo Bolsonaro acerca do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e das políticas patrimoniais brasileiras, ou o esquisito caso de um nacionalismo que, solenemente, ignora o patrimônio, a memória e a identidade nacional"), discuti, conjuntamente com Renato Eliseu Costa e Bárbara Rodarte de Paula, o que precisa ser feito, a fim de (re)estruturar as políticas patrimoniais brasileiras. Cumpre-me, neste espaço, centrar-me em um ponto específico, o qual pode retirar o relativo marasmo presente no atual governo federal, na seara patrimonial.

Se Leandro Grass resolver ler e avaliar programas e projetos de governos passados, ele encontrará um que é, provavelmente, o mais bem discutido, planejado e formulado das políticas patrimoniais brasileiras, desde - para utilizar o mito de origem do IPHAN - o documento administrativo do Conde de Galvêas, datado de 1742, no qual o vice-rei do Brasil defende a preservação do Palácio das Duas Torres, marco do domínio holandês de parte da Grande Região Nordeste. Maria Cecília Londres Fonseca lembra-nos deste caso, assim como ressalto que o palácio supracitado não escapou da ruína e obliteração.

Trata-se do PAC-CH, versão 2009, quando Luiz Inácio Lula da Silva era presidente do Brasil. Para que "inventar", se o PAC-CH contempla o seguinte:

  1. O PAC-CH beneficiou-se da revisão de programas passados, notadamente o Programa de Reconstrução de Cidades Históricas do Nordeste, com sua utilização para fins turísticos (PCH) e o Programa Monumenta, aproveitando seus pontos positivos, e revisando suas falhas (inúmeras, no caso do segundo);
  2. O PAC-CH foi bem recebido por técnicos, dirigentes e ex-dirigentes do IPHAN, e encontrou boa receptividade junto à comunidade científica que estuda o patrimônio cultural. É um programa bem avaliado por quem trabalha na seara patrimonial;
  3. Ele permite envolver outras áreas do governo e firmas estatais importantes nas políticas patrimoniais brasileiras, ampliando sua base de apoio, e aumentando sua importância dentro da agenda governamental. Sem isto, é muito difícil que as políticas patrimoniais saiam da situação na qual se encontram.

Então, se "O Brasil voltou", que tal o PAC-CH, versão 2009, voltar, também, mesmo sem nunca ter sido (devidamente implantado)? Que se coloque na mesa, que se discuta, revise-o, e se busque os apoios para sua implantação.

Um dos problemas do PAC-CH foi ter sido publicado no penúltimo ano do governo Lula 2, nos estertores do período de alto crescimento econômico e de crescimento da capacidade de investimento do governo federal. No momento atual, corre-se risco similar; ter um programa apresentado na segunda metade do governo Lula 3, em uma seara vista como marginal na agenda pública efetiva, é meio caminho andado para resultar em (quase) nada.

Em resumo, é preciso colocar, novamente, o PAC-CH, versão 2009, na mesa. E propor um novo rumo para as políticas patrimoniais brasileiras, antes que a diferença com o cenário de "terra arrasada" do governo Bolsonaro fique, apenas, na retórica e no discurso.

Fonte: arquivo pessoal.  

André Fontan Köhler, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP e Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP. Professor da EACH-USP do bacharelado em Lazer e Turismo e pesquisador do Laboratório de Gestão de Governamental (Lab.Gov) da USP

Passados mais de 100 dias do início do governo Lula 3 (2023-), pode-se fazer um balanço de sua atuação na seara do patrimônio cultural, principalmente por meio do estado e dos rumos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia que concentra o pouco que restou da vertente patrimonial abrigada no governo federal. Trata-se de uma vertente bem pouco importante, desde pelo menos a segunda metade dos anos 1990, frente a outros grupos e interesses contemplados nas políticas públicas do Ministério da Cultura.

Para o IPHAN e a vertente patrimonial brasileira, o governo Bolsonaro (2019-2022) resultou em um estado de "terra arrasada", a qual foi, posteriormente, salgada e chamuscada. Parece não ter sido feito, rigorosamente, nada de benéfico ao patrimônio histórico e artístico nacional, salvo obras pontuais, por meio das quais a autarquia federal "arrasta-se", a carecer de políticas dotadas de recursos humanos, materiais e econômico-financeiros.

A partir deste quadro de "terra arrasada" e dada a importância atribuída às políticas culturais, durante a campanha da chapa Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho, o que o Governo Lula 3 "prometia" para o IPHAN e as políticas patrimoniais brasileiras? Em aparente paradoxo, pouca coisa, quase nada. Isso se deve, basicamente, a três fatores, a saber:

  1. não houve, rigorosamente, nenhum grande programa implantado no período dos quatro governos petistas (2003-2016) - não há resultados concretos e relevantes para mostrar na seara patrimonial. O muito bem formulado Programa de Aceleração do Crescimento - Cidades Históricas (PAC-CH) do governo Lula 2 (2007-2010) ficou no papel, e sua versão rebaixada e degenerada implantada nos governos de Dilma Rousseff produziu poucos resultados concretos, tendo continuado o padrão de restauro de grandes monumentos arquitetônicos. Ou seja, na seara patrimonial, o governo Lula 3 não tem o que retomar, ao contrário de o que ocorreu em várias áreas deste governo;
  2. por mais que o governo Bolsonaro tenha tentado desbaratar o IPHAN e as políticas patrimoniais brasileiras, o cerne de sua atuação - e da consequente resistência de parte da sociedade civil, da classe artística e da classe política - centrou-se na produção cultural contemporânea e na promoção e valorização de identidades coletivas particulares; aquela foi vista como rebaixada e subversiva, estas acabaram por ser avaliadas como divisivas e causadoras de (novos) privilégios. Foi isto que mobilizou o debate político, e gerou as mais fortes reações ao governo Bolsonaro. Perto destas duas questões, o ataque ao IPHAN não gerou assunto, no que concerne a sua repercussão;
  3. pela composição do Ministério da Cultura e pelo apoio de expressiva parcela da classe artística brasileira, a atuação do governo Lula 3 tende a passar ao lado da vertente patrimonial. Os públicos "tradicionais" do Partido dos Trabalhadores não se interessam pela questão do patrimônio histórico e artístico nacional. Desta seara, a classe artística não deriva prestígio nem sequer recursos econômico-financeiros. E, após décadas de atrofia, o que restou da vertente patrimonial não consegue mobilizar força política, interesses econômicos e apoio popular, em escala suficiente.

Dentro deste contexto, houve a chegada de Leandro Antonio Grass Peixoto à presidência do IPHAN, jovem político do Distrito Federal, cuja trajetória acadêmica e política é mais afeita a questões ligadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável, por mais que tenha formação em Gestão Cultural (lato sensu, aparentemente). Isto representa certa novidade nas indicações à presidência do IPHAN, pois, até a nomeação de Katia Santos Bogéa, durante o governo Temer (2016-2018), era de praxe a colocação de profissionais com trajetória de forte atuação na seara patrimonial. A nomeação de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra à presidência do IPHAN, no governo Bolsonaro, "quebrou" uma tradição de décadas; ironicamente, o governo Lula 3 seguiu nesta "quebra" de tradição.

Até o presente momento, o que tem representado a chegada de Leandro Grass à presidência do IPHAN? Infelizmente, pouca coisa, quase nada de concreto em projetos anunciados e ações efetivas, por mais que não se pode colocar, nesta análise, a formulação de políticas públicas e a construção de articulações para sua sustentação, as quais não vieram, ainda, a público.

Para este levantamento, foi útil pesquisar o sítio eletrônico e as redes sociais do IPHAN, assim como ter conversado com algumas funcionárias de carreira, em Brasília e em superintendências estaduais. A isto, acompanharam-se as redes sociais de Leandro Grass e entrevistas e declarações dadas à imprensa.

O primeiro ponto que se destaca é a falta de um rumo claro às políticas patrimoniais brasileiras. Afinal de contas, para além da retórica, qual é sua importância para o atual governo, quais são suas prioridades, e como serão feitas? No balanço dos primeiros 100 dias do governo Lula 3, muitas áreas conseguiram exercer um forte contraste com a atuação do governo Bolsonaro. Já o patrimônio cultural acabou por ficar na incômoda companhia de outras áreas, a exemplo do turismo, nas quais a mudança - ou a volta, à moda de "O Brasil voltou" - tem ficado, apenas, na retórica e no discurso.

O segundo ponto de destaque é a comunicação do presidente do IPHAN, por meio de suas redes sociais. Tomando o Twitter como exemplo, dado que é a rede social na qual Leandro Grass mais publica, aparentemente, tem-se a impressão de que o patrimônio histórico e artístico nacional é um mero detalhe de sua atuação no governo federal. As redes sociais são dele - usa-as como quiser e bem entender. Contudo, cumpre observar o seguinte:

I. o tipo mais presente de publicação - de autoria de Leandro Grass ou compartilhada por ele - nada tem a ver com o patrimônio histórico e artístico nacional. Trata-se de ações, projetos, conquistas e posições do governo federal como um todo, centrado na figura do presidente da república;

II. outro tipo numeroso é a crítica ao atual governo do Distrito Federal, cujo chefe do poder executivo (Ibaneis Rocha Barros Junior) derrotou, logo no primeiro turno de 2022, o candidato Leandro Grass. No mais das vezes, são abordadas searas que não a do patrimônio cultural;

Aqui, tem-se claro algo que foi além do verificado no governo Bolsonaro, a saber: a colocação, na presidência do IPHAN, de um político profissional, o qual parece mirar o governo do Distrito Federal. Abrigar aliados derrotados é uma ação que remonta ao governo Lula 1 (2003-2006), a qual gerou o termo "derrotério", misto de neologismo e de troça da imprensa e da então oposição política. No governo Lula 3, Marcelo Freixo é o exemplo mais visível.

De um lado, a ação de Leandro Grass parece solapar um princípio que resistiu a décadas e aos mais variados governos, tanto em períodos democráticos quanto autoritários, a saber: o tratamento da seara patrimonial como política de Estado, o elevado rigor e critério técnico das decisões e a autonomia da autarquia, com sua resistência a interferências externas. Tratou-se de um isolamento sem negociações com atores externos, cujas características e resultados foram já alvo de vários trabalhos, inclusive de outro texto meu publicado neste blogue, em 12/06/2020 ("OS ULTIMATOS DE JAIR MESSIAS BOLSONARO AO IPHAN E OS VELHOS MALES DA AUTARQUIA PÚBLICA FEDERAL: a verdadeira questão não é conjuntural, mas sim estrutural"). Leandro Grass contrapõe, a esta tradição, uma politização sem precedentes na atuação do IPHAN, mesmo em contraste com a presente no governo Bolsonaro; trata-se, seguindo-se a fala do presidente do IPHAN, de se contrapor à "extrema direita" e seu "pensamento nazista".

Nesta linha, é comum a publicação de Leandro Grass com políticos eleitos e ocupantes de cargos importantes no governo federal, ao passo que não se verifica a mesma "vontade" com integrantes da vertente patrimonial. Esta politização do IPHAN, visível em sua comunicação e na de seu presidente, é inegável. Trará apoio externo à autarquia federal, ou se trata, apenas, da promoção de seu dirigente? A ver. Prejudicará a autonomia e o elevado rigor técnico do IPHAN? A ver, também. Para esta segunda pergunta, o caso do Pão de Açúcar, objeto de texto de Sonia Rabello, publicado neste blogue em 21/04/2023, pode começar a formar uma resposta ("O caso da mutilação do Pão de Açúcar, no Rio").

III. são listadas e celebradas obras e entregas do IPHAN, as quais contam, quase sempre, com um pequeno "detalhe", a saber: elas foram de responsabilidade, em sua maioria, de governos passados, notadamente o governo Bolsonaro. No caso do restauro de grandes monumentos arquitetônicos, a exemplo da Igreja de São Pedro dos Clérigos (Recife, Estado de Pernambuco) e da Fortaleza de Santo Antônio de Ratones (Florianópolis, Estado de Santa Catarina), o envolvimento do atual governo quase se resumiu a entrega das obras e pagamento dos trabalhos finais;

Ou seja, a pretensa retomada - ou volta - das políticas patrimoniais tem sido defendida, tomando-se como base a conclusão de obras pontuais, as quais estavam já em curso, cujo início e grosso dos trabalhos foram de responsabilidade de governos passados. No caso da Igreja de São Pedro dos Clérigos, o início das obras ocorreu em 2013; a falta de recursos nos dois últimos governos petistas protelou os trabalhos de restauro, os quais foram feitos, em grande monta, nos governos Temer e Bolsonaro. Foram necessários 10 anos para o restauro de um único monumento, por mais que se trate de um dos mais importantes do Brasil Colônia (1500-1822).

E, por fim, temos o seguinte ponto:

IV. o anúncio de medidas realmente importantes, no sentido de dar um novo rumo às políticas patrimoniais, concentra-se nas redes sociais do atual presidente do IPHAN, em publicações de difícil avaliação e decifração práticas.

Contudo, Leandro Grass anuncia, apenas, que se está trabalhando muito, arduamente, e que o patrimônio cultural é um importante instrumento de desenvolvimento e de redução das desigualdades. A situação lembra, tristemente, a constrangedora entrevista de Mário Luís Frias ao programa Os Pingos nos Is, então composto por uma bancada de jornalistas e comentaristas simpáticos ao governo Bolsonaro, feita pouco tempo depois de ter sido nomeado Secretário Especial da Cultura. Instado a apresentar seus projetos, o entrevistado começou a repetir que estava a trabalhar muito, arduamente, mas sem conseguir expor ações e projetos específicos.

De concreto, no que concerne a programas e projetos estruturadores, Leandro Grass anunciou, apenas, o pedido formal para a convocação de 25% do cadastro de reserva do último concurso do IPHAN, o que tem caráter emergencial à autarquia federal, depauperada de recursos humanos e econômico-financeiros. Per ipsum, trata-se de algo muito importante. No geral, passados quase quatro meses de governo Lula 3, é muito, muito pouco.

Em texto anterior publicado neste blogue, em 23/08/2023 ("E O PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL? O extraordinário e enigmático silêncio do Governo Bolsonaro acerca do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e das políticas patrimoniais brasileiras, ou o esquisito caso de um nacionalismo que, solenemente, ignora o patrimônio, a memória e a identidade nacional"), discuti, conjuntamente com Renato Eliseu Costa e Bárbara Rodarte de Paula, o que precisa ser feito, a fim de (re)estruturar as políticas patrimoniais brasileiras. Cumpre-me, neste espaço, centrar-me em um ponto específico, o qual pode retirar o relativo marasmo presente no atual governo federal, na seara patrimonial.

Se Leandro Grass resolver ler e avaliar programas e projetos de governos passados, ele encontrará um que é, provavelmente, o mais bem discutido, planejado e formulado das políticas patrimoniais brasileiras, desde - para utilizar o mito de origem do IPHAN - o documento administrativo do Conde de Galvêas, datado de 1742, no qual o vice-rei do Brasil defende a preservação do Palácio das Duas Torres, marco do domínio holandês de parte da Grande Região Nordeste. Maria Cecília Londres Fonseca lembra-nos deste caso, assim como ressalto que o palácio supracitado não escapou da ruína e obliteração.

Trata-se do PAC-CH, versão 2009, quando Luiz Inácio Lula da Silva era presidente do Brasil. Para que "inventar", se o PAC-CH contempla o seguinte:

  1. O PAC-CH beneficiou-se da revisão de programas passados, notadamente o Programa de Reconstrução de Cidades Históricas do Nordeste, com sua utilização para fins turísticos (PCH) e o Programa Monumenta, aproveitando seus pontos positivos, e revisando suas falhas (inúmeras, no caso do segundo);
  2. O PAC-CH foi bem recebido por técnicos, dirigentes e ex-dirigentes do IPHAN, e encontrou boa receptividade junto à comunidade científica que estuda o patrimônio cultural. É um programa bem avaliado por quem trabalha na seara patrimonial;
  3. Ele permite envolver outras áreas do governo e firmas estatais importantes nas políticas patrimoniais brasileiras, ampliando sua base de apoio, e aumentando sua importância dentro da agenda governamental. Sem isto, é muito difícil que as políticas patrimoniais saiam da situação na qual se encontram.

Então, se "O Brasil voltou", que tal o PAC-CH, versão 2009, voltar, também, mesmo sem nunca ter sido (devidamente implantado)? Que se coloque na mesa, que se discuta, revise-o, e se busque os apoios para sua implantação.

Um dos problemas do PAC-CH foi ter sido publicado no penúltimo ano do governo Lula 2, nos estertores do período de alto crescimento econômico e de crescimento da capacidade de investimento do governo federal. No momento atual, corre-se risco similar; ter um programa apresentado na segunda metade do governo Lula 3, em uma seara vista como marginal na agenda pública efetiva, é meio caminho andado para resultar em (quase) nada.

Em resumo, é preciso colocar, novamente, o PAC-CH, versão 2009, na mesa. E propor um novo rumo para as políticas patrimoniais brasileiras, antes que a diferença com o cenário de "terra arrasada" do governo Bolsonaro fique, apenas, na retórica e no discurso.

Fonte: arquivo pessoal.  

André Fontan Köhler, Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela FAU-USP e Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-EAESP. Professor da EACH-USP do bacharelado em Lazer e Turismo e pesquisador do Laboratório de Gestão de Governamental (Lab.Gov) da USP

Passados mais de 100 dias do início do governo Lula 3 (2023-), pode-se fazer um balanço de sua atuação na seara do patrimônio cultural, principalmente por meio do estado e dos rumos do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia que concentra o pouco que restou da vertente patrimonial abrigada no governo federal. Trata-se de uma vertente bem pouco importante, desde pelo menos a segunda metade dos anos 1990, frente a outros grupos e interesses contemplados nas políticas públicas do Ministério da Cultura.

Para o IPHAN e a vertente patrimonial brasileira, o governo Bolsonaro (2019-2022) resultou em um estado de "terra arrasada", a qual foi, posteriormente, salgada e chamuscada. Parece não ter sido feito, rigorosamente, nada de benéfico ao patrimônio histórico e artístico nacional, salvo obras pontuais, por meio das quais a autarquia federal "arrasta-se", a carecer de políticas dotadas de recursos humanos, materiais e econômico-financeiros.

A partir deste quadro de "terra arrasada" e dada a importância atribuída às políticas culturais, durante a campanha da chapa Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho, o que o Governo Lula 3 "prometia" para o IPHAN e as políticas patrimoniais brasileiras? Em aparente paradoxo, pouca coisa, quase nada. Isso se deve, basicamente, a três fatores, a saber:

  1. não houve, rigorosamente, nenhum grande programa implantado no período dos quatro governos petistas (2003-2016) - não há resultados concretos e relevantes para mostrar na seara patrimonial. O muito bem formulado Programa de Aceleração do Crescimento - Cidades Históricas (PAC-CH) do governo Lula 2 (2007-2010) ficou no papel, e sua versão rebaixada e degenerada implantada nos governos de Dilma Rousseff produziu poucos resultados concretos, tendo continuado o padrão de restauro de grandes monumentos arquitetônicos. Ou seja, na seara patrimonial, o governo Lula 3 não tem o que retomar, ao contrário de o que ocorreu em várias áreas deste governo;
  2. por mais que o governo Bolsonaro tenha tentado desbaratar o IPHAN e as políticas patrimoniais brasileiras, o cerne de sua atuação - e da consequente resistência de parte da sociedade civil, da classe artística e da classe política - centrou-se na produção cultural contemporânea e na promoção e valorização de identidades coletivas particulares; aquela foi vista como rebaixada e subversiva, estas acabaram por ser avaliadas como divisivas e causadoras de (novos) privilégios. Foi isto que mobilizou o debate político, e gerou as mais fortes reações ao governo Bolsonaro. Perto destas duas questões, o ataque ao IPHAN não gerou assunto, no que concerne a sua repercussão;
  3. pela composição do Ministério da Cultura e pelo apoio de expressiva parcela da classe artística brasileira, a atuação do governo Lula 3 tende a passar ao lado da vertente patrimonial. Os públicos "tradicionais" do Partido dos Trabalhadores não se interessam pela questão do patrimônio histórico e artístico nacional. Desta seara, a classe artística não deriva prestígio nem sequer recursos econômico-financeiros. E, após décadas de atrofia, o que restou da vertente patrimonial não consegue mobilizar força política, interesses econômicos e apoio popular, em escala suficiente.

Dentro deste contexto, houve a chegada de Leandro Antonio Grass Peixoto à presidência do IPHAN, jovem político do Distrito Federal, cuja trajetória acadêmica e política é mais afeita a questões ligadas ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável, por mais que tenha formação em Gestão Cultural (lato sensu, aparentemente). Isto representa certa novidade nas indicações à presidência do IPHAN, pois, até a nomeação de Katia Santos Bogéa, durante o governo Temer (2016-2018), era de praxe a colocação de profissionais com trajetória de forte atuação na seara patrimonial. A nomeação de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra à presidência do IPHAN, no governo Bolsonaro, "quebrou" uma tradição de décadas; ironicamente, o governo Lula 3 seguiu nesta "quebra" de tradição.

Até o presente momento, o que tem representado a chegada de Leandro Grass à presidência do IPHAN? Infelizmente, pouca coisa, quase nada de concreto em projetos anunciados e ações efetivas, por mais que não se pode colocar, nesta análise, a formulação de políticas públicas e a construção de articulações para sua sustentação, as quais não vieram, ainda, a público.

Para este levantamento, foi útil pesquisar o sítio eletrônico e as redes sociais do IPHAN, assim como ter conversado com algumas funcionárias de carreira, em Brasília e em superintendências estaduais. A isto, acompanharam-se as redes sociais de Leandro Grass e entrevistas e declarações dadas à imprensa.

O primeiro ponto que se destaca é a falta de um rumo claro às políticas patrimoniais brasileiras. Afinal de contas, para além da retórica, qual é sua importância para o atual governo, quais são suas prioridades, e como serão feitas? No balanço dos primeiros 100 dias do governo Lula 3, muitas áreas conseguiram exercer um forte contraste com a atuação do governo Bolsonaro. Já o patrimônio cultural acabou por ficar na incômoda companhia de outras áreas, a exemplo do turismo, nas quais a mudança - ou a volta, à moda de "O Brasil voltou" - tem ficado, apenas, na retórica e no discurso.

O segundo ponto de destaque é a comunicação do presidente do IPHAN, por meio de suas redes sociais. Tomando o Twitter como exemplo, dado que é a rede social na qual Leandro Grass mais publica, aparentemente, tem-se a impressão de que o patrimônio histórico e artístico nacional é um mero detalhe de sua atuação no governo federal. As redes sociais são dele - usa-as como quiser e bem entender. Contudo, cumpre observar o seguinte:

I. o tipo mais presente de publicação - de autoria de Leandro Grass ou compartilhada por ele - nada tem a ver com o patrimônio histórico e artístico nacional. Trata-se de ações, projetos, conquistas e posições do governo federal como um todo, centrado na figura do presidente da república;

II. outro tipo numeroso é a crítica ao atual governo do Distrito Federal, cujo chefe do poder executivo (Ibaneis Rocha Barros Junior) derrotou, logo no primeiro turno de 2022, o candidato Leandro Grass. No mais das vezes, são abordadas searas que não a do patrimônio cultural;

Aqui, tem-se claro algo que foi além do verificado no governo Bolsonaro, a saber: a colocação, na presidência do IPHAN, de um político profissional, o qual parece mirar o governo do Distrito Federal. Abrigar aliados derrotados é uma ação que remonta ao governo Lula 1 (2003-2006), a qual gerou o termo "derrotério", misto de neologismo e de troça da imprensa e da então oposição política. No governo Lula 3, Marcelo Freixo é o exemplo mais visível.

De um lado, a ação de Leandro Grass parece solapar um princípio que resistiu a décadas e aos mais variados governos, tanto em períodos democráticos quanto autoritários, a saber: o tratamento da seara patrimonial como política de Estado, o elevado rigor e critério técnico das decisões e a autonomia da autarquia, com sua resistência a interferências externas. Tratou-se de um isolamento sem negociações com atores externos, cujas características e resultados foram já alvo de vários trabalhos, inclusive de outro texto meu publicado neste blogue, em 12/06/2020 ("OS ULTIMATOS DE JAIR MESSIAS BOLSONARO AO IPHAN E OS VELHOS MALES DA AUTARQUIA PÚBLICA FEDERAL: a verdadeira questão não é conjuntural, mas sim estrutural"). Leandro Grass contrapõe, a esta tradição, uma politização sem precedentes na atuação do IPHAN, mesmo em contraste com a presente no governo Bolsonaro; trata-se, seguindo-se a fala do presidente do IPHAN, de se contrapor à "extrema direita" e seu "pensamento nazista".

Nesta linha, é comum a publicação de Leandro Grass com políticos eleitos e ocupantes de cargos importantes no governo federal, ao passo que não se verifica a mesma "vontade" com integrantes da vertente patrimonial. Esta politização do IPHAN, visível em sua comunicação e na de seu presidente, é inegável. Trará apoio externo à autarquia federal, ou se trata, apenas, da promoção de seu dirigente? A ver. Prejudicará a autonomia e o elevado rigor técnico do IPHAN? A ver, também. Para esta segunda pergunta, o caso do Pão de Açúcar, objeto de texto de Sonia Rabello, publicado neste blogue em 21/04/2023, pode começar a formar uma resposta ("O caso da mutilação do Pão de Açúcar, no Rio").

III. são listadas e celebradas obras e entregas do IPHAN, as quais contam, quase sempre, com um pequeno "detalhe", a saber: elas foram de responsabilidade, em sua maioria, de governos passados, notadamente o governo Bolsonaro. No caso do restauro de grandes monumentos arquitetônicos, a exemplo da Igreja de São Pedro dos Clérigos (Recife, Estado de Pernambuco) e da Fortaleza de Santo Antônio de Ratones (Florianópolis, Estado de Santa Catarina), o envolvimento do atual governo quase se resumiu a entrega das obras e pagamento dos trabalhos finais;

Ou seja, a pretensa retomada - ou volta - das políticas patrimoniais tem sido defendida, tomando-se como base a conclusão de obras pontuais, as quais estavam já em curso, cujo início e grosso dos trabalhos foram de responsabilidade de governos passados. No caso da Igreja de São Pedro dos Clérigos, o início das obras ocorreu em 2013; a falta de recursos nos dois últimos governos petistas protelou os trabalhos de restauro, os quais foram feitos, em grande monta, nos governos Temer e Bolsonaro. Foram necessários 10 anos para o restauro de um único monumento, por mais que se trate de um dos mais importantes do Brasil Colônia (1500-1822).

E, por fim, temos o seguinte ponto:

IV. o anúncio de medidas realmente importantes, no sentido de dar um novo rumo às políticas patrimoniais, concentra-se nas redes sociais do atual presidente do IPHAN, em publicações de difícil avaliação e decifração práticas.

Contudo, Leandro Grass anuncia, apenas, que se está trabalhando muito, arduamente, e que o patrimônio cultural é um importante instrumento de desenvolvimento e de redução das desigualdades. A situação lembra, tristemente, a constrangedora entrevista de Mário Luís Frias ao programa Os Pingos nos Is, então composto por uma bancada de jornalistas e comentaristas simpáticos ao governo Bolsonaro, feita pouco tempo depois de ter sido nomeado Secretário Especial da Cultura. Instado a apresentar seus projetos, o entrevistado começou a repetir que estava a trabalhar muito, arduamente, mas sem conseguir expor ações e projetos específicos.

De concreto, no que concerne a programas e projetos estruturadores, Leandro Grass anunciou, apenas, o pedido formal para a convocação de 25% do cadastro de reserva do último concurso do IPHAN, o que tem caráter emergencial à autarquia federal, depauperada de recursos humanos e econômico-financeiros. Per ipsum, trata-se de algo muito importante. No geral, passados quase quatro meses de governo Lula 3, é muito, muito pouco.

Em texto anterior publicado neste blogue, em 23/08/2023 ("E O PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL? O extraordinário e enigmático silêncio do Governo Bolsonaro acerca do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e das políticas patrimoniais brasileiras, ou o esquisito caso de um nacionalismo que, solenemente, ignora o patrimônio, a memória e a identidade nacional"), discuti, conjuntamente com Renato Eliseu Costa e Bárbara Rodarte de Paula, o que precisa ser feito, a fim de (re)estruturar as políticas patrimoniais brasileiras. Cumpre-me, neste espaço, centrar-me em um ponto específico, o qual pode retirar o relativo marasmo presente no atual governo federal, na seara patrimonial.

Se Leandro Grass resolver ler e avaliar programas e projetos de governos passados, ele encontrará um que é, provavelmente, o mais bem discutido, planejado e formulado das políticas patrimoniais brasileiras, desde - para utilizar o mito de origem do IPHAN - o documento administrativo do Conde de Galvêas, datado de 1742, no qual o vice-rei do Brasil defende a preservação do Palácio das Duas Torres, marco do domínio holandês de parte da Grande Região Nordeste. Maria Cecília Londres Fonseca lembra-nos deste caso, assim como ressalto que o palácio supracitado não escapou da ruína e obliteração.

Trata-se do PAC-CH, versão 2009, quando Luiz Inácio Lula da Silva era presidente do Brasil. Para que "inventar", se o PAC-CH contempla o seguinte:

  1. O PAC-CH beneficiou-se da revisão de programas passados, notadamente o Programa de Reconstrução de Cidades Históricas do Nordeste, com sua utilização para fins turísticos (PCH) e o Programa Monumenta, aproveitando seus pontos positivos, e revisando suas falhas (inúmeras, no caso do segundo);
  2. O PAC-CH foi bem recebido por técnicos, dirigentes e ex-dirigentes do IPHAN, e encontrou boa receptividade junto à comunidade científica que estuda o patrimônio cultural. É um programa bem avaliado por quem trabalha na seara patrimonial;
  3. Ele permite envolver outras áreas do governo e firmas estatais importantes nas políticas patrimoniais brasileiras, ampliando sua base de apoio, e aumentando sua importância dentro da agenda governamental. Sem isto, é muito difícil que as políticas patrimoniais saiam da situação na qual se encontram.

Então, se "O Brasil voltou", que tal o PAC-CH, versão 2009, voltar, também, mesmo sem nunca ter sido (devidamente implantado)? Que se coloque na mesa, que se discuta, revise-o, e se busque os apoios para sua implantação.

Um dos problemas do PAC-CH foi ter sido publicado no penúltimo ano do governo Lula 2, nos estertores do período de alto crescimento econômico e de crescimento da capacidade de investimento do governo federal. No momento atual, corre-se risco similar; ter um programa apresentado na segunda metade do governo Lula 3, em uma seara vista como marginal na agenda pública efetiva, é meio caminho andado para resultar em (quase) nada.

Em resumo, é preciso colocar, novamente, o PAC-CH, versão 2009, na mesa. E propor um novo rumo para as políticas patrimoniais brasileiras, antes que a diferença com o cenário de "terra arrasada" do governo Bolsonaro fique, apenas, na retórica e no discurso.

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