Sergio Tuthill Stanicia, Doutor em Direito (USP)
A tragédia recente provocada pelas fortes chuvas na região serrana do Rio de Janeiro chamou atenção, novamente, para o fato de que os descendentes do imperador Pedro II recebem um valor chamado laudêmio, que constitui um percentual de 2,5% sobre o valor das transações imobiliárias no município de Petrópolis.
Comumente referido na imprensa como "imposto do príncipe", ou "taxa do príncipe", a cobrança desse valor sempre gera justa indignação. Na última sexta-feira (18), por exemplo, o deputado federal Marcelo Freixo (PSB-RJ) apresentou projeto de lei objetivando reverter a cobrança do laudêmio para o poder público municipal.
A indignação é justa porque a monarquia foi abolida no Brasil em 1889, e veementemente rechaçada pela população brasileira no plebiscito realizado em 1993. Como é possível, então, que a família "imperial" tenha direito de cobrar um "imposto" até os dias de hoje?
A resposta a essa pergunta é que o laudêmio não é um imposto ou taxa. Ou seja, não diz respeito ao direito público, mas ao direito privado. Sua cobrança decorre da forma como é estruturada, juridicamente, a propriedade imobiliária em Petrópolis.
Na linguagem comum, quando dizemos que alguém é "dono" de um bem, normalmente imaginamos que essa pessoa tem o direito de propriedade sobre aquele bem. No entanto, o direito de propriedade é apenas um, o mais amplo, dos direitos reais que podem recair sobre alguma coisa.
O proprietário pode ceder a outra pessoa, de forma mais ou menos ampla, as faculdades de usar e fruir de um bem, móvel ou imóvel. Isso pode ocorrer por meio de contrato, como o de comodato ou de locação, mas também pode assumir a forma de direitos reais limitados, que estão elencados no artigo 1225 do Código Civil, e são oponíveis contra todos, sendo inclusive levados a registro.
No último caso, haverá pelo menos duas pessoas com direitos sobre o bem: a titular do direito real limitado e o "verdadeiro" proprietário, que terá as prerrogativas que restaram, descontadas as faculdades do titular do direito limitado. Um exemplo comum é o do usufruto vitalício. O usufrutuário tem a prerrogativa de usar e fruir do bem enquanto viver, mas não é o "dono" do bem. Não pode vendê-lo e, quando morrer, o bem retornará ao proprietário de direito, chamado nu-proprietário.
Algo semelhante ocorre em Petrópolis. Não se trata de usufruto, mas de um outro direito real limitado denominado enfiteuse, aforamento ou emprazamento. A família "imperial" pode cobrar o laudêmio porque é, de direito, a proprietária dos imóveis em Petrópolis, atualmente por meio de uma pessoa jurídica, a Companhia Imobiliária de Petrópolis.
Os "donos" de imóveis em Petrópolis, na realidade, não são proprietários, mas enfiteutas ou foreiros, que têm o "domínio útil" do bem, mas não o direito de propriedade. Isso significa que podem usufruir e transferir seus imóveis quase como se fossem proprietários, reservadas algumas prerrogativas, bastante limitadas, para o titular do "senhorio direto", na linguagem do Código Civil de 1916.
Entre essas prerrogativas, a Companhia Imobiliária de Petrópolis tem o direito de receber dois tipos de pagamento enquanto proprietária. O primeiro, menos conhecido, é um foro ou pensão anual. O segundo é o laudêmio, que é o valor devido quando da alienação do domínio útil.
A cobrança do laudêmio ocorre porque a família "imperial", enquanto titular do direito de propriedade, poderia optar por adquirir o domínio útil para si, desde que pelo mesmo preço e nas mesmas condições em que o bem foi posto à venda. Caso opte por não exercer essa preferência na compra, o que normalmente acontece, o laudêmio é devido.
É importante salientar que os descendentes de Pedro II não são os únicos proprietários de imóveis privados em regime de enfiteuse no Brasil. O Código Civil de 2002, atualmente em vigor, proibiu a constituição de novas enfiteuses, mas as existentes permanecem, e continuam sujeitas ao regime jurídico do Código Civil anterior, de 1916.
Também é importante salientar que há enfiteuses constituídas sobre bens públicos, cujo regime jurídico é estabelecido por leis especiais. É o caso dos terrenos de marinha, que pertencem à União.
Terrenos de marinha são aqueles situados a 33 metros, medidos em direção ao continente, da linha da preamar média do ano de 1831. A linha da preamar é a linha da maré-cheia. Como essa linha mudou bastante em 191 anos, inclusive com aterros em muitas cidades costeiras, vários "donos" de imóveis próximos à costa na realidade não são proprietários, mas titulares do domínio útil sobre imóveis pertencentes ao Estado.
Muito se tem debatido sobre as enfiteuses em Petrópolis nos últimos dias. Meu objetivo, com este artigo, foi o de esclarecer conceitos jurídicos que podem ser um tanto inacessíveis ao público de outras áreas. Propositalmente, optei por não tratar do histórico da questão ou emitir juízo de valor sobre projetos de lei, como o do deputado Marcelo Freixo. Sejam quais foram as escolhas políticas, creio que esclarecer os conceitos possa contribuir para um debate público mais informado.