Camila Fernandes, Pós-doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ) e Professora substituta no Departamento de Antropologia da UFBA. Doutora em Antropologia Social (PPGAS/MN/UFRJ) e Mestre em Antropologia (PPGA/UFF)
Camila Pierobon, Pós-doutoranda no Behner Stiefel Center for Brazilian Studies da Universidade Estadual de San Diego, Estados Unidos. Doutora em Ciências Sociais (UERJ)
Neste texto, apresentamos os principais argumentos que mobilizamos no artigo "Cuidar do outro, cuidar da água: gênero e raça na produção da cidade", publicado na Revista Estudos Avançados (v. 37, n. 107). Partimos da constatação empírica de que a água é distribuída desigualmente pela cidade do Rio de Janeiro e pela região metropolitana. Dessa constatação, elaboramos a seguinte pergunta: quais os efeitos de classe, raça e gênero que o fornecimento diferencial de água produz na vida dos moradores de periferias urbanas? Foi para responder a esta questão que nos juntamos para escrever o artigo.
Como os leitores poderão notar, embora ambas trabalhemos com famílias de baixa renda, o campo empírico de pesquisa é bastante distinto. O primeiro, desenvolvido por Camila Fernandes (2021), parte de sua etnografia realizada no Morro da Mineira, favela carioca que se localiza na região central da cidade. O segundo, realizado por Camila Pierobon (2021), parte do trabalho de campo realizado em um prédio outrora abandonado e posteriormente ocupado a fim de transformá-lo em moradia, também localizada no centro do Rio de Janeiro. A proposta do trabalho foi a de mostrar que o problema da intermitência da água não está restrito às favelas, ao contrário, ela afeta diferentes grupos de baixa renda, mesmo aqueles cuja infraestrutura urbana de fornecimento de água tem uma história centenária.
Durante os anos de trabalho de campo nessas duas localidades, testemunhamos inúmeras situações em que gerir a água era um problema cotidiano na vida das mulheres. Compreendemos que fazia parte da rotina doméstica das nossas interlocutoras a preocupação e o trabalho de manter galões cheios de água em casa, de garantir o pagamento da conta de água, de compartilhar água entre vizinhos, de negociar água com traficantes ou milicianos, de reivindicar o acesso à água aos órgãos do Estado. Quando percebemos a centralidade das mulheres nesta gestão ordinária da água, nós reelaboramos a pergunta que nos interessava e propomos a seguinte questão: o que as mulheres falam quando falam de água? Concluímos que essas mulheres, e em especial as mulheres negras, nos falam de situações de profunda exaustão e vulnerabilidade a partir do dever de prover o acesso à água.
As histórias que trazemos no artigo falam de "ajudas" e negociações entre afeto, sexo e cuidado, feitas a partir da necessidade de tomar um banho de chuveiro, como é o caso de Francine. Por não ter fornecimento regular de água e nem uma caixa d'água para armazenar água em momentos de "falta d'água", ela recorre a um de seus amigos e negocia a relação sexual como troca por um banho. Neste ponto, problematizamos que um simples banho, momento muito primário de cuidado de si, não está garantido às populações negras e migrantes da cidade, e nos ajuda a materializar a profundidade da violência lenta com que as pessoas se deparam em suas vidas. Uma segunda história é a de Leonor e o cuidado que ela dedica à sua mãe idosa e doente. Ela nos fala sobre como os processos de adoecimentos podem ser remediados ou agudizados pela falta de água potável ou quando a água que chega às casas está contaminada. Na dialética de presenças e ausências, também trazemos histórias em que a ação do poder público e do poder armado local aparecem a partir do fluxo intermitente das águas. Entendemos, assim, que a distribuição diferencial de água estrutura violências sociais profundas, e exigem dessas mulheres um intenso trabalho para sustentar a continuidade de suas vidas.
O texto faz parte de uma coletânea mais ampla focada nos estudos das infraestruturas urbanas. A proposta geral do dossiê é pensar as infraestruturas como parte intrínseca da produção das cidades. Coube a nós problematizar a ideia de que o acesso à água estaria garantido a todos os habitantes do Rio de Janeiro. Embora isso pareça óbvio, há uma invis ibilização dessa distribuição desigual de água, que parece estar se agravando desde que a companhia de água foi privatizada e a cidade fatiada entre diferentes empresas. O último dado existente sobre o abastecimento de água na cidade do Rio de Janeiro data de 2010 e mostra que mais de 90% da cidade, incluindo as favelas, são formalmente abastecidas por água (IBGE, 2012). Este dado esconde os graves problemas que o fornecimento diferencial de água provoca na vida dos moradores mais pobres da cidade.
Uma segunda questão que naturaliza a ideia de que todos teriam suas casas abastecidas com água é a existência da caixa d'água. Ao adentrar as favelas da cidade e tantos outros bairros de baixa renda, vemos milhares de caixas d'águas azuis sob as lajes. Esses pontos azuis nos dão a impressão de que o abastecimento de água é um assunto resolvido. Isso significa naturalizar que as casas estariam conectadas à rede pública de fornecimento de água e que seu abastecimento ocorre de forma estável. Na vida diária, não é isso o que acontece! No texto, discutimos a importância da água no curso da vida em conexão com os processos de fazer cidade e refletimos sobre o lugar das mulheres no limiar entre a falta e o excesso de água, por meio do manejo de baldes, galões, canos, mangueiras e bombas d'água na tentativa de abastecer suas casas.
A partir da leitura dos trabalhos que tratam das infraestruturas urbanas constatamos que são poucos os autores deste campo que problematizam a vida social das cidades na relação com o cuidado. Por outro lado, o campo de estudos sobre cuidado dedicou pouca atenção para a água como um elemento que importa nas práticas concretas do cuidar. Assim, o artigo é uma tentativa de colocar em diálogo esses dois campos de debates - cuidado e infraestrutura urbana - apresentando suas interconexões. Juntas, colocamo-nos o desafio de rever nosso próprio trabalho de campo para analisar os momentos em que a água aparece como um problema na relação com o cuidado e com o urbano.
A água é um dos objetos de estudos que conectam a vida íntima e doméstica à vida pública e política da cidade. O abastecimento de água se dá entre a falta e o excesso e faz que as mulheres construam relações constantes entre diferentes casas, entre casas da vizinhança e entre casas e órgãos públicos ou privados que administram a distribuição das infraestruturas pela cidade. Os caminhos postos em práticas pelas mulheres para gerir a água revelam experiências generificadas e racializadas na produção da vida compartilhada na cidade. Destacamos que há um enorme esforço individual e coletivo feito pelas mulheres para gerirem a água em suas casas. Demonstramos que a flutuação no fornecimento de água opera como bem de distinção entre aquelas pessoas abastecidas, que têm água, e aqueles que não têm água. Água é também objeto de acusações morais sobre mulheres e crianças que passam por duras experiências de violência. É pelo acesso, pela falta ou pelo excesso dos usos da água que mulheres são classificadas como "limpinhas" ou "sujas", elogiadas ou acusadas de cuidarem bem ou mal de suas casas e de seus filhos.
A partir das histórias mobilizadas no texto, destacamos que as infraestruturas urbanas analisadas são operadas por mulheres, mediadoras na linha de frente da gestão ordinária da água. A falta de água nos bairros de baixa renda da cidade do Rio de Janeiro é um problema de longa duração histórica que expõe processos de reprodução da pobreza, por meio dos marcadores sociais da diferença de classe, raça e gênero. Tais desafios atrelam a responsabilidade de prover água com a provisão de cuidado das casas e das pessoas. A precariedade infraestrutural é gerida pelos moradores por meio de gestos cotidianos de cuidado. Compreendemos, por fim, que a produção estatal da instabilidade na vida dos moradores de periferias se caracteriza como um projeto de poder, uma vez que é na vitalidade da casa que a garantia da vida é possível. O fornecimento desigual de água fala também da distribuição diferencial de outras infraestruturas, todos esses voltados ao cuidado das pessoas, a saber, luz, saneamento básico, moradia, educação, mobilidade, assistência social, saúde.
Nesse sentido, defendemos a discussão do cuidado na agenda política contemporânea, a partir de uma noção feminista e antirracista que inclua os fluxos de água e todos os serviços básicos em prol da vida no cotidiano das mulheres e famílias moradoras das periferias. As ciências sociais devem se mobilizar para que momentos muito essenciais, como tomar um banho, ou beber água potável, não continuem como privilégios naturalizados das populações brancas de classes médias e ricas de nossa sociedade. As rotas turvas, caóticas e ricas das águas mostram que esse é um caminho possível e incontornável.
* Este texto não expressa necessariamente as opiniões do Boletim Lua Nova ou do CEDEC ou do Gestão Política & Sociedade.
Publicado originalmente no Boletim Lua Nova em 27/04/2023
Referências bibliográficas
FERNANDES, Camila. 2021. Figuras da Causação: as novinhas, as mães nervosas e as mães que abandonam os filhos. Rio de Janeiro: Editora Telha.
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2012. Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE.
PIEROBON, Camila; FERNANDES, Camila. 2023. "Cuidar do outro, cuidar da água: gênero e raça na produção da cidade". Estudos Avançados, 37(107): 25-44.
PIEROBON. Camila. 2021. "Fazer a água circular: tempo e rotina na batalha pela habitação." Mana [online], v.27, n.2, e272203, 03 Set 2021. ISSN 1678-4944.
Mais sobre as autoras
Camila Fernandes é Pesquisadora do NuSEX - Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidades (PPGAS/MN/UFRJ) e do Laced - Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento. @ - fernandesv.camila@gmail.com / https://orcid.org/0000-0003-2446-1760.
Camila Pierobon foi bolsista Fapesp, processo: 2018/15928-2 e 2019/25691-2 a quem agradece o financiamento que permitiu a pesquisa. É pesquisadora junto aos grupos de pesquisa Distúrbio (UERJ/UFRRJ), Casa (IESP/UERJ), ResiduaLab (UERJ) e do Núcleo de Etnografias Urbanas (NEU/Cebrap). @ - cpierobon@sdsu.edu / https://orcid.org/0000-0001-7590-0773.