Eduardo de Rezende Francisco é professor de Data Science e GeoAnalytics da FGV EAESP.
Rubens de Almeida é Engenheiro e Jornalista e hoje trabalha com dados e informações geolocalizadas para orientar estratégicas de empresas e instituições sociais.
29 de Maio é o Dia do Estatístico no Brasil. 29 de Maio é também o Dia do Geógrafo no Brasil. As datas coincidem, não por acaso, em homenagem a criação do Instituto Nacional de Estatística (INE) em 1936 que, no ano seguinte passou a se chamar Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), após a incorporação do Conselho Brasileiro de Geografia.
Escrevo-lhes, agora em companhia de Rubens de Almeida, revisitando texto "Inteligência Geográfica - Por que os líderes deveriam aprender Geografia?" publicado neste blog em Agosto de 2015.
Muita coisa aconteceu de lá para cá. A Estatística ganhou glamour e mais consciência analítica pelos decisores, por conta do Big Data, passando a se chamar, em muitos contextos, de "Ciência de Dados", incorporando competências de modelagem de informação e manipulação de dados em ambientes computacionais.
A Geografia ganhou um espaço fundamental no cenário nacional com a discussão em 2019 (em que estes autores tomaram partido) da correta aplicação do Censo Demográfico 2020 (que ao final foi adiado para 2021 devido à pandemia do COVID-19). Esse mesmo COVID-19 deu espaço a uma consciência coletiva fantástica de acompanhamento, monitoramento e previsão da disseminação do vírus através de mapas em diversas escalas em ampla discussão. Nosso artigo "Cadê o mapa do COVID-19?" de 19 de Março de 2020 neste blog ajudou a provocar essa discussão.
Mais recentemente, a discussão sobre o caráter ético da disponibilização dos nossos dados individuais (armazenados nas empresas de Telecom) para ajudar na produção de estatísticas para o combate ao COVID-19 teve diversos capítulos. Este blog trouxe muita contribuição para esse debate com o texto da Maria Alexandra Cunha de 30 de Abril de 2020 - "Eih, eih, concessionárias de serviços públicos, os dados são da cidade!".
Desafio o caro leitor a encontrar alguma informação do cotidiano que não tenha um componente geográfico. Tudo ou quase tudo que percebemos, armazenamos, discutimos, compartilhamos, aprendemos, tem alguma conexão geográfica com o mundo que nos cerca. Aproximadamente 70 a 80% das informações relevantes nos processos decisórios, pessoais ou profissionais, têm caracterização espacial, segundo o Gartner Group. De toda a sorte, esse número deve estar até muito subestimado...
Dada essa tremenda relevância, seria de se esperar altíssima utilização de sistemas de informação geográfica nas organizações, apoiando decisões de grande e pequena relevância. No entanto, seu uso é totalmente incipiente. Alguma dificuldade tecnológica ou de infraestrutura? Muito pelo contrário - o desafio é cultural.
O território é atualmente a plataforma na qual se inserem todas as dinâmicas que devem ser observadas ou geridas diretamente pelo gestor público ou privado. É através de uma visão holística do território, ou do espaço geográfico, que todas as idiossincrasias e relacionamentos entre os principais indicadores de gestão se estabelecem. É através da perspectiva territorial que o binômio "desempenho - risco" consegue melhor ser percebido através da proposição e acompanhamento de práticas empresariais e políticas públicas.
Compreender a distribuição de dados oriundos de fenômenos ocorridos no espaço geográfico constitui hoje um grande desafio para a elucidação de questões centrais em diversas áreas do conhecimento, seja em saúde, educação, meio-ambiente, políticas públicas, eleições, prevenção de desastres naturais ou mesmo em estudos de dinâmica urbana, social, serviços financeiros, seguros, infraestrutura, administração e marketing.
Tais estudos vêm se tornando cada vez mais comuns, devido à disponibilidade de Sistemas de Informação Geográfica (GIS), e também à necessidade de explicação da distribuição geográfica de problemas e variáveis de interação socioeconômica que modelos tradicionais e clássicos geralmente não endereçam.
As ferramentas quantitativas que manipulam dados espaciais permitem que se incorpore a natureza geográfica do fenômeno nas técnicas de exploração de dados e nos modelos estatísticos de inferência e associação entre variáveis. Sua adaptação e endereçamento aos principais problemas das organizações em geral, envolvendo dados internos e dados secundários de características sócio-econômico-demográficas, é muito alta. Mapa é uma linguagem universal, e vale mais do que mil palavras.
Recentemente, cunhou-se o termo "Inteligência Geográfica" como o uso da perspectiva geográfica nas tomadas de decisão pelas empresas, públicas e privadas. E mais ainda, por intermédio do grupo de estudos de Big Data e Geoinformação (GisBI), achamos apropriado rebatizá-lo de "GeoAnalytics".
Contudo, para a maioria das pessoas, geoinformação se resume a procurarmos o endereço de casa no Google Maps ou a utilizar o Waze no carro para se chegar rapidamente ao destino.
Essa dificuldade de percepção certamente tem origem histórica - nossa intuição espacial não foi devidamente alimentada durante nossa formação educacional.
Alexander Von Humboldt (1769-1859), que dizia que a Geografia é a ciência integrativa, Immanuel Kant (1724-1804), que dizia que a Geografia é uma propedêutica do conhecimento do mundo, e muitos outros pensadores que os sucederam, não foram capazes de impedir que a Universidade de Harvard, na década de 1940, erradicasse seu Departamento de Geografia. Tal movimento foi seguido por outras relevantes instituições de ensino norte-americanas e do resto do mundo. Por conseguinte, mais de setenta anos depois vivemos a consequência desse ato. A imensa maioria de cursos de administração, economia, engenharia e outros, inclusive do Brasil, passou a ter poucas disciplinas que permitisse discutir aspectos analíticos derivados de perspectivas geográficas. Inovações históricas como Imagens de Satélite, GPS, MapQuest, servidores digitais de mapas, ferramentas digitais de análise geográfica, Google Maps, ArcGIS não foram percebidas, experimentadas ou discutidas no contexto educacional de nossos jovens.
Com isso, o profissional que hoje está na liderança das grandes organizações não adquiriu repertório de "pensamento geográfico" suficiente em sua formação. As decisões estratégicas das organizações passam inevitavelmente pelo pensamento de suas lideranças, e são tomadas segundo seus modelos mentais de decisão. Se a perspectiva geográfica é ignorada ou pouco considerada, então ela praticamente inexiste naquela organização - não será suplantada por equipes técnicas excelentes, que atuam em áreas específicas, e que não têm uma visão holística e sistêmica que caracteriza a alta direção.
Movimentos recentes, no entanto, sinalizam boas perspectivas de mudança. Salas de decisão implantadas pelo poder público em esfera municipal e estadual, em muitas localidades do Brasil, utilizam um grande mapa do território de atuação como plataforma de visualização e análise e estão permitindo que seus times de operação (e decisão) aprendam essa nova linguagem. Empresas fornecedoras de dashboards e painéis de indicadores de gestão já apresentam mapas e visualizadores geográficos. Toda a discussão sobre cidades inteligentes, fortemente ancorada em mapas, e toda a discussão de modelos de disseminação do COVID-19, aproximando epidemiologistas, matemáticos, cientistas da computação, economistas e muitos outros pesquisadores sinalizam o fortalecimento dessas competências.
O profissional do presente e do futuro não pode, portanto, prescindir de uma consciência analítica que compreenda as dimensões estatística e geográfica. Devemos, portanto, incentivar o enfrentamento desse desafio cultural, em prol de uma visão de gestão territorial que beneficie a todos. O Spatial Data Science, contexto de "poder da informação" na sociedade atual, tem tremendo potencial de apropriação pelas organizações públicas e privadas. Que venham os líderes geográficos e estatísticos!