Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Por uma cidadania universal: imigrantes e refugiados em tempos de pandemia


Por Redação

Camila Barrero Breitenvieser, mestre em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa

Juliana Moreira de Souza Tubini, mestre em Administração Publica e Governo pela FGV EAESP e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP

Marta Ferreira Santos Farah, doutora em Sociologia pela USP, professora titular do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP e pesquisadora do CEAPG

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A pandemia do novo Coronavírus carrega consigo as marcas da desigualdade. Atinge de forma mais dura populações em situação de vulnerabilidade e, dentre elas, migrantes internacionais[1] e pessoas em situação de refúgio[2]. Comumente alijados dos sistemas de proteção social, negados o acesso a direitos, alvos de xenofobia e racismo, migrantes internacionais enfrentam ainda o desafio trazido pela indocumentação. Pauta historicamente defendida por movimentos de base e pelos próprios migrantes internacionais, o acesso à regularização documental é fundamental para a efetivação de direitos.

Há no mundo atualmente cerca de 272 milhões de migrantes internacionais. Destes, aproximadamente 33,8 milhões são refugiados e solicitantes de refúgio que tiveram de fugir de seu país de origem e que precisam de proteção internacional. As motivações para a mobilidade são diversas: compreendem contextos de instabilidade política, insegurança econômica, conflitos que se estendem por anos, busca por melhores condições de vida e até mesmo motivações de caráter subjetivo, como seguir um grande amor.

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No Brasil, há cerca de 1,2 milhão[3] de migrantes internacionais e 43 mil refugiados. Em São Paulo, cidade que concentra a maior parte dessas populações, são mais de 360 mil pessoas. As mais de 150 nacionalidades que vivem no município demonstram que os fluxos migratórios são diversos: bolivianos, haitianos, senegaleses, chineses e venezuelanos, expoentes de chegadas mais recentes, convivem com italianos, portugueses e espanhóis, chegadas expressivas dos séculos passados. No caso dos migrantes internacionais, os números, no entanto, refletem a quantidade de pessoas em situação documental regular, relativos a dados disponíveis pela Polícia Federal - e eles seriam bem maiores se contabilizassem também as pessoas indocumentadas.

No mundo, muitas dessas pessoas migram para países onde não têm direitos garantidos. Há lugares em que a cidadania e o acesso aos direitos civis, políticos, sociais e econômicos são condicionados à nacionalidade, o que significa que apenas quem nasceu naquele território ou se naturalizou é sujeito de direitos. A cidadania associada à nacionalidade impede o "direito a ter direitos" ou restringe as possibilidades de acessá-los, sobretudo para migrantes indocumentados.

Na contramão de políticas restritivas, o Brasil é um país que possui arcabouço legal que consolida o entendimento de que pessoas são sujeitas de direitos independentemente de sua nacionalidade. A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, a equiparação de direitos entre nacionais e não nacionais, prevalecendo o princípio da universalidade no acesso a políticas de saúde, previdência, assistência social e educação. Na mesma linha, as duas principais leis que regem a temática migratória, a Lei do Refúgio (Lei nº 9.474/1997) e a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), são consideradas avançadas por organismos internacionais, uma vez que promovem a inclusão social de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, independentemente de sua situação documental.

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Contudo, apesar da garantia legal, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio enfrentam grandes dificuldades no acesso às políticas sociais no Brasil. Para além dos desafios enfrentados por brasileiros em situação de vulnerabilidade, essas populações se deparam com elementos agravantes como o desconhecimento de seus direitos, barreiras linguísticas no atendimento, diferenças culturais, xenofobia, ausência de rede no país de destino e não familiaridade com os serviços públicos disponíveis, que em muito podem diferir dos serviços de seus países de origem. Além dessas, outra singularidade se destaca: a indocumentação.

A decisão, ou a necessidade, de residir em outro país que não seja o de nascimento exige a solicitação de permissão de entrada e permanência no país de destino. Mesmo nos casos em que o deslocamento para outro país é uma condição para que a vida daquela pessoa seja assegurada, ou seja, nos chamados deslocamentos forçados[4], cabe ao Estado receptor definir regras sobre a concessão de documentação e a efetivação da proteção internacional. Há situações, no entanto, em que migrantes internacionais não se ajustam a nenhuma das categorias migratórias previstas em lei e, por isso, não têm acesso à documentação que garanta sua regularização e permanência no país. Nestes casos, os migrantes ficam indocumentados.

Em outros casos, migrantes internacionais se encaixam em categorias de regularização migratória, mas os altos custos dos trâmites burocráticos para a obtenção de documentos os impede de consegui-los. Em outros ainda, por falta de informação ou por estarem submetidos a situações de exploração laboral, não acessam a documentação disponível[5]. Em todos esses casos, configura-se a indocumentação.

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No Brasil, a ausência de um documento de regularização migratória constitui mera infração administrativa, não sendo enquadrada como crime. A indocumentação, no entanto, traz consequências diretas à vida das pessoas. Embora no país o acesso a direitos sociais seja universal e independa da situação documental, a associação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio a um "não lugar" jurídico costuma ser usada como justificativa, mesmo que equivocada, para o não reconhecimento de seus direitos. Uma coisa é certa dizer: a indocumentação provoca a vulnerabilidade. A indocumentação é, portanto, um elemento agravante que perpassa todas as demais vulnerabilidades que migrantes internacionais enfrentam no país de destino. Por este motivo, a regularização migratória é uma pauta historicamente defendida pelos movimentos de migrantes. No atual cenário de pandemia, a regularização torna-se ainda mais urgente.

Mesmo em contextos não pandêmicos, a indocumentação é causa frequente do afastamento de migrantes internacionais dos serviços públicos, motivado ora pelo medo de deportação, ora pelo desconhecimento da possibilidade de acesso a tais serviços mesmo sem documentos brasileiros. Em contexto de pandemia, o afastamento dos serviços de saúde é um risco coletivo, pois pode dificultar o acesso ao tratamento adequado ou às medidas de prevenção e significar a piora das condições de saúde da pessoa migrante adoentada e a inefetividade do controle da doença na sociedade como um todo.

Recentemente, a Organização Internacional do Trabalho apontou para a necessidade da incorporação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio nas medidas emergenciais de garantia de renda adotadas pelos países no contexto da pandemia do novo coronavírus. A iniciativa brasileira de concessão do Auxílio Emergencial para pessoas desempregadas ou trabalhadores informais, extensível a migrantes internacionais e refugiados na mesma situação, foi reconhecida como uma boa prática.

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Contudo, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio que não têm documentação migratória ou com a documentação vencida têm enfrentado maiores dificuldades para obter o benefício social. Irregularidades no CPF causadas pelo registro incompleto de informações (como ausência do nome da mãe), desconhecimento dos funcionários da Caixa Econômica Federal e Correios de que essas populações também podem ser beneficiárias e o pagamento do auxílio atrelado à apresentação de documento brasileiro com foto são os principais entraves. Vale lembrar que de tempos em tempos as autorizações de residência precisam ser renovadas. No entanto, o órgão responsável, a Polícia Federal, suspendeu as emissões de documentos enquanto perdurar a pandemia. Embora tenham sido prorrogados os prazos de vencimento dos documentos até o final do estado de emergência, ainda assim as dificuldades se colocam ao migrante internacional que apresenta um documento com aparente data expirada.

As iniciativas para contornar as dificuldades enfrentadas por migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio residentes no Brasil são oriundas de diferentes atores da sociedade. Dentre elas, três iniciativas estão ligadas diretamente à questão da indocumentação e da renovação de documentos: a ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU), a Campanha "Regularização Já" e o Projeto de Lei nº 2699/2020 que tramita na Câmara dos Deputados.

A DPU ajuizou uma ação civil pública para solicitar providências junto à Caixa Econômica Federal e ao Banco Central do Brasil, órgãos ligados à concessão do benefício. Em ofício enviado a gerentes da CEF e dos Correios - situados na linha de frente da concessão do Auxílio Emergencial - a DPU relata as dificuldades que migrantes e refugiados residentes no país têm enfrentado para ter acesso ao benefício, destacando a exigência de documentação regular emitida no Brasil. A Defensoria alerta que a Lei de Migração vigente garante o direito à assistência social a todos os migrantes internacionais, independentemente da situação documental e denuncia que migrantes têm sido alijados deste direito por questões operacionais e por falta de normatização suficiente. Ou seja, o direito existe e está amparado em diversas leis (Constituição Federal, Lei de Migração, Lei do auxílio-emergencial), contudo a operacionalização das normas pela burocracia de nível de rua tem sido um entrave à garantia deste direito.

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Além desta, outra ação foi iniciada em maio deste ano, e tem se avolumado entre migrantes e apoiadores: a Campanha Regularização Imediata, Permamente e Incondicional para Imigrantes no Brasil, conhecida pela hashtag #RegularizaçãoJá. No Brasil, a campanha é protagonizada pelo coletivo de mulheres migrantes, baseado em São Paulo, Equipe de Base Warmis - Convergência de Culturas e apoiada por inúmeras organizações ligadas ao tema, como Presença na América Latina (PAL), Projeto Canicas, coletivo Si, Yo Puedo!, União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH) e Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas e Bissexuais (MILBI). A campanha consiste em pressionar autoridades pela regularização ampla de migrantes internacionais, uma vez que a indocumentação é considerada um dos principais empecilhos ao acesso aos mecanismos de apoio emergencial do Estado em tempos de pandemia. A iniciativa foi inspirada pela regularização de migrantes com pedidos de residência pendentes promovida pelo governo de Portugal que afirmou que a medida asseguraria o acesso destas pessoas à saúde, à segurança social e estabilidade no emprego e na habitação. Além de Portugal, outros países, como Espanha e Itália, tomaram medidas similares, o que beneficiou, inclusive, brasileiros residentes nesses locais.

Aqui, o tema se tornou matéria de um Projeto de Lei apresentado na Câmara Federal, PL nº 2699/2020, de autoria da bancada do PSOL, que "institui medidas emergenciais de regularização migratória no contexto da pandemia de Covid-19". O Projeto, elaborado em coordenação com as demandas dos movimentos e coletivos de migrantes que puxaram a Campanha #RegularizaçãoJá, aponta em sua justificativa que "além de prejudicar as condições de vida dessas pessoas, a irregularidade migratória ameaça a efetividade das políticas públicas no combate à pandemia e à crise econômica no país". O PL se apoia nas anistias já concedidas anteriormente no Brasil (1998 e 2009) e na Lei de Migração de 2017, que prevê a hipótese de acolhida humanitária para a autorização de residência no país, mecanismo que daria condições legais ao projeto.

A mobilização nas redes sociais pela Campanha #RegularizaçãoJá foi combinada com o lançamento da petição pública de apoio ao PL 2699/2020, solicitando sua aprovação urgente, devido ao caráter emergencial da pandemia. A campanha tem crescido e ganhado apoio internacional à regularização no Brasil, mobilizando organizações de migrantes em diferentes países.

No âmbito local, coletivos e organizações de migrantes e pessoas em situação de refúgio têm se apoiado mutuamente e buscado articular apoio a essas populações, com doações de cestas básicas e itens de proteção individual e higiene. Em São Paulo, a Prefeitura Municipal, por meio da Coordenação de Políticas para Migrantes e Promoção do Trabalho Decente, disponibilizou materiais informativos em diversas línguas sobre o acesso ao auxílio emergencial e orientações gerais sobre a Covid-19. Os atendimentos pelo Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI-SP) continuam, agora presencialmente em horários reduzidos ou remotamente. Também em São Paulo, as escolas municipais, além de pontos de referência no território, têm se tornado núcleos de solidariedade. Na zona Norte da capital, a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Vicente Paulo da Silva criou grupos de whatsapp com as famílias migrantes e as colocou em contato com o Projeto Canicas, que atua no atendimento a essa população.

Se o acesso efetivo a políticas e serviços públicos e a ampla regularização migratória já eram temas latentes, bandeiras de longa data dos movimentos de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, mais do que nunca, o momento que vivemos requer políticas universais, que não deixem ninguém para trás. Alienar pessoas do acesso a serviços públicos e a direitos sociais significa colocar em risco não apenas essas pessoas, mas a sociedade como um todo. Que esses árduos tempos sejam combustível para a consolidação de cidadanias universais e efetivação dos direitos humanos.

 

Este texto faz parte de uma série de artigos escritos por pesquisadores do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo (CEAPG) da FGV EAESP - https://ceapg.fgv.br.

 

 

[1] Migrantes internacionais são todas as pessoas que se deslocam para fora de seu lugar de residência habitual, através de uma fronteira internacional, de maneira temporária ou permanente, e por diversas razões. Designados como imigrantes na perspectiva do lugar de destino.

[2] Pessoas em situação de refúgio são refugiados e solicitantes de refúgio. Refugiado é a pessoa que está fora de seu país de origem devido a fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou opinião política, como também devido a grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. Solicitante de refúgio, por sua vez, é quem requereu o status de refugiado e aguarda parecer das autoridades.

[3] Segundo dados do Atlas Temático do Observatório das Migrações de 2020.

[4] Os deslocamentos forçados abragem pessoas em situação de refúgio, ou seja, refugiados e solicitantes de refúgio, deslocados internos e apátridas.

[5] É o caso, por exemplo, de migrantes oriundos de países do Mercosul que têm acesso à regularização migratória facilitada nos países do bloco.

Camila Barrero Breitenvieser, mestre em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa

Juliana Moreira de Souza Tubini, mestre em Administração Publica e Governo pela FGV EAESP e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP

Marta Ferreira Santos Farah, doutora em Sociologia pela USP, professora titular do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP e pesquisadora do CEAPG

 

A pandemia do novo Coronavírus carrega consigo as marcas da desigualdade. Atinge de forma mais dura populações em situação de vulnerabilidade e, dentre elas, migrantes internacionais[1] e pessoas em situação de refúgio[2]. Comumente alijados dos sistemas de proteção social, negados o acesso a direitos, alvos de xenofobia e racismo, migrantes internacionais enfrentam ainda o desafio trazido pela indocumentação. Pauta historicamente defendida por movimentos de base e pelos próprios migrantes internacionais, o acesso à regularização documental é fundamental para a efetivação de direitos.

Há no mundo atualmente cerca de 272 milhões de migrantes internacionais. Destes, aproximadamente 33,8 milhões são refugiados e solicitantes de refúgio que tiveram de fugir de seu país de origem e que precisam de proteção internacional. As motivações para a mobilidade são diversas: compreendem contextos de instabilidade política, insegurança econômica, conflitos que se estendem por anos, busca por melhores condições de vida e até mesmo motivações de caráter subjetivo, como seguir um grande amor.

No Brasil, há cerca de 1,2 milhão[3] de migrantes internacionais e 43 mil refugiados. Em São Paulo, cidade que concentra a maior parte dessas populações, são mais de 360 mil pessoas. As mais de 150 nacionalidades que vivem no município demonstram que os fluxos migratórios são diversos: bolivianos, haitianos, senegaleses, chineses e venezuelanos, expoentes de chegadas mais recentes, convivem com italianos, portugueses e espanhóis, chegadas expressivas dos séculos passados. No caso dos migrantes internacionais, os números, no entanto, refletem a quantidade de pessoas em situação documental regular, relativos a dados disponíveis pela Polícia Federal - e eles seriam bem maiores se contabilizassem também as pessoas indocumentadas.

No mundo, muitas dessas pessoas migram para países onde não têm direitos garantidos. Há lugares em que a cidadania e o acesso aos direitos civis, políticos, sociais e econômicos são condicionados à nacionalidade, o que significa que apenas quem nasceu naquele território ou se naturalizou é sujeito de direitos. A cidadania associada à nacionalidade impede o "direito a ter direitos" ou restringe as possibilidades de acessá-los, sobretudo para migrantes indocumentados.

Na contramão de políticas restritivas, o Brasil é um país que possui arcabouço legal que consolida o entendimento de que pessoas são sujeitas de direitos independentemente de sua nacionalidade. A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, a equiparação de direitos entre nacionais e não nacionais, prevalecendo o princípio da universalidade no acesso a políticas de saúde, previdência, assistência social e educação. Na mesma linha, as duas principais leis que regem a temática migratória, a Lei do Refúgio (Lei nº 9.474/1997) e a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), são consideradas avançadas por organismos internacionais, uma vez que promovem a inclusão social de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, independentemente de sua situação documental.

Contudo, apesar da garantia legal, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio enfrentam grandes dificuldades no acesso às políticas sociais no Brasil. Para além dos desafios enfrentados por brasileiros em situação de vulnerabilidade, essas populações se deparam com elementos agravantes como o desconhecimento de seus direitos, barreiras linguísticas no atendimento, diferenças culturais, xenofobia, ausência de rede no país de destino e não familiaridade com os serviços públicos disponíveis, que em muito podem diferir dos serviços de seus países de origem. Além dessas, outra singularidade se destaca: a indocumentação.

A decisão, ou a necessidade, de residir em outro país que não seja o de nascimento exige a solicitação de permissão de entrada e permanência no país de destino. Mesmo nos casos em que o deslocamento para outro país é uma condição para que a vida daquela pessoa seja assegurada, ou seja, nos chamados deslocamentos forçados[4], cabe ao Estado receptor definir regras sobre a concessão de documentação e a efetivação da proteção internacional. Há situações, no entanto, em que migrantes internacionais não se ajustam a nenhuma das categorias migratórias previstas em lei e, por isso, não têm acesso à documentação que garanta sua regularização e permanência no país. Nestes casos, os migrantes ficam indocumentados.

Em outros casos, migrantes internacionais se encaixam em categorias de regularização migratória, mas os altos custos dos trâmites burocráticos para a obtenção de documentos os impede de consegui-los. Em outros ainda, por falta de informação ou por estarem submetidos a situações de exploração laboral, não acessam a documentação disponível[5]. Em todos esses casos, configura-se a indocumentação.

No Brasil, a ausência de um documento de regularização migratória constitui mera infração administrativa, não sendo enquadrada como crime. A indocumentação, no entanto, traz consequências diretas à vida das pessoas. Embora no país o acesso a direitos sociais seja universal e independa da situação documental, a associação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio a um "não lugar" jurídico costuma ser usada como justificativa, mesmo que equivocada, para o não reconhecimento de seus direitos. Uma coisa é certa dizer: a indocumentação provoca a vulnerabilidade. A indocumentação é, portanto, um elemento agravante que perpassa todas as demais vulnerabilidades que migrantes internacionais enfrentam no país de destino. Por este motivo, a regularização migratória é uma pauta historicamente defendida pelos movimentos de migrantes. No atual cenário de pandemia, a regularização torna-se ainda mais urgente.

Mesmo em contextos não pandêmicos, a indocumentação é causa frequente do afastamento de migrantes internacionais dos serviços públicos, motivado ora pelo medo de deportação, ora pelo desconhecimento da possibilidade de acesso a tais serviços mesmo sem documentos brasileiros. Em contexto de pandemia, o afastamento dos serviços de saúde é um risco coletivo, pois pode dificultar o acesso ao tratamento adequado ou às medidas de prevenção e significar a piora das condições de saúde da pessoa migrante adoentada e a inefetividade do controle da doença na sociedade como um todo.

Recentemente, a Organização Internacional do Trabalho apontou para a necessidade da incorporação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio nas medidas emergenciais de garantia de renda adotadas pelos países no contexto da pandemia do novo coronavírus. A iniciativa brasileira de concessão do Auxílio Emergencial para pessoas desempregadas ou trabalhadores informais, extensível a migrantes internacionais e refugiados na mesma situação, foi reconhecida como uma boa prática.

Contudo, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio que não têm documentação migratória ou com a documentação vencida têm enfrentado maiores dificuldades para obter o benefício social. Irregularidades no CPF causadas pelo registro incompleto de informações (como ausência do nome da mãe), desconhecimento dos funcionários da Caixa Econômica Federal e Correios de que essas populações também podem ser beneficiárias e o pagamento do auxílio atrelado à apresentação de documento brasileiro com foto são os principais entraves. Vale lembrar que de tempos em tempos as autorizações de residência precisam ser renovadas. No entanto, o órgão responsável, a Polícia Federal, suspendeu as emissões de documentos enquanto perdurar a pandemia. Embora tenham sido prorrogados os prazos de vencimento dos documentos até o final do estado de emergência, ainda assim as dificuldades se colocam ao migrante internacional que apresenta um documento com aparente data expirada.

As iniciativas para contornar as dificuldades enfrentadas por migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio residentes no Brasil são oriundas de diferentes atores da sociedade. Dentre elas, três iniciativas estão ligadas diretamente à questão da indocumentação e da renovação de documentos: a ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU), a Campanha "Regularização Já" e o Projeto de Lei nº 2699/2020 que tramita na Câmara dos Deputados.

A DPU ajuizou uma ação civil pública para solicitar providências junto à Caixa Econômica Federal e ao Banco Central do Brasil, órgãos ligados à concessão do benefício. Em ofício enviado a gerentes da CEF e dos Correios - situados na linha de frente da concessão do Auxílio Emergencial - a DPU relata as dificuldades que migrantes e refugiados residentes no país têm enfrentado para ter acesso ao benefício, destacando a exigência de documentação regular emitida no Brasil. A Defensoria alerta que a Lei de Migração vigente garante o direito à assistência social a todos os migrantes internacionais, independentemente da situação documental e denuncia que migrantes têm sido alijados deste direito por questões operacionais e por falta de normatização suficiente. Ou seja, o direito existe e está amparado em diversas leis (Constituição Federal, Lei de Migração, Lei do auxílio-emergencial), contudo a operacionalização das normas pela burocracia de nível de rua tem sido um entrave à garantia deste direito.

Além desta, outra ação foi iniciada em maio deste ano, e tem se avolumado entre migrantes e apoiadores: a Campanha Regularização Imediata, Permamente e Incondicional para Imigrantes no Brasil, conhecida pela hashtag #RegularizaçãoJá. No Brasil, a campanha é protagonizada pelo coletivo de mulheres migrantes, baseado em São Paulo, Equipe de Base Warmis - Convergência de Culturas e apoiada por inúmeras organizações ligadas ao tema, como Presença na América Latina (PAL), Projeto Canicas, coletivo Si, Yo Puedo!, União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH) e Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas e Bissexuais (MILBI). A campanha consiste em pressionar autoridades pela regularização ampla de migrantes internacionais, uma vez que a indocumentação é considerada um dos principais empecilhos ao acesso aos mecanismos de apoio emergencial do Estado em tempos de pandemia. A iniciativa foi inspirada pela regularização de migrantes com pedidos de residência pendentes promovida pelo governo de Portugal que afirmou que a medida asseguraria o acesso destas pessoas à saúde, à segurança social e estabilidade no emprego e na habitação. Além de Portugal, outros países, como Espanha e Itália, tomaram medidas similares, o que beneficiou, inclusive, brasileiros residentes nesses locais.

Aqui, o tema se tornou matéria de um Projeto de Lei apresentado na Câmara Federal, PL nº 2699/2020, de autoria da bancada do PSOL, que "institui medidas emergenciais de regularização migratória no contexto da pandemia de Covid-19". O Projeto, elaborado em coordenação com as demandas dos movimentos e coletivos de migrantes que puxaram a Campanha #RegularizaçãoJá, aponta em sua justificativa que "além de prejudicar as condições de vida dessas pessoas, a irregularidade migratória ameaça a efetividade das políticas públicas no combate à pandemia e à crise econômica no país". O PL se apoia nas anistias já concedidas anteriormente no Brasil (1998 e 2009) e na Lei de Migração de 2017, que prevê a hipótese de acolhida humanitária para a autorização de residência no país, mecanismo que daria condições legais ao projeto.

A mobilização nas redes sociais pela Campanha #RegularizaçãoJá foi combinada com o lançamento da petição pública de apoio ao PL 2699/2020, solicitando sua aprovação urgente, devido ao caráter emergencial da pandemia. A campanha tem crescido e ganhado apoio internacional à regularização no Brasil, mobilizando organizações de migrantes em diferentes países.

No âmbito local, coletivos e organizações de migrantes e pessoas em situação de refúgio têm se apoiado mutuamente e buscado articular apoio a essas populações, com doações de cestas básicas e itens de proteção individual e higiene. Em São Paulo, a Prefeitura Municipal, por meio da Coordenação de Políticas para Migrantes e Promoção do Trabalho Decente, disponibilizou materiais informativos em diversas línguas sobre o acesso ao auxílio emergencial e orientações gerais sobre a Covid-19. Os atendimentos pelo Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI-SP) continuam, agora presencialmente em horários reduzidos ou remotamente. Também em São Paulo, as escolas municipais, além de pontos de referência no território, têm se tornado núcleos de solidariedade. Na zona Norte da capital, a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Vicente Paulo da Silva criou grupos de whatsapp com as famílias migrantes e as colocou em contato com o Projeto Canicas, que atua no atendimento a essa população.

Se o acesso efetivo a políticas e serviços públicos e a ampla regularização migratória já eram temas latentes, bandeiras de longa data dos movimentos de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, mais do que nunca, o momento que vivemos requer políticas universais, que não deixem ninguém para trás. Alienar pessoas do acesso a serviços públicos e a direitos sociais significa colocar em risco não apenas essas pessoas, mas a sociedade como um todo. Que esses árduos tempos sejam combustível para a consolidação de cidadanias universais e efetivação dos direitos humanos.

 

Este texto faz parte de uma série de artigos escritos por pesquisadores do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo (CEAPG) da FGV EAESP - https://ceapg.fgv.br.

 

 

[1] Migrantes internacionais são todas as pessoas que se deslocam para fora de seu lugar de residência habitual, através de uma fronteira internacional, de maneira temporária ou permanente, e por diversas razões. Designados como imigrantes na perspectiva do lugar de destino.

[2] Pessoas em situação de refúgio são refugiados e solicitantes de refúgio. Refugiado é a pessoa que está fora de seu país de origem devido a fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou opinião política, como também devido a grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. Solicitante de refúgio, por sua vez, é quem requereu o status de refugiado e aguarda parecer das autoridades.

[3] Segundo dados do Atlas Temático do Observatório das Migrações de 2020.

[4] Os deslocamentos forçados abragem pessoas em situação de refúgio, ou seja, refugiados e solicitantes de refúgio, deslocados internos e apátridas.

[5] É o caso, por exemplo, de migrantes oriundos de países do Mercosul que têm acesso à regularização migratória facilitada nos países do bloco.

Camila Barrero Breitenvieser, mestre em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa

Juliana Moreira de Souza Tubini, mestre em Administração Publica e Governo pela FGV EAESP e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP

Marta Ferreira Santos Farah, doutora em Sociologia pela USP, professora titular do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP e pesquisadora do CEAPG

 

A pandemia do novo Coronavírus carrega consigo as marcas da desigualdade. Atinge de forma mais dura populações em situação de vulnerabilidade e, dentre elas, migrantes internacionais[1] e pessoas em situação de refúgio[2]. Comumente alijados dos sistemas de proteção social, negados o acesso a direitos, alvos de xenofobia e racismo, migrantes internacionais enfrentam ainda o desafio trazido pela indocumentação. Pauta historicamente defendida por movimentos de base e pelos próprios migrantes internacionais, o acesso à regularização documental é fundamental para a efetivação de direitos.

Há no mundo atualmente cerca de 272 milhões de migrantes internacionais. Destes, aproximadamente 33,8 milhões são refugiados e solicitantes de refúgio que tiveram de fugir de seu país de origem e que precisam de proteção internacional. As motivações para a mobilidade são diversas: compreendem contextos de instabilidade política, insegurança econômica, conflitos que se estendem por anos, busca por melhores condições de vida e até mesmo motivações de caráter subjetivo, como seguir um grande amor.

No Brasil, há cerca de 1,2 milhão[3] de migrantes internacionais e 43 mil refugiados. Em São Paulo, cidade que concentra a maior parte dessas populações, são mais de 360 mil pessoas. As mais de 150 nacionalidades que vivem no município demonstram que os fluxos migratórios são diversos: bolivianos, haitianos, senegaleses, chineses e venezuelanos, expoentes de chegadas mais recentes, convivem com italianos, portugueses e espanhóis, chegadas expressivas dos séculos passados. No caso dos migrantes internacionais, os números, no entanto, refletem a quantidade de pessoas em situação documental regular, relativos a dados disponíveis pela Polícia Federal - e eles seriam bem maiores se contabilizassem também as pessoas indocumentadas.

No mundo, muitas dessas pessoas migram para países onde não têm direitos garantidos. Há lugares em que a cidadania e o acesso aos direitos civis, políticos, sociais e econômicos são condicionados à nacionalidade, o que significa que apenas quem nasceu naquele território ou se naturalizou é sujeito de direitos. A cidadania associada à nacionalidade impede o "direito a ter direitos" ou restringe as possibilidades de acessá-los, sobretudo para migrantes indocumentados.

Na contramão de políticas restritivas, o Brasil é um país que possui arcabouço legal que consolida o entendimento de que pessoas são sujeitas de direitos independentemente de sua nacionalidade. A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, a equiparação de direitos entre nacionais e não nacionais, prevalecendo o princípio da universalidade no acesso a políticas de saúde, previdência, assistência social e educação. Na mesma linha, as duas principais leis que regem a temática migratória, a Lei do Refúgio (Lei nº 9.474/1997) e a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), são consideradas avançadas por organismos internacionais, uma vez que promovem a inclusão social de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, independentemente de sua situação documental.

Contudo, apesar da garantia legal, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio enfrentam grandes dificuldades no acesso às políticas sociais no Brasil. Para além dos desafios enfrentados por brasileiros em situação de vulnerabilidade, essas populações se deparam com elementos agravantes como o desconhecimento de seus direitos, barreiras linguísticas no atendimento, diferenças culturais, xenofobia, ausência de rede no país de destino e não familiaridade com os serviços públicos disponíveis, que em muito podem diferir dos serviços de seus países de origem. Além dessas, outra singularidade se destaca: a indocumentação.

A decisão, ou a necessidade, de residir em outro país que não seja o de nascimento exige a solicitação de permissão de entrada e permanência no país de destino. Mesmo nos casos em que o deslocamento para outro país é uma condição para que a vida daquela pessoa seja assegurada, ou seja, nos chamados deslocamentos forçados[4], cabe ao Estado receptor definir regras sobre a concessão de documentação e a efetivação da proteção internacional. Há situações, no entanto, em que migrantes internacionais não se ajustam a nenhuma das categorias migratórias previstas em lei e, por isso, não têm acesso à documentação que garanta sua regularização e permanência no país. Nestes casos, os migrantes ficam indocumentados.

Em outros casos, migrantes internacionais se encaixam em categorias de regularização migratória, mas os altos custos dos trâmites burocráticos para a obtenção de documentos os impede de consegui-los. Em outros ainda, por falta de informação ou por estarem submetidos a situações de exploração laboral, não acessam a documentação disponível[5]. Em todos esses casos, configura-se a indocumentação.

No Brasil, a ausência de um documento de regularização migratória constitui mera infração administrativa, não sendo enquadrada como crime. A indocumentação, no entanto, traz consequências diretas à vida das pessoas. Embora no país o acesso a direitos sociais seja universal e independa da situação documental, a associação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio a um "não lugar" jurídico costuma ser usada como justificativa, mesmo que equivocada, para o não reconhecimento de seus direitos. Uma coisa é certa dizer: a indocumentação provoca a vulnerabilidade. A indocumentação é, portanto, um elemento agravante que perpassa todas as demais vulnerabilidades que migrantes internacionais enfrentam no país de destino. Por este motivo, a regularização migratória é uma pauta historicamente defendida pelos movimentos de migrantes. No atual cenário de pandemia, a regularização torna-se ainda mais urgente.

Mesmo em contextos não pandêmicos, a indocumentação é causa frequente do afastamento de migrantes internacionais dos serviços públicos, motivado ora pelo medo de deportação, ora pelo desconhecimento da possibilidade de acesso a tais serviços mesmo sem documentos brasileiros. Em contexto de pandemia, o afastamento dos serviços de saúde é um risco coletivo, pois pode dificultar o acesso ao tratamento adequado ou às medidas de prevenção e significar a piora das condições de saúde da pessoa migrante adoentada e a inefetividade do controle da doença na sociedade como um todo.

Recentemente, a Organização Internacional do Trabalho apontou para a necessidade da incorporação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio nas medidas emergenciais de garantia de renda adotadas pelos países no contexto da pandemia do novo coronavírus. A iniciativa brasileira de concessão do Auxílio Emergencial para pessoas desempregadas ou trabalhadores informais, extensível a migrantes internacionais e refugiados na mesma situação, foi reconhecida como uma boa prática.

Contudo, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio que não têm documentação migratória ou com a documentação vencida têm enfrentado maiores dificuldades para obter o benefício social. Irregularidades no CPF causadas pelo registro incompleto de informações (como ausência do nome da mãe), desconhecimento dos funcionários da Caixa Econômica Federal e Correios de que essas populações também podem ser beneficiárias e o pagamento do auxílio atrelado à apresentação de documento brasileiro com foto são os principais entraves. Vale lembrar que de tempos em tempos as autorizações de residência precisam ser renovadas. No entanto, o órgão responsável, a Polícia Federal, suspendeu as emissões de documentos enquanto perdurar a pandemia. Embora tenham sido prorrogados os prazos de vencimento dos documentos até o final do estado de emergência, ainda assim as dificuldades se colocam ao migrante internacional que apresenta um documento com aparente data expirada.

As iniciativas para contornar as dificuldades enfrentadas por migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio residentes no Brasil são oriundas de diferentes atores da sociedade. Dentre elas, três iniciativas estão ligadas diretamente à questão da indocumentação e da renovação de documentos: a ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU), a Campanha "Regularização Já" e o Projeto de Lei nº 2699/2020 que tramita na Câmara dos Deputados.

A DPU ajuizou uma ação civil pública para solicitar providências junto à Caixa Econômica Federal e ao Banco Central do Brasil, órgãos ligados à concessão do benefício. Em ofício enviado a gerentes da CEF e dos Correios - situados na linha de frente da concessão do Auxílio Emergencial - a DPU relata as dificuldades que migrantes e refugiados residentes no país têm enfrentado para ter acesso ao benefício, destacando a exigência de documentação regular emitida no Brasil. A Defensoria alerta que a Lei de Migração vigente garante o direito à assistência social a todos os migrantes internacionais, independentemente da situação documental e denuncia que migrantes têm sido alijados deste direito por questões operacionais e por falta de normatização suficiente. Ou seja, o direito existe e está amparado em diversas leis (Constituição Federal, Lei de Migração, Lei do auxílio-emergencial), contudo a operacionalização das normas pela burocracia de nível de rua tem sido um entrave à garantia deste direito.

Além desta, outra ação foi iniciada em maio deste ano, e tem se avolumado entre migrantes e apoiadores: a Campanha Regularização Imediata, Permamente e Incondicional para Imigrantes no Brasil, conhecida pela hashtag #RegularizaçãoJá. No Brasil, a campanha é protagonizada pelo coletivo de mulheres migrantes, baseado em São Paulo, Equipe de Base Warmis - Convergência de Culturas e apoiada por inúmeras organizações ligadas ao tema, como Presença na América Latina (PAL), Projeto Canicas, coletivo Si, Yo Puedo!, União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH) e Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas e Bissexuais (MILBI). A campanha consiste em pressionar autoridades pela regularização ampla de migrantes internacionais, uma vez que a indocumentação é considerada um dos principais empecilhos ao acesso aos mecanismos de apoio emergencial do Estado em tempos de pandemia. A iniciativa foi inspirada pela regularização de migrantes com pedidos de residência pendentes promovida pelo governo de Portugal que afirmou que a medida asseguraria o acesso destas pessoas à saúde, à segurança social e estabilidade no emprego e na habitação. Além de Portugal, outros países, como Espanha e Itália, tomaram medidas similares, o que beneficiou, inclusive, brasileiros residentes nesses locais.

Aqui, o tema se tornou matéria de um Projeto de Lei apresentado na Câmara Federal, PL nº 2699/2020, de autoria da bancada do PSOL, que "institui medidas emergenciais de regularização migratória no contexto da pandemia de Covid-19". O Projeto, elaborado em coordenação com as demandas dos movimentos e coletivos de migrantes que puxaram a Campanha #RegularizaçãoJá, aponta em sua justificativa que "além de prejudicar as condições de vida dessas pessoas, a irregularidade migratória ameaça a efetividade das políticas públicas no combate à pandemia e à crise econômica no país". O PL se apoia nas anistias já concedidas anteriormente no Brasil (1998 e 2009) e na Lei de Migração de 2017, que prevê a hipótese de acolhida humanitária para a autorização de residência no país, mecanismo que daria condições legais ao projeto.

A mobilização nas redes sociais pela Campanha #RegularizaçãoJá foi combinada com o lançamento da petição pública de apoio ao PL 2699/2020, solicitando sua aprovação urgente, devido ao caráter emergencial da pandemia. A campanha tem crescido e ganhado apoio internacional à regularização no Brasil, mobilizando organizações de migrantes em diferentes países.

No âmbito local, coletivos e organizações de migrantes e pessoas em situação de refúgio têm se apoiado mutuamente e buscado articular apoio a essas populações, com doações de cestas básicas e itens de proteção individual e higiene. Em São Paulo, a Prefeitura Municipal, por meio da Coordenação de Políticas para Migrantes e Promoção do Trabalho Decente, disponibilizou materiais informativos em diversas línguas sobre o acesso ao auxílio emergencial e orientações gerais sobre a Covid-19. Os atendimentos pelo Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI-SP) continuam, agora presencialmente em horários reduzidos ou remotamente. Também em São Paulo, as escolas municipais, além de pontos de referência no território, têm se tornado núcleos de solidariedade. Na zona Norte da capital, a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Vicente Paulo da Silva criou grupos de whatsapp com as famílias migrantes e as colocou em contato com o Projeto Canicas, que atua no atendimento a essa população.

Se o acesso efetivo a políticas e serviços públicos e a ampla regularização migratória já eram temas latentes, bandeiras de longa data dos movimentos de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, mais do que nunca, o momento que vivemos requer políticas universais, que não deixem ninguém para trás. Alienar pessoas do acesso a serviços públicos e a direitos sociais significa colocar em risco não apenas essas pessoas, mas a sociedade como um todo. Que esses árduos tempos sejam combustível para a consolidação de cidadanias universais e efetivação dos direitos humanos.

 

Este texto faz parte de uma série de artigos escritos por pesquisadores do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo (CEAPG) da FGV EAESP - https://ceapg.fgv.br.

 

 

[1] Migrantes internacionais são todas as pessoas que se deslocam para fora de seu lugar de residência habitual, através de uma fronteira internacional, de maneira temporária ou permanente, e por diversas razões. Designados como imigrantes na perspectiva do lugar de destino.

[2] Pessoas em situação de refúgio são refugiados e solicitantes de refúgio. Refugiado é a pessoa que está fora de seu país de origem devido a fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou opinião política, como também devido a grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. Solicitante de refúgio, por sua vez, é quem requereu o status de refugiado e aguarda parecer das autoridades.

[3] Segundo dados do Atlas Temático do Observatório das Migrações de 2020.

[4] Os deslocamentos forçados abragem pessoas em situação de refúgio, ou seja, refugiados e solicitantes de refúgio, deslocados internos e apátridas.

[5] É o caso, por exemplo, de migrantes oriundos de países do Mercosul que têm acesso à regularização migratória facilitada nos países do bloco.

Camila Barrero Breitenvieser, mestre em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa

Juliana Moreira de Souza Tubini, mestre em Administração Publica e Governo pela FGV EAESP e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP

Marta Ferreira Santos Farah, doutora em Sociologia pela USP, professora titular do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP e pesquisadora do CEAPG

 

A pandemia do novo Coronavírus carrega consigo as marcas da desigualdade. Atinge de forma mais dura populações em situação de vulnerabilidade e, dentre elas, migrantes internacionais[1] e pessoas em situação de refúgio[2]. Comumente alijados dos sistemas de proteção social, negados o acesso a direitos, alvos de xenofobia e racismo, migrantes internacionais enfrentam ainda o desafio trazido pela indocumentação. Pauta historicamente defendida por movimentos de base e pelos próprios migrantes internacionais, o acesso à regularização documental é fundamental para a efetivação de direitos.

Há no mundo atualmente cerca de 272 milhões de migrantes internacionais. Destes, aproximadamente 33,8 milhões são refugiados e solicitantes de refúgio que tiveram de fugir de seu país de origem e que precisam de proteção internacional. As motivações para a mobilidade são diversas: compreendem contextos de instabilidade política, insegurança econômica, conflitos que se estendem por anos, busca por melhores condições de vida e até mesmo motivações de caráter subjetivo, como seguir um grande amor.

No Brasil, há cerca de 1,2 milhão[3] de migrantes internacionais e 43 mil refugiados. Em São Paulo, cidade que concentra a maior parte dessas populações, são mais de 360 mil pessoas. As mais de 150 nacionalidades que vivem no município demonstram que os fluxos migratórios são diversos: bolivianos, haitianos, senegaleses, chineses e venezuelanos, expoentes de chegadas mais recentes, convivem com italianos, portugueses e espanhóis, chegadas expressivas dos séculos passados. No caso dos migrantes internacionais, os números, no entanto, refletem a quantidade de pessoas em situação documental regular, relativos a dados disponíveis pela Polícia Federal - e eles seriam bem maiores se contabilizassem também as pessoas indocumentadas.

No mundo, muitas dessas pessoas migram para países onde não têm direitos garantidos. Há lugares em que a cidadania e o acesso aos direitos civis, políticos, sociais e econômicos são condicionados à nacionalidade, o que significa que apenas quem nasceu naquele território ou se naturalizou é sujeito de direitos. A cidadania associada à nacionalidade impede o "direito a ter direitos" ou restringe as possibilidades de acessá-los, sobretudo para migrantes indocumentados.

Na contramão de políticas restritivas, o Brasil é um país que possui arcabouço legal que consolida o entendimento de que pessoas são sujeitas de direitos independentemente de sua nacionalidade. A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, a equiparação de direitos entre nacionais e não nacionais, prevalecendo o princípio da universalidade no acesso a políticas de saúde, previdência, assistência social e educação. Na mesma linha, as duas principais leis que regem a temática migratória, a Lei do Refúgio (Lei nº 9.474/1997) e a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), são consideradas avançadas por organismos internacionais, uma vez que promovem a inclusão social de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, independentemente de sua situação documental.

Contudo, apesar da garantia legal, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio enfrentam grandes dificuldades no acesso às políticas sociais no Brasil. Para além dos desafios enfrentados por brasileiros em situação de vulnerabilidade, essas populações se deparam com elementos agravantes como o desconhecimento de seus direitos, barreiras linguísticas no atendimento, diferenças culturais, xenofobia, ausência de rede no país de destino e não familiaridade com os serviços públicos disponíveis, que em muito podem diferir dos serviços de seus países de origem. Além dessas, outra singularidade se destaca: a indocumentação.

A decisão, ou a necessidade, de residir em outro país que não seja o de nascimento exige a solicitação de permissão de entrada e permanência no país de destino. Mesmo nos casos em que o deslocamento para outro país é uma condição para que a vida daquela pessoa seja assegurada, ou seja, nos chamados deslocamentos forçados[4], cabe ao Estado receptor definir regras sobre a concessão de documentação e a efetivação da proteção internacional. Há situações, no entanto, em que migrantes internacionais não se ajustam a nenhuma das categorias migratórias previstas em lei e, por isso, não têm acesso à documentação que garanta sua regularização e permanência no país. Nestes casos, os migrantes ficam indocumentados.

Em outros casos, migrantes internacionais se encaixam em categorias de regularização migratória, mas os altos custos dos trâmites burocráticos para a obtenção de documentos os impede de consegui-los. Em outros ainda, por falta de informação ou por estarem submetidos a situações de exploração laboral, não acessam a documentação disponível[5]. Em todos esses casos, configura-se a indocumentação.

No Brasil, a ausência de um documento de regularização migratória constitui mera infração administrativa, não sendo enquadrada como crime. A indocumentação, no entanto, traz consequências diretas à vida das pessoas. Embora no país o acesso a direitos sociais seja universal e independa da situação documental, a associação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio a um "não lugar" jurídico costuma ser usada como justificativa, mesmo que equivocada, para o não reconhecimento de seus direitos. Uma coisa é certa dizer: a indocumentação provoca a vulnerabilidade. A indocumentação é, portanto, um elemento agravante que perpassa todas as demais vulnerabilidades que migrantes internacionais enfrentam no país de destino. Por este motivo, a regularização migratória é uma pauta historicamente defendida pelos movimentos de migrantes. No atual cenário de pandemia, a regularização torna-se ainda mais urgente.

Mesmo em contextos não pandêmicos, a indocumentação é causa frequente do afastamento de migrantes internacionais dos serviços públicos, motivado ora pelo medo de deportação, ora pelo desconhecimento da possibilidade de acesso a tais serviços mesmo sem documentos brasileiros. Em contexto de pandemia, o afastamento dos serviços de saúde é um risco coletivo, pois pode dificultar o acesso ao tratamento adequado ou às medidas de prevenção e significar a piora das condições de saúde da pessoa migrante adoentada e a inefetividade do controle da doença na sociedade como um todo.

Recentemente, a Organização Internacional do Trabalho apontou para a necessidade da incorporação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio nas medidas emergenciais de garantia de renda adotadas pelos países no contexto da pandemia do novo coronavírus. A iniciativa brasileira de concessão do Auxílio Emergencial para pessoas desempregadas ou trabalhadores informais, extensível a migrantes internacionais e refugiados na mesma situação, foi reconhecida como uma boa prática.

Contudo, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio que não têm documentação migratória ou com a documentação vencida têm enfrentado maiores dificuldades para obter o benefício social. Irregularidades no CPF causadas pelo registro incompleto de informações (como ausência do nome da mãe), desconhecimento dos funcionários da Caixa Econômica Federal e Correios de que essas populações também podem ser beneficiárias e o pagamento do auxílio atrelado à apresentação de documento brasileiro com foto são os principais entraves. Vale lembrar que de tempos em tempos as autorizações de residência precisam ser renovadas. No entanto, o órgão responsável, a Polícia Federal, suspendeu as emissões de documentos enquanto perdurar a pandemia. Embora tenham sido prorrogados os prazos de vencimento dos documentos até o final do estado de emergência, ainda assim as dificuldades se colocam ao migrante internacional que apresenta um documento com aparente data expirada.

As iniciativas para contornar as dificuldades enfrentadas por migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio residentes no Brasil são oriundas de diferentes atores da sociedade. Dentre elas, três iniciativas estão ligadas diretamente à questão da indocumentação e da renovação de documentos: a ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU), a Campanha "Regularização Já" e o Projeto de Lei nº 2699/2020 que tramita na Câmara dos Deputados.

A DPU ajuizou uma ação civil pública para solicitar providências junto à Caixa Econômica Federal e ao Banco Central do Brasil, órgãos ligados à concessão do benefício. Em ofício enviado a gerentes da CEF e dos Correios - situados na linha de frente da concessão do Auxílio Emergencial - a DPU relata as dificuldades que migrantes e refugiados residentes no país têm enfrentado para ter acesso ao benefício, destacando a exigência de documentação regular emitida no Brasil. A Defensoria alerta que a Lei de Migração vigente garante o direito à assistência social a todos os migrantes internacionais, independentemente da situação documental e denuncia que migrantes têm sido alijados deste direito por questões operacionais e por falta de normatização suficiente. Ou seja, o direito existe e está amparado em diversas leis (Constituição Federal, Lei de Migração, Lei do auxílio-emergencial), contudo a operacionalização das normas pela burocracia de nível de rua tem sido um entrave à garantia deste direito.

Além desta, outra ação foi iniciada em maio deste ano, e tem se avolumado entre migrantes e apoiadores: a Campanha Regularização Imediata, Permamente e Incondicional para Imigrantes no Brasil, conhecida pela hashtag #RegularizaçãoJá. No Brasil, a campanha é protagonizada pelo coletivo de mulheres migrantes, baseado em São Paulo, Equipe de Base Warmis - Convergência de Culturas e apoiada por inúmeras organizações ligadas ao tema, como Presença na América Latina (PAL), Projeto Canicas, coletivo Si, Yo Puedo!, União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH) e Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas e Bissexuais (MILBI). A campanha consiste em pressionar autoridades pela regularização ampla de migrantes internacionais, uma vez que a indocumentação é considerada um dos principais empecilhos ao acesso aos mecanismos de apoio emergencial do Estado em tempos de pandemia. A iniciativa foi inspirada pela regularização de migrantes com pedidos de residência pendentes promovida pelo governo de Portugal que afirmou que a medida asseguraria o acesso destas pessoas à saúde, à segurança social e estabilidade no emprego e na habitação. Além de Portugal, outros países, como Espanha e Itália, tomaram medidas similares, o que beneficiou, inclusive, brasileiros residentes nesses locais.

Aqui, o tema se tornou matéria de um Projeto de Lei apresentado na Câmara Federal, PL nº 2699/2020, de autoria da bancada do PSOL, que "institui medidas emergenciais de regularização migratória no contexto da pandemia de Covid-19". O Projeto, elaborado em coordenação com as demandas dos movimentos e coletivos de migrantes que puxaram a Campanha #RegularizaçãoJá, aponta em sua justificativa que "além de prejudicar as condições de vida dessas pessoas, a irregularidade migratória ameaça a efetividade das políticas públicas no combate à pandemia e à crise econômica no país". O PL se apoia nas anistias já concedidas anteriormente no Brasil (1998 e 2009) e na Lei de Migração de 2017, que prevê a hipótese de acolhida humanitária para a autorização de residência no país, mecanismo que daria condições legais ao projeto.

A mobilização nas redes sociais pela Campanha #RegularizaçãoJá foi combinada com o lançamento da petição pública de apoio ao PL 2699/2020, solicitando sua aprovação urgente, devido ao caráter emergencial da pandemia. A campanha tem crescido e ganhado apoio internacional à regularização no Brasil, mobilizando organizações de migrantes em diferentes países.

No âmbito local, coletivos e organizações de migrantes e pessoas em situação de refúgio têm se apoiado mutuamente e buscado articular apoio a essas populações, com doações de cestas básicas e itens de proteção individual e higiene. Em São Paulo, a Prefeitura Municipal, por meio da Coordenação de Políticas para Migrantes e Promoção do Trabalho Decente, disponibilizou materiais informativos em diversas línguas sobre o acesso ao auxílio emergencial e orientações gerais sobre a Covid-19. Os atendimentos pelo Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI-SP) continuam, agora presencialmente em horários reduzidos ou remotamente. Também em São Paulo, as escolas municipais, além de pontos de referência no território, têm se tornado núcleos de solidariedade. Na zona Norte da capital, a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Vicente Paulo da Silva criou grupos de whatsapp com as famílias migrantes e as colocou em contato com o Projeto Canicas, que atua no atendimento a essa população.

Se o acesso efetivo a políticas e serviços públicos e a ampla regularização migratória já eram temas latentes, bandeiras de longa data dos movimentos de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, mais do que nunca, o momento que vivemos requer políticas universais, que não deixem ninguém para trás. Alienar pessoas do acesso a serviços públicos e a direitos sociais significa colocar em risco não apenas essas pessoas, mas a sociedade como um todo. Que esses árduos tempos sejam combustível para a consolidação de cidadanias universais e efetivação dos direitos humanos.

 

Este texto faz parte de uma série de artigos escritos por pesquisadores do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo (CEAPG) da FGV EAESP - https://ceapg.fgv.br.

 

 

[1] Migrantes internacionais são todas as pessoas que se deslocam para fora de seu lugar de residência habitual, através de uma fronteira internacional, de maneira temporária ou permanente, e por diversas razões. Designados como imigrantes na perspectiva do lugar de destino.

[2] Pessoas em situação de refúgio são refugiados e solicitantes de refúgio. Refugiado é a pessoa que está fora de seu país de origem devido a fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou opinião política, como também devido a grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. Solicitante de refúgio, por sua vez, é quem requereu o status de refugiado e aguarda parecer das autoridades.

[3] Segundo dados do Atlas Temático do Observatório das Migrações de 2020.

[4] Os deslocamentos forçados abragem pessoas em situação de refúgio, ou seja, refugiados e solicitantes de refúgio, deslocados internos e apátridas.

[5] É o caso, por exemplo, de migrantes oriundos de países do Mercosul que têm acesso à regularização migratória facilitada nos países do bloco.

Camila Barrero Breitenvieser, mestre em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP e mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa

Juliana Moreira de Souza Tubini, mestre em Administração Publica e Governo pela FGV EAESP e bacharel em Relações Internacionais pela PUC-SP

Marta Ferreira Santos Farah, doutora em Sociologia pela USP, professora titular do Departamento de Gestão Pública da FGV-SP e pesquisadora do CEAPG

 

A pandemia do novo Coronavírus carrega consigo as marcas da desigualdade. Atinge de forma mais dura populações em situação de vulnerabilidade e, dentre elas, migrantes internacionais[1] e pessoas em situação de refúgio[2]. Comumente alijados dos sistemas de proteção social, negados o acesso a direitos, alvos de xenofobia e racismo, migrantes internacionais enfrentam ainda o desafio trazido pela indocumentação. Pauta historicamente defendida por movimentos de base e pelos próprios migrantes internacionais, o acesso à regularização documental é fundamental para a efetivação de direitos.

Há no mundo atualmente cerca de 272 milhões de migrantes internacionais. Destes, aproximadamente 33,8 milhões são refugiados e solicitantes de refúgio que tiveram de fugir de seu país de origem e que precisam de proteção internacional. As motivações para a mobilidade são diversas: compreendem contextos de instabilidade política, insegurança econômica, conflitos que se estendem por anos, busca por melhores condições de vida e até mesmo motivações de caráter subjetivo, como seguir um grande amor.

No Brasil, há cerca de 1,2 milhão[3] de migrantes internacionais e 43 mil refugiados. Em São Paulo, cidade que concentra a maior parte dessas populações, são mais de 360 mil pessoas. As mais de 150 nacionalidades que vivem no município demonstram que os fluxos migratórios são diversos: bolivianos, haitianos, senegaleses, chineses e venezuelanos, expoentes de chegadas mais recentes, convivem com italianos, portugueses e espanhóis, chegadas expressivas dos séculos passados. No caso dos migrantes internacionais, os números, no entanto, refletem a quantidade de pessoas em situação documental regular, relativos a dados disponíveis pela Polícia Federal - e eles seriam bem maiores se contabilizassem também as pessoas indocumentadas.

No mundo, muitas dessas pessoas migram para países onde não têm direitos garantidos. Há lugares em que a cidadania e o acesso aos direitos civis, políticos, sociais e econômicos são condicionados à nacionalidade, o que significa que apenas quem nasceu naquele território ou se naturalizou é sujeito de direitos. A cidadania associada à nacionalidade impede o "direito a ter direitos" ou restringe as possibilidades de acessá-los, sobretudo para migrantes indocumentados.

Na contramão de políticas restritivas, o Brasil é um país que possui arcabouço legal que consolida o entendimento de que pessoas são sujeitas de direitos independentemente de sua nacionalidade. A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu artigo 5º, a equiparação de direitos entre nacionais e não nacionais, prevalecendo o princípio da universalidade no acesso a políticas de saúde, previdência, assistência social e educação. Na mesma linha, as duas principais leis que regem a temática migratória, a Lei do Refúgio (Lei nº 9.474/1997) e a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017), são consideradas avançadas por organismos internacionais, uma vez que promovem a inclusão social de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, independentemente de sua situação documental.

Contudo, apesar da garantia legal, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio enfrentam grandes dificuldades no acesso às políticas sociais no Brasil. Para além dos desafios enfrentados por brasileiros em situação de vulnerabilidade, essas populações se deparam com elementos agravantes como o desconhecimento de seus direitos, barreiras linguísticas no atendimento, diferenças culturais, xenofobia, ausência de rede no país de destino e não familiaridade com os serviços públicos disponíveis, que em muito podem diferir dos serviços de seus países de origem. Além dessas, outra singularidade se destaca: a indocumentação.

A decisão, ou a necessidade, de residir em outro país que não seja o de nascimento exige a solicitação de permissão de entrada e permanência no país de destino. Mesmo nos casos em que o deslocamento para outro país é uma condição para que a vida daquela pessoa seja assegurada, ou seja, nos chamados deslocamentos forçados[4], cabe ao Estado receptor definir regras sobre a concessão de documentação e a efetivação da proteção internacional. Há situações, no entanto, em que migrantes internacionais não se ajustam a nenhuma das categorias migratórias previstas em lei e, por isso, não têm acesso à documentação que garanta sua regularização e permanência no país. Nestes casos, os migrantes ficam indocumentados.

Em outros casos, migrantes internacionais se encaixam em categorias de regularização migratória, mas os altos custos dos trâmites burocráticos para a obtenção de documentos os impede de consegui-los. Em outros ainda, por falta de informação ou por estarem submetidos a situações de exploração laboral, não acessam a documentação disponível[5]. Em todos esses casos, configura-se a indocumentação.

No Brasil, a ausência de um documento de regularização migratória constitui mera infração administrativa, não sendo enquadrada como crime. A indocumentação, no entanto, traz consequências diretas à vida das pessoas. Embora no país o acesso a direitos sociais seja universal e independa da situação documental, a associação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio a um "não lugar" jurídico costuma ser usada como justificativa, mesmo que equivocada, para o não reconhecimento de seus direitos. Uma coisa é certa dizer: a indocumentação provoca a vulnerabilidade. A indocumentação é, portanto, um elemento agravante que perpassa todas as demais vulnerabilidades que migrantes internacionais enfrentam no país de destino. Por este motivo, a regularização migratória é uma pauta historicamente defendida pelos movimentos de migrantes. No atual cenário de pandemia, a regularização torna-se ainda mais urgente.

Mesmo em contextos não pandêmicos, a indocumentação é causa frequente do afastamento de migrantes internacionais dos serviços públicos, motivado ora pelo medo de deportação, ora pelo desconhecimento da possibilidade de acesso a tais serviços mesmo sem documentos brasileiros. Em contexto de pandemia, o afastamento dos serviços de saúde é um risco coletivo, pois pode dificultar o acesso ao tratamento adequado ou às medidas de prevenção e significar a piora das condições de saúde da pessoa migrante adoentada e a inefetividade do controle da doença na sociedade como um todo.

Recentemente, a Organização Internacional do Trabalho apontou para a necessidade da incorporação de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio nas medidas emergenciais de garantia de renda adotadas pelos países no contexto da pandemia do novo coronavírus. A iniciativa brasileira de concessão do Auxílio Emergencial para pessoas desempregadas ou trabalhadores informais, extensível a migrantes internacionais e refugiados na mesma situação, foi reconhecida como uma boa prática.

Contudo, migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio que não têm documentação migratória ou com a documentação vencida têm enfrentado maiores dificuldades para obter o benefício social. Irregularidades no CPF causadas pelo registro incompleto de informações (como ausência do nome da mãe), desconhecimento dos funcionários da Caixa Econômica Federal e Correios de que essas populações também podem ser beneficiárias e o pagamento do auxílio atrelado à apresentação de documento brasileiro com foto são os principais entraves. Vale lembrar que de tempos em tempos as autorizações de residência precisam ser renovadas. No entanto, o órgão responsável, a Polícia Federal, suspendeu as emissões de documentos enquanto perdurar a pandemia. Embora tenham sido prorrogados os prazos de vencimento dos documentos até o final do estado de emergência, ainda assim as dificuldades se colocam ao migrante internacional que apresenta um documento com aparente data expirada.

As iniciativas para contornar as dificuldades enfrentadas por migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio residentes no Brasil são oriundas de diferentes atores da sociedade. Dentre elas, três iniciativas estão ligadas diretamente à questão da indocumentação e da renovação de documentos: a ação civil pública da Defensoria Pública da União (DPU), a Campanha "Regularização Já" e o Projeto de Lei nº 2699/2020 que tramita na Câmara dos Deputados.

A DPU ajuizou uma ação civil pública para solicitar providências junto à Caixa Econômica Federal e ao Banco Central do Brasil, órgãos ligados à concessão do benefício. Em ofício enviado a gerentes da CEF e dos Correios - situados na linha de frente da concessão do Auxílio Emergencial - a DPU relata as dificuldades que migrantes e refugiados residentes no país têm enfrentado para ter acesso ao benefício, destacando a exigência de documentação regular emitida no Brasil. A Defensoria alerta que a Lei de Migração vigente garante o direito à assistência social a todos os migrantes internacionais, independentemente da situação documental e denuncia que migrantes têm sido alijados deste direito por questões operacionais e por falta de normatização suficiente. Ou seja, o direito existe e está amparado em diversas leis (Constituição Federal, Lei de Migração, Lei do auxílio-emergencial), contudo a operacionalização das normas pela burocracia de nível de rua tem sido um entrave à garantia deste direito.

Além desta, outra ação foi iniciada em maio deste ano, e tem se avolumado entre migrantes e apoiadores: a Campanha Regularização Imediata, Permamente e Incondicional para Imigrantes no Brasil, conhecida pela hashtag #RegularizaçãoJá. No Brasil, a campanha é protagonizada pelo coletivo de mulheres migrantes, baseado em São Paulo, Equipe de Base Warmis - Convergência de Culturas e apoiada por inúmeras organizações ligadas ao tema, como Presença na América Latina (PAL), Projeto Canicas, coletivo Si, Yo Puedo!, União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH) e Rede de Mulheres Imigrantes Lésbicas e Bissexuais (MILBI). A campanha consiste em pressionar autoridades pela regularização ampla de migrantes internacionais, uma vez que a indocumentação é considerada um dos principais empecilhos ao acesso aos mecanismos de apoio emergencial do Estado em tempos de pandemia. A iniciativa foi inspirada pela regularização de migrantes com pedidos de residência pendentes promovida pelo governo de Portugal que afirmou que a medida asseguraria o acesso destas pessoas à saúde, à segurança social e estabilidade no emprego e na habitação. Além de Portugal, outros países, como Espanha e Itália, tomaram medidas similares, o que beneficiou, inclusive, brasileiros residentes nesses locais.

Aqui, o tema se tornou matéria de um Projeto de Lei apresentado na Câmara Federal, PL nº 2699/2020, de autoria da bancada do PSOL, que "institui medidas emergenciais de regularização migratória no contexto da pandemia de Covid-19". O Projeto, elaborado em coordenação com as demandas dos movimentos e coletivos de migrantes que puxaram a Campanha #RegularizaçãoJá, aponta em sua justificativa que "além de prejudicar as condições de vida dessas pessoas, a irregularidade migratória ameaça a efetividade das políticas públicas no combate à pandemia e à crise econômica no país". O PL se apoia nas anistias já concedidas anteriormente no Brasil (1998 e 2009) e na Lei de Migração de 2017, que prevê a hipótese de acolhida humanitária para a autorização de residência no país, mecanismo que daria condições legais ao projeto.

A mobilização nas redes sociais pela Campanha #RegularizaçãoJá foi combinada com o lançamento da petição pública de apoio ao PL 2699/2020, solicitando sua aprovação urgente, devido ao caráter emergencial da pandemia. A campanha tem crescido e ganhado apoio internacional à regularização no Brasil, mobilizando organizações de migrantes em diferentes países.

No âmbito local, coletivos e organizações de migrantes e pessoas em situação de refúgio têm se apoiado mutuamente e buscado articular apoio a essas populações, com doações de cestas básicas e itens de proteção individual e higiene. Em São Paulo, a Prefeitura Municipal, por meio da Coordenação de Políticas para Migrantes e Promoção do Trabalho Decente, disponibilizou materiais informativos em diversas línguas sobre o acesso ao auxílio emergencial e orientações gerais sobre a Covid-19. Os atendimentos pelo Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI-SP) continuam, agora presencialmente em horários reduzidos ou remotamente. Também em São Paulo, as escolas municipais, além de pontos de referência no território, têm se tornado núcleos de solidariedade. Na zona Norte da capital, a Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Vicente Paulo da Silva criou grupos de whatsapp com as famílias migrantes e as colocou em contato com o Projeto Canicas, que atua no atendimento a essa população.

Se o acesso efetivo a políticas e serviços públicos e a ampla regularização migratória já eram temas latentes, bandeiras de longa data dos movimentos de migrantes internacionais e pessoas em situação de refúgio, mais do que nunca, o momento que vivemos requer políticas universais, que não deixem ninguém para trás. Alienar pessoas do acesso a serviços públicos e a direitos sociais significa colocar em risco não apenas essas pessoas, mas a sociedade como um todo. Que esses árduos tempos sejam combustível para a consolidação de cidadanias universais e efetivação dos direitos humanos.

 

Este texto faz parte de uma série de artigos escritos por pesquisadores do Centro de Estudos em Administração Pública e Governo (CEAPG) da FGV EAESP - https://ceapg.fgv.br.

 

 

[1] Migrantes internacionais são todas as pessoas que se deslocam para fora de seu lugar de residência habitual, através de uma fronteira internacional, de maneira temporária ou permanente, e por diversas razões. Designados como imigrantes na perspectiva do lugar de destino.

[2] Pessoas em situação de refúgio são refugiados e solicitantes de refúgio. Refugiado é a pessoa que está fora de seu país de origem devido a fundado temor de perseguição por motivo de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social ou opinião política, como também devido a grave e generalizada violação de direitos humanos e conflitos armados. Solicitante de refúgio, por sua vez, é quem requereu o status de refugiado e aguarda parecer das autoridades.

[3] Segundo dados do Atlas Temático do Observatório das Migrações de 2020.

[4] Os deslocamentos forçados abragem pessoas em situação de refúgio, ou seja, refugiados e solicitantes de refúgio, deslocados internos e apátridas.

[5] É o caso, por exemplo, de migrantes oriundos de países do Mercosul que têm acesso à regularização migratória facilitada nos países do bloco.

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