Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

O papel dos servidores públicos no Estado democrático de direito


Por Redação
Fonte: arquivo pessoal.  

Gabriela Lotta, Professora de Administração Pública da FGV EAESP

Alexandre Gomide, Diretor de Altos Estudos da Enap

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Como os servidores públicos podem ajudar a fortalecer e proteger o Estado democrático de direito? Essa tem sido uma questão fundamental em vários países do mundo diante do crescimento dos governos populistas autoritários. Diversas nações, como Turquia, Hungria, Polônia, Venezuela, Israel, EUA sob Trump e Brasil sob Bolsonaro, testemunharam nos últimos anos um aumento de processos de autoritarismo que não se caracterizam por golpes de estado ou revoluções, mas sim por mudanças institucionais realizadas pelos próprios governantes eleitos, que utilizam seus mandatos para enfraquecer a democracia e suas instituições. A preocupação com o fortalecimento, defesa e manutenção da democracia tem levado vários pesquisadores a examinarem como a administração pública é mobilizada nesse processo e, de forma mais específica, o papel dos servidores públicos na contenção do retrocesso democrático. Retomando os estudos clássicos de Max Weber, esses autores demonstram como uma burocracia qualificada, vocacionada e imbuída de valores republicanos se torna um bastião essencial na luta contra o autoritarismo.

Há mais de um século, Max Weber via a burocracia como uma forma racional e eficiente de organização que poderia garantir a estabilidade e a continuidade do Estado, caracterizando assim o Estado moderno e os governos republicanos. Embora também tenha alertado sobre os riscos de um crescimento desenfreado da burocracia para o funcionamento organizacional e para as liberdades individuais em prol da eficiência (a "gaiola de ferro"), Weber argumentava que a burocracia pública era uma condição necessária para garantir a igualdade de tratamento e a justiça na administração pública em um Estado democrático, sem depender das preferências pessoais dos indivíduos envolvidos. Em outras palavras, as democracias precisam da burocracia pública, mas controlada pelos representantes eleitos pelo povo e pelas próprias leis. 

Mais recentemente, diversos trabalhos têm revisitado Weber para destacar os benefícios de uma burocracia profissionalizada e imparcial. Por exemplo, Francis Fukuyama, em seu livro "Political Order and Political Decay", argumenta que a burocracia pública é crucial para a manutenção e o avanço de uma democracia liberal. Fukuyama enfatiza a importância de uma burocracia na qual os indivíduos são recrutados com base em suas habilidades e qualificações, e não em suas conexões políticas ou relacionamentos pessoais. O autor sugere ainda que uma burocracia eficaz é uma condição necessária para a implementação de políticas efetivas e eficientes, o que, por sua vez, preserva a legitimidade do regime democrático. Paul Du Gay faz um argumento semelhante ao enfatizar que a burocracia pública é um pilar fundamental do funcionamento da democracia. No entanto, para tanto, ela deve estar comprometida com a ética republicana e comprometida com os princípios democráticos. Os burocratas públicos devem ter um senso de dever e dedicação à sua função pública.

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É nesse contexto que Guy Peters argumenta que o recente crescimento dos processos de retrocesso democrático no mundo é consequência de reformas gerenciais neoliberais que frágilzaram o Estado e a burocracia ao promover a flexibilização do serviço público por meio de contratações, terceirizações e privatizações. Como resultado, essas reformas minaram a capacidade de resistência da burocracia às práticas populistas autoritárias de desmonte de políticas na "guerra cultural".

Com base nessas argumentações e na análise dos desmontes e retrocessos vivenciados durante o governo Bolsonaro, defendemos que, para melhorar o Estado brasileiro, é preciso focar nas pessoas que fazem parte do Estado democrático: a burocracia pública. A burocracia é um componente fundamental do Estado Democrático de Direito, sendo responsável por garantir que o Estado opere com base em princípios constitucionais e legais.

Ter uma burocracia qualificada e motivada é fundamental para avançar na construção de um Estado Democrático de Direito no Brasil. Embora a burocracia federal brasileira já seja altamente qualificada e profissionalizada, o mesmo não se pode dizer das burocracias dos municípios e Estados da federação. Portanto, é necessário investir na qualificação e profissionalização dos servidores públicos em todos os níveis de governo.

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No entanto, a qualificação formal não é suficiente. É essencial alinhar a qualificação dos servidores públicos aos princípios democráticos e garantir que eles sejam motivados e comprometidos com sua profissão. Isso significa aprimorar a vocação da burocracia pública, garantindo que os servidores estejam comprometidos com os princípios e procedimentos do Estado Democrático de Direito e da Constituição Cidadã de 1988, como a separação dos poderes, a laicidade do Estado, os direitos e liberdades individuais, a proteção de minorias, a participação política, responsabilização e a transparência, entre outros. Resgatar a ética do serviço público é, portanto, um imperativo. Tal ética refere-se aos valores, ideais e objetivos que motivam os indivíduos a servir ao interesse público e contribuir para o bem-estar da sociedade, um desejo de defender os princípios de justiça, equidade e responsabilidade. Por isso, deve-se repensar repensar  as formas de seleção e formação de servidores públicos. Por exemplo, será que os editais de concursos públicos valorizam os candidatos com maior vocação para o serviço público?

Uma agenda de fortalecimento da gestão também é necessária, especialmente no que diz respeito ao perfil e atuação das lideranças no serviço público. Programas de formação e seleção de lideranças devem ser baseados no princípio da diversidade, nas competências para a gestão e na defesa de valores democráticos e republicanos. As lideranças devem ser capazes de resgatar os valores do serviço público em suas equipes, promovendo a vocação e a ética do serviço público como atividades contínuas de gestão.

Além disso, é fundamental construir mecanismos de proteção aos servidores públicos, de forma a garantir um ambiente seguro para o exercício de suas funções. Isso inclui a implementação de um sistema transparente de controles e responsabilização, para que os servidores tenham recursos disponíveis quando se encontrarem em situações de assédio, ameaças ou ilegalidades dentro da máquina pública. Os servidores públicos devem poder cumprir o devido processo legal e os princípios constitucionais em um ambiente seguro.

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Enfrentar esses desafios exigirá esforços conjuntos de diversos atores, como governos, instituições de ensino, organizações da sociedade civil e servidores públicos. Recrutar e formar servidores públicos vocacionados é um componente fundamental para fortalecer nosso Estado democrático de direito em tempos de retrocesso democrático e populismo reacionário em todo o mundo.

Fonte: arquivo pessoal.  

Gabriela Lotta, Professora de Administração Pública da FGV EAESP

Alexandre Gomide, Diretor de Altos Estudos da Enap

Como os servidores públicos podem ajudar a fortalecer e proteger o Estado democrático de direito? Essa tem sido uma questão fundamental em vários países do mundo diante do crescimento dos governos populistas autoritários. Diversas nações, como Turquia, Hungria, Polônia, Venezuela, Israel, EUA sob Trump e Brasil sob Bolsonaro, testemunharam nos últimos anos um aumento de processos de autoritarismo que não se caracterizam por golpes de estado ou revoluções, mas sim por mudanças institucionais realizadas pelos próprios governantes eleitos, que utilizam seus mandatos para enfraquecer a democracia e suas instituições. A preocupação com o fortalecimento, defesa e manutenção da democracia tem levado vários pesquisadores a examinarem como a administração pública é mobilizada nesse processo e, de forma mais específica, o papel dos servidores públicos na contenção do retrocesso democrático. Retomando os estudos clássicos de Max Weber, esses autores demonstram como uma burocracia qualificada, vocacionada e imbuída de valores republicanos se torna um bastião essencial na luta contra o autoritarismo.

Há mais de um século, Max Weber via a burocracia como uma forma racional e eficiente de organização que poderia garantir a estabilidade e a continuidade do Estado, caracterizando assim o Estado moderno e os governos republicanos. Embora também tenha alertado sobre os riscos de um crescimento desenfreado da burocracia para o funcionamento organizacional e para as liberdades individuais em prol da eficiência (a "gaiola de ferro"), Weber argumentava que a burocracia pública era uma condição necessária para garantir a igualdade de tratamento e a justiça na administração pública em um Estado democrático, sem depender das preferências pessoais dos indivíduos envolvidos. Em outras palavras, as democracias precisam da burocracia pública, mas controlada pelos representantes eleitos pelo povo e pelas próprias leis. 

Mais recentemente, diversos trabalhos têm revisitado Weber para destacar os benefícios de uma burocracia profissionalizada e imparcial. Por exemplo, Francis Fukuyama, em seu livro "Political Order and Political Decay", argumenta que a burocracia pública é crucial para a manutenção e o avanço de uma democracia liberal. Fukuyama enfatiza a importância de uma burocracia na qual os indivíduos são recrutados com base em suas habilidades e qualificações, e não em suas conexões políticas ou relacionamentos pessoais. O autor sugere ainda que uma burocracia eficaz é uma condição necessária para a implementação de políticas efetivas e eficientes, o que, por sua vez, preserva a legitimidade do regime democrático. Paul Du Gay faz um argumento semelhante ao enfatizar que a burocracia pública é um pilar fundamental do funcionamento da democracia. No entanto, para tanto, ela deve estar comprometida com a ética republicana e comprometida com os princípios democráticos. Os burocratas públicos devem ter um senso de dever e dedicação à sua função pública.

É nesse contexto que Guy Peters argumenta que o recente crescimento dos processos de retrocesso democrático no mundo é consequência de reformas gerenciais neoliberais que frágilzaram o Estado e a burocracia ao promover a flexibilização do serviço público por meio de contratações, terceirizações e privatizações. Como resultado, essas reformas minaram a capacidade de resistência da burocracia às práticas populistas autoritárias de desmonte de políticas na "guerra cultural".

Com base nessas argumentações e na análise dos desmontes e retrocessos vivenciados durante o governo Bolsonaro, defendemos que, para melhorar o Estado brasileiro, é preciso focar nas pessoas que fazem parte do Estado democrático: a burocracia pública. A burocracia é um componente fundamental do Estado Democrático de Direito, sendo responsável por garantir que o Estado opere com base em princípios constitucionais e legais.

Ter uma burocracia qualificada e motivada é fundamental para avançar na construção de um Estado Democrático de Direito no Brasil. Embora a burocracia federal brasileira já seja altamente qualificada e profissionalizada, o mesmo não se pode dizer das burocracias dos municípios e Estados da federação. Portanto, é necessário investir na qualificação e profissionalização dos servidores públicos em todos os níveis de governo.

No entanto, a qualificação formal não é suficiente. É essencial alinhar a qualificação dos servidores públicos aos princípios democráticos e garantir que eles sejam motivados e comprometidos com sua profissão. Isso significa aprimorar a vocação da burocracia pública, garantindo que os servidores estejam comprometidos com os princípios e procedimentos do Estado Democrático de Direito e da Constituição Cidadã de 1988, como a separação dos poderes, a laicidade do Estado, os direitos e liberdades individuais, a proteção de minorias, a participação política, responsabilização e a transparência, entre outros. Resgatar a ética do serviço público é, portanto, um imperativo. Tal ética refere-se aos valores, ideais e objetivos que motivam os indivíduos a servir ao interesse público e contribuir para o bem-estar da sociedade, um desejo de defender os princípios de justiça, equidade e responsabilidade. Por isso, deve-se repensar repensar  as formas de seleção e formação de servidores públicos. Por exemplo, será que os editais de concursos públicos valorizam os candidatos com maior vocação para o serviço público?

Uma agenda de fortalecimento da gestão também é necessária, especialmente no que diz respeito ao perfil e atuação das lideranças no serviço público. Programas de formação e seleção de lideranças devem ser baseados no princípio da diversidade, nas competências para a gestão e na defesa de valores democráticos e republicanos. As lideranças devem ser capazes de resgatar os valores do serviço público em suas equipes, promovendo a vocação e a ética do serviço público como atividades contínuas de gestão.

Além disso, é fundamental construir mecanismos de proteção aos servidores públicos, de forma a garantir um ambiente seguro para o exercício de suas funções. Isso inclui a implementação de um sistema transparente de controles e responsabilização, para que os servidores tenham recursos disponíveis quando se encontrarem em situações de assédio, ameaças ou ilegalidades dentro da máquina pública. Os servidores públicos devem poder cumprir o devido processo legal e os princípios constitucionais em um ambiente seguro.

Enfrentar esses desafios exigirá esforços conjuntos de diversos atores, como governos, instituições de ensino, organizações da sociedade civil e servidores públicos. Recrutar e formar servidores públicos vocacionados é um componente fundamental para fortalecer nosso Estado democrático de direito em tempos de retrocesso democrático e populismo reacionário em todo o mundo.

Fonte: arquivo pessoal.  

Gabriela Lotta, Professora de Administração Pública da FGV EAESP

Alexandre Gomide, Diretor de Altos Estudos da Enap

Como os servidores públicos podem ajudar a fortalecer e proteger o Estado democrático de direito? Essa tem sido uma questão fundamental em vários países do mundo diante do crescimento dos governos populistas autoritários. Diversas nações, como Turquia, Hungria, Polônia, Venezuela, Israel, EUA sob Trump e Brasil sob Bolsonaro, testemunharam nos últimos anos um aumento de processos de autoritarismo que não se caracterizam por golpes de estado ou revoluções, mas sim por mudanças institucionais realizadas pelos próprios governantes eleitos, que utilizam seus mandatos para enfraquecer a democracia e suas instituições. A preocupação com o fortalecimento, defesa e manutenção da democracia tem levado vários pesquisadores a examinarem como a administração pública é mobilizada nesse processo e, de forma mais específica, o papel dos servidores públicos na contenção do retrocesso democrático. Retomando os estudos clássicos de Max Weber, esses autores demonstram como uma burocracia qualificada, vocacionada e imbuída de valores republicanos se torna um bastião essencial na luta contra o autoritarismo.

Há mais de um século, Max Weber via a burocracia como uma forma racional e eficiente de organização que poderia garantir a estabilidade e a continuidade do Estado, caracterizando assim o Estado moderno e os governos republicanos. Embora também tenha alertado sobre os riscos de um crescimento desenfreado da burocracia para o funcionamento organizacional e para as liberdades individuais em prol da eficiência (a "gaiola de ferro"), Weber argumentava que a burocracia pública era uma condição necessária para garantir a igualdade de tratamento e a justiça na administração pública em um Estado democrático, sem depender das preferências pessoais dos indivíduos envolvidos. Em outras palavras, as democracias precisam da burocracia pública, mas controlada pelos representantes eleitos pelo povo e pelas próprias leis. 

Mais recentemente, diversos trabalhos têm revisitado Weber para destacar os benefícios de uma burocracia profissionalizada e imparcial. Por exemplo, Francis Fukuyama, em seu livro "Political Order and Political Decay", argumenta que a burocracia pública é crucial para a manutenção e o avanço de uma democracia liberal. Fukuyama enfatiza a importância de uma burocracia na qual os indivíduos são recrutados com base em suas habilidades e qualificações, e não em suas conexões políticas ou relacionamentos pessoais. O autor sugere ainda que uma burocracia eficaz é uma condição necessária para a implementação de políticas efetivas e eficientes, o que, por sua vez, preserva a legitimidade do regime democrático. Paul Du Gay faz um argumento semelhante ao enfatizar que a burocracia pública é um pilar fundamental do funcionamento da democracia. No entanto, para tanto, ela deve estar comprometida com a ética republicana e comprometida com os princípios democráticos. Os burocratas públicos devem ter um senso de dever e dedicação à sua função pública.

É nesse contexto que Guy Peters argumenta que o recente crescimento dos processos de retrocesso democrático no mundo é consequência de reformas gerenciais neoliberais que frágilzaram o Estado e a burocracia ao promover a flexibilização do serviço público por meio de contratações, terceirizações e privatizações. Como resultado, essas reformas minaram a capacidade de resistência da burocracia às práticas populistas autoritárias de desmonte de políticas na "guerra cultural".

Com base nessas argumentações e na análise dos desmontes e retrocessos vivenciados durante o governo Bolsonaro, defendemos que, para melhorar o Estado brasileiro, é preciso focar nas pessoas que fazem parte do Estado democrático: a burocracia pública. A burocracia é um componente fundamental do Estado Democrático de Direito, sendo responsável por garantir que o Estado opere com base em princípios constitucionais e legais.

Ter uma burocracia qualificada e motivada é fundamental para avançar na construção de um Estado Democrático de Direito no Brasil. Embora a burocracia federal brasileira já seja altamente qualificada e profissionalizada, o mesmo não se pode dizer das burocracias dos municípios e Estados da federação. Portanto, é necessário investir na qualificação e profissionalização dos servidores públicos em todos os níveis de governo.

No entanto, a qualificação formal não é suficiente. É essencial alinhar a qualificação dos servidores públicos aos princípios democráticos e garantir que eles sejam motivados e comprometidos com sua profissão. Isso significa aprimorar a vocação da burocracia pública, garantindo que os servidores estejam comprometidos com os princípios e procedimentos do Estado Democrático de Direito e da Constituição Cidadã de 1988, como a separação dos poderes, a laicidade do Estado, os direitos e liberdades individuais, a proteção de minorias, a participação política, responsabilização e a transparência, entre outros. Resgatar a ética do serviço público é, portanto, um imperativo. Tal ética refere-se aos valores, ideais e objetivos que motivam os indivíduos a servir ao interesse público e contribuir para o bem-estar da sociedade, um desejo de defender os princípios de justiça, equidade e responsabilidade. Por isso, deve-se repensar repensar  as formas de seleção e formação de servidores públicos. Por exemplo, será que os editais de concursos públicos valorizam os candidatos com maior vocação para o serviço público?

Uma agenda de fortalecimento da gestão também é necessária, especialmente no que diz respeito ao perfil e atuação das lideranças no serviço público. Programas de formação e seleção de lideranças devem ser baseados no princípio da diversidade, nas competências para a gestão e na defesa de valores democráticos e republicanos. As lideranças devem ser capazes de resgatar os valores do serviço público em suas equipes, promovendo a vocação e a ética do serviço público como atividades contínuas de gestão.

Além disso, é fundamental construir mecanismos de proteção aos servidores públicos, de forma a garantir um ambiente seguro para o exercício de suas funções. Isso inclui a implementação de um sistema transparente de controles e responsabilização, para que os servidores tenham recursos disponíveis quando se encontrarem em situações de assédio, ameaças ou ilegalidades dentro da máquina pública. Os servidores públicos devem poder cumprir o devido processo legal e os princípios constitucionais em um ambiente seguro.

Enfrentar esses desafios exigirá esforços conjuntos de diversos atores, como governos, instituições de ensino, organizações da sociedade civil e servidores públicos. Recrutar e formar servidores públicos vocacionados é um componente fundamental para fortalecer nosso Estado democrático de direito em tempos de retrocesso democrático e populismo reacionário em todo o mundo.

Fonte: arquivo pessoal.  

Gabriela Lotta, Professora de Administração Pública da FGV EAESP

Alexandre Gomide, Diretor de Altos Estudos da Enap

Como os servidores públicos podem ajudar a fortalecer e proteger o Estado democrático de direito? Essa tem sido uma questão fundamental em vários países do mundo diante do crescimento dos governos populistas autoritários. Diversas nações, como Turquia, Hungria, Polônia, Venezuela, Israel, EUA sob Trump e Brasil sob Bolsonaro, testemunharam nos últimos anos um aumento de processos de autoritarismo que não se caracterizam por golpes de estado ou revoluções, mas sim por mudanças institucionais realizadas pelos próprios governantes eleitos, que utilizam seus mandatos para enfraquecer a democracia e suas instituições. A preocupação com o fortalecimento, defesa e manutenção da democracia tem levado vários pesquisadores a examinarem como a administração pública é mobilizada nesse processo e, de forma mais específica, o papel dos servidores públicos na contenção do retrocesso democrático. Retomando os estudos clássicos de Max Weber, esses autores demonstram como uma burocracia qualificada, vocacionada e imbuída de valores republicanos se torna um bastião essencial na luta contra o autoritarismo.

Há mais de um século, Max Weber via a burocracia como uma forma racional e eficiente de organização que poderia garantir a estabilidade e a continuidade do Estado, caracterizando assim o Estado moderno e os governos republicanos. Embora também tenha alertado sobre os riscos de um crescimento desenfreado da burocracia para o funcionamento organizacional e para as liberdades individuais em prol da eficiência (a "gaiola de ferro"), Weber argumentava que a burocracia pública era uma condição necessária para garantir a igualdade de tratamento e a justiça na administração pública em um Estado democrático, sem depender das preferências pessoais dos indivíduos envolvidos. Em outras palavras, as democracias precisam da burocracia pública, mas controlada pelos representantes eleitos pelo povo e pelas próprias leis. 

Mais recentemente, diversos trabalhos têm revisitado Weber para destacar os benefícios de uma burocracia profissionalizada e imparcial. Por exemplo, Francis Fukuyama, em seu livro "Political Order and Political Decay", argumenta que a burocracia pública é crucial para a manutenção e o avanço de uma democracia liberal. Fukuyama enfatiza a importância de uma burocracia na qual os indivíduos são recrutados com base em suas habilidades e qualificações, e não em suas conexões políticas ou relacionamentos pessoais. O autor sugere ainda que uma burocracia eficaz é uma condição necessária para a implementação de políticas efetivas e eficientes, o que, por sua vez, preserva a legitimidade do regime democrático. Paul Du Gay faz um argumento semelhante ao enfatizar que a burocracia pública é um pilar fundamental do funcionamento da democracia. No entanto, para tanto, ela deve estar comprometida com a ética republicana e comprometida com os princípios democráticos. Os burocratas públicos devem ter um senso de dever e dedicação à sua função pública.

É nesse contexto que Guy Peters argumenta que o recente crescimento dos processos de retrocesso democrático no mundo é consequência de reformas gerenciais neoliberais que frágilzaram o Estado e a burocracia ao promover a flexibilização do serviço público por meio de contratações, terceirizações e privatizações. Como resultado, essas reformas minaram a capacidade de resistência da burocracia às práticas populistas autoritárias de desmonte de políticas na "guerra cultural".

Com base nessas argumentações e na análise dos desmontes e retrocessos vivenciados durante o governo Bolsonaro, defendemos que, para melhorar o Estado brasileiro, é preciso focar nas pessoas que fazem parte do Estado democrático: a burocracia pública. A burocracia é um componente fundamental do Estado Democrático de Direito, sendo responsável por garantir que o Estado opere com base em princípios constitucionais e legais.

Ter uma burocracia qualificada e motivada é fundamental para avançar na construção de um Estado Democrático de Direito no Brasil. Embora a burocracia federal brasileira já seja altamente qualificada e profissionalizada, o mesmo não se pode dizer das burocracias dos municípios e Estados da federação. Portanto, é necessário investir na qualificação e profissionalização dos servidores públicos em todos os níveis de governo.

No entanto, a qualificação formal não é suficiente. É essencial alinhar a qualificação dos servidores públicos aos princípios democráticos e garantir que eles sejam motivados e comprometidos com sua profissão. Isso significa aprimorar a vocação da burocracia pública, garantindo que os servidores estejam comprometidos com os princípios e procedimentos do Estado Democrático de Direito e da Constituição Cidadã de 1988, como a separação dos poderes, a laicidade do Estado, os direitos e liberdades individuais, a proteção de minorias, a participação política, responsabilização e a transparência, entre outros. Resgatar a ética do serviço público é, portanto, um imperativo. Tal ética refere-se aos valores, ideais e objetivos que motivam os indivíduos a servir ao interesse público e contribuir para o bem-estar da sociedade, um desejo de defender os princípios de justiça, equidade e responsabilidade. Por isso, deve-se repensar repensar  as formas de seleção e formação de servidores públicos. Por exemplo, será que os editais de concursos públicos valorizam os candidatos com maior vocação para o serviço público?

Uma agenda de fortalecimento da gestão também é necessária, especialmente no que diz respeito ao perfil e atuação das lideranças no serviço público. Programas de formação e seleção de lideranças devem ser baseados no princípio da diversidade, nas competências para a gestão e na defesa de valores democráticos e republicanos. As lideranças devem ser capazes de resgatar os valores do serviço público em suas equipes, promovendo a vocação e a ética do serviço público como atividades contínuas de gestão.

Além disso, é fundamental construir mecanismos de proteção aos servidores públicos, de forma a garantir um ambiente seguro para o exercício de suas funções. Isso inclui a implementação de um sistema transparente de controles e responsabilização, para que os servidores tenham recursos disponíveis quando se encontrarem em situações de assédio, ameaças ou ilegalidades dentro da máquina pública. Os servidores públicos devem poder cumprir o devido processo legal e os princípios constitucionais em um ambiente seguro.

Enfrentar esses desafios exigirá esforços conjuntos de diversos atores, como governos, instituições de ensino, organizações da sociedade civil e servidores públicos. Recrutar e formar servidores públicos vocacionados é um componente fundamental para fortalecer nosso Estado democrático de direito em tempos de retrocesso democrático e populismo reacionário em todo o mundo.

Fonte: arquivo pessoal.  

Gabriela Lotta, Professora de Administração Pública da FGV EAESP

Alexandre Gomide, Diretor de Altos Estudos da Enap

Como os servidores públicos podem ajudar a fortalecer e proteger o Estado democrático de direito? Essa tem sido uma questão fundamental em vários países do mundo diante do crescimento dos governos populistas autoritários. Diversas nações, como Turquia, Hungria, Polônia, Venezuela, Israel, EUA sob Trump e Brasil sob Bolsonaro, testemunharam nos últimos anos um aumento de processos de autoritarismo que não se caracterizam por golpes de estado ou revoluções, mas sim por mudanças institucionais realizadas pelos próprios governantes eleitos, que utilizam seus mandatos para enfraquecer a democracia e suas instituições. A preocupação com o fortalecimento, defesa e manutenção da democracia tem levado vários pesquisadores a examinarem como a administração pública é mobilizada nesse processo e, de forma mais específica, o papel dos servidores públicos na contenção do retrocesso democrático. Retomando os estudos clássicos de Max Weber, esses autores demonstram como uma burocracia qualificada, vocacionada e imbuída de valores republicanos se torna um bastião essencial na luta contra o autoritarismo.

Há mais de um século, Max Weber via a burocracia como uma forma racional e eficiente de organização que poderia garantir a estabilidade e a continuidade do Estado, caracterizando assim o Estado moderno e os governos republicanos. Embora também tenha alertado sobre os riscos de um crescimento desenfreado da burocracia para o funcionamento organizacional e para as liberdades individuais em prol da eficiência (a "gaiola de ferro"), Weber argumentava que a burocracia pública era uma condição necessária para garantir a igualdade de tratamento e a justiça na administração pública em um Estado democrático, sem depender das preferências pessoais dos indivíduos envolvidos. Em outras palavras, as democracias precisam da burocracia pública, mas controlada pelos representantes eleitos pelo povo e pelas próprias leis. 

Mais recentemente, diversos trabalhos têm revisitado Weber para destacar os benefícios de uma burocracia profissionalizada e imparcial. Por exemplo, Francis Fukuyama, em seu livro "Political Order and Political Decay", argumenta que a burocracia pública é crucial para a manutenção e o avanço de uma democracia liberal. Fukuyama enfatiza a importância de uma burocracia na qual os indivíduos são recrutados com base em suas habilidades e qualificações, e não em suas conexões políticas ou relacionamentos pessoais. O autor sugere ainda que uma burocracia eficaz é uma condição necessária para a implementação de políticas efetivas e eficientes, o que, por sua vez, preserva a legitimidade do regime democrático. Paul Du Gay faz um argumento semelhante ao enfatizar que a burocracia pública é um pilar fundamental do funcionamento da democracia. No entanto, para tanto, ela deve estar comprometida com a ética republicana e comprometida com os princípios democráticos. Os burocratas públicos devem ter um senso de dever e dedicação à sua função pública.

É nesse contexto que Guy Peters argumenta que o recente crescimento dos processos de retrocesso democrático no mundo é consequência de reformas gerenciais neoliberais que frágilzaram o Estado e a burocracia ao promover a flexibilização do serviço público por meio de contratações, terceirizações e privatizações. Como resultado, essas reformas minaram a capacidade de resistência da burocracia às práticas populistas autoritárias de desmonte de políticas na "guerra cultural".

Com base nessas argumentações e na análise dos desmontes e retrocessos vivenciados durante o governo Bolsonaro, defendemos que, para melhorar o Estado brasileiro, é preciso focar nas pessoas que fazem parte do Estado democrático: a burocracia pública. A burocracia é um componente fundamental do Estado Democrático de Direito, sendo responsável por garantir que o Estado opere com base em princípios constitucionais e legais.

Ter uma burocracia qualificada e motivada é fundamental para avançar na construção de um Estado Democrático de Direito no Brasil. Embora a burocracia federal brasileira já seja altamente qualificada e profissionalizada, o mesmo não se pode dizer das burocracias dos municípios e Estados da federação. Portanto, é necessário investir na qualificação e profissionalização dos servidores públicos em todos os níveis de governo.

No entanto, a qualificação formal não é suficiente. É essencial alinhar a qualificação dos servidores públicos aos princípios democráticos e garantir que eles sejam motivados e comprometidos com sua profissão. Isso significa aprimorar a vocação da burocracia pública, garantindo que os servidores estejam comprometidos com os princípios e procedimentos do Estado Democrático de Direito e da Constituição Cidadã de 1988, como a separação dos poderes, a laicidade do Estado, os direitos e liberdades individuais, a proteção de minorias, a participação política, responsabilização e a transparência, entre outros. Resgatar a ética do serviço público é, portanto, um imperativo. Tal ética refere-se aos valores, ideais e objetivos que motivam os indivíduos a servir ao interesse público e contribuir para o bem-estar da sociedade, um desejo de defender os princípios de justiça, equidade e responsabilidade. Por isso, deve-se repensar repensar  as formas de seleção e formação de servidores públicos. Por exemplo, será que os editais de concursos públicos valorizam os candidatos com maior vocação para o serviço público?

Uma agenda de fortalecimento da gestão também é necessária, especialmente no que diz respeito ao perfil e atuação das lideranças no serviço público. Programas de formação e seleção de lideranças devem ser baseados no princípio da diversidade, nas competências para a gestão e na defesa de valores democráticos e republicanos. As lideranças devem ser capazes de resgatar os valores do serviço público em suas equipes, promovendo a vocação e a ética do serviço público como atividades contínuas de gestão.

Além disso, é fundamental construir mecanismos de proteção aos servidores públicos, de forma a garantir um ambiente seguro para o exercício de suas funções. Isso inclui a implementação de um sistema transparente de controles e responsabilização, para que os servidores tenham recursos disponíveis quando se encontrarem em situações de assédio, ameaças ou ilegalidades dentro da máquina pública. Os servidores públicos devem poder cumprir o devido processo legal e os princípios constitucionais em um ambiente seguro.

Enfrentar esses desafios exigirá esforços conjuntos de diversos atores, como governos, instituições de ensino, organizações da sociedade civil e servidores públicos. Recrutar e formar servidores públicos vocacionados é um componente fundamental para fortalecer nosso Estado democrático de direito em tempos de retrocesso democrático e populismo reacionário em todo o mundo.

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