Deivison Henrique de F. Santos, Cientista social e Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná. Foi bolsista FNDE, CNPq, Fundação Araucária e Capes
Recentemente, o professor e pesquisador da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Daniel Guerrini, publicou artigo intitulado "Campo Cientifico, Reconhecimento e Motivação Profissional em Programas de Pós-Graduação do Sul do Brasil". O trabalho saiu no volume 66 da revista DADOS, um dos periódicos brasileiros mais tradicionais no campo das Ciências Sociais.
Entre as descobertas do trabalho, encontra-se o fato de mais de 95% dos 398 respondentes do estudo, vinculados a programas de pós-graduação de universidades dos três estados do Sul do Brasil, concordarem com as seguintes afirmações: "A atividade científica é imprescindível ao desenvolvimento econômico do Brasil"; e "Sem investir em Ciência e tecnologia, o Brasil estará condicionado ao atraso e à ignorância".
Apesar de concordarem com as frases acima, os mesmos entrevistados alegaram, em mais de 78% dos casos, que a atividade científica não é reconhecida pela sociedade brasileira - número ainda maior entre pesquisadoras. Ou seja, embora os respondentes/pesquisadores, em sua maioria, entendam a relevância da atividade que desempenham, eles não se sentem prestigiados pela sociedade que, em tese, ajudam a desenvolver.
Não parece absurdo imaginar que em outros Estados brasileiros o sentimento da massa de pesquisadores e pesquisadoras também seja o de falta de reconhecimento. Essa sensação deve ter se acentuado ainda mais ao longo dos últimos anos, com os sucessivos cortes no número de bolsas e financiamentos para pesquisas e a falta de compreensão acerca do que é e o que não é ciência por parte de membros do atual governo, principalmente no decorrer da pandemia de Covid-19.
Diante disso, e já que estamos em período de promessas (ou eleitoral), parece válido refletir sobre o atual quadro da profissão científica no Brasil, seja para aqueles que se encontram na academia (e ali querem permanecer), seja para aqueles que se qualificam em programas de mestrado e doutorado e, em seguida, buscam uma melhor inserção no mercado de trabalho não acadêmico.
A profissão dentro dos muros da universidade
Ser cientista no Brasil não é tarefa fácil. Em primeiro lugar, é preciso ingressar em algum curso de graduação e concluir a primeira etapa do ensino superior. Isso por si só já é uma enorme conquista para muitos. Na verdade, concluir o ensino médio já é uma vitória para milhares de jovens em situação de extrema vulnerabilidade nos centros urbanos do Brasil ou nos rincões do país.
Uma vez superada essa etapa, é necessário se qualificar para conquistar a aprovação em algum processo seletivo para mestrado (levando em conta o percurso mais convencional). É claro que os processos seletivos variam entre as instituições e programas, mas, em geral, além de envolverem provas e entrevistas, também ocorre a avaliação do histórico acadêmico do candidato.
Nesse momento, surge outra barreira: não basta ter boas notas, é bom que o candidato também tenha experiências em projetos de extensão universitária e/ou iniciações científicas. Se permanecer na universidade já é um desafio para muitos em situação de fragilidade socioeconômica, imagina conseguir dedicar tempo e energia para atividades extracurriculares. Sem falar que nem todas as universidades investem em tais atividades.
Mas ok, suponha que os desafios até aqui foram vencidos. O mestrando, a partir de então, terá que se dedicar às disciplinas do mestrado e à sua dissertação. Ele pode trabalhar e fazer o mestrado ao mesmo tempo (isso se conseguir um emprego, o que, ultimamente, também não tem sido tarefa fácil). Ou ele pode conseguir uma bolsa de alguma instituição de fomento a pesquisas, por exemplo.
As instituições de fomento a pesquisas no Brasil possuem um sistema de bolsas que servem de auxílio para que pós-graduandos se sustentem enquanto se dedicam exclusivamente às suas pesquisas (a dedicação exclusiva, muitas vezes, é uma das condições para se obter a bolsa).
Acontece que o número de bolsas tem diminuído cada vez mais, o que torna o processo ainda mais concorrido, ou quase impossível para aqueles que não tiveram certos privilégios ao longo do percurso de formação. Além disso, os valores das bolsas não têm nada de animador.
Instituições como CNPq e Capes pagam R$400 para graduandos que fazem iniciação científica, R$1500 para mestrandos, e R$2200 para doutorandos. Ressalte-se que os valores pagos pelas instituições federais mencionadas estão congelados há quase dez anos.
Ademais, embora algumas instituições estaduais paguem valores maiores, nem sempre a diferença para mais é tamanha que permita uma vida digna aos estudantes. Aí surge a questão: como se dedicar exclusivamente a uma atividade que não gera renda suficiente para que os estudantes paguem as suas contas no final do mês?
E eis outro problema: tratar mestrandos e doutorandos apenas como estudantes. Claro que eles estudam, e muito, mas talvez reconhecê-los, também, como profissionais que desempenham atividades formais para as instituições em que estão vinculados seria uma forma de garantir maior prestígio ao caminho que tais indivíduos escolheram seguir.
Até mesmo as "bolsas" deveriam ser tratadas como salários. E benefícios básicos de um trabalhador formal deveriam também ser garantidos aos mestrandos e doutorandos - sobretudo considerando o valor limitado das bolsas, que, não raras vezes, não pagam nem o aluguel cobrado em certas cidades. Além, é claro, do fato de que mestrandos e doutorandos não têm férias, feriados ou fins de semana.
Mas, sigamos. O mestrado acabou e o novo mestre teve a ousadia de tentar um doutorado. Os desafios anteriores permanecem, e agora o nível de exigência e cobrança sobe ainda mais. Em alguns programas, para se tornar doutor, é preciso saber, ao menos, ler e escrever em duas outras línguas, além do português. Em um país que em pleno 2022 ainda possui uma massa de analfabetos funcionais, essa é uma exigência e tanto.
Além da cobrança por originalidade, no doutorado também há maior exigência por publicações. O lema geralmente é publicar ou perecer (e olha que muitos publicam e perecem mesmo assim).
Publicar em revistas bem colocadas em rankings de avaliação de impacto requer muito empenho, dedicação, conhecimento aprofundado em produção de artigos e demais trabalhos científicos e noções acerca de como se estrutura o quadro de periódicos científicos da área em que se está inserido.
Publicações geralmente são resultados de anos de estudo e pesquisa. E antes de virarem um artigo em uma revista específica, provavelmente já passaram pela apresentação e discussão em congressos, seminários e outros encontros da comunidade científica. Ou seja, publicar bem dá muito, mas muito trabalho.
O próprio desenvolvimento da tese requer muito foco e dedicação. Além de um profundo conhecimento da literatura da área que se está estudando, é preciso dominar diferentes metodologias, lidar com orientadores nem sempre agradáveis, levar muita crítica e ter um elevado grau de resiliência (não é à toa que os índices de ansiedade e depressão são bem maiores entre pós-graduandos, outro desafio a se considerar).
Imagine que todos esses desafios foram contornados. Eis um doutor ou doutora. Caso esse profissional queira continuar no ambiente acadêmico, ele ou ela tem a opção de tentar um pós-doutorado. Também é possível fazer concursos para cargos docentes em universidades públicas ou participar de processos seletivos para instituições privadas.
Mas aí aparecem outros desafios: um pós-doutorado pode ser demais para uma mente já cansada; um pós-doutorado pode nem ser remunerado, já que as bolsas são, além de desvalorizadas, limitadas; pode não haver concursos; instituições privadas podem pagar mal ou necessitarem de profissionais para atividades pontuais, como professores conteudistas.
Outro caminho seria ingressar no mercado de trabalho não acadêmico, aspecto que será o tema do próximo tópico.
A profissão fora dos muros da universidade
Reconheço que estou no início da minha trajetória profissional e que isso limita o grau de propriedade com o qual posso falar sobre as adversidades para mestres e doutores no mercado de trabalho não acadêmico. Mesmo assim, penso que posso compartilhar alguns desafios que eu e outras pessoas com as quais convivo já enfrentaram ou estão enfrentando na atualidade.
Em primeiro lugar, existe a barreira da idade. Parece razoável imaginar que um recém doutor ou doutora tenha, em média, 30 anos. Pode ser difícil para esse indivíduo ingressar em uma vaga (por exemplo, júnior) estando nessa faixa etária, especialmente se ele não tiver exercido nenhuma atividade profissional fora do meio acadêmico até então.
No mesmo sentido, outro desafio enfrentado por mestres e doutores, mas também por demais profissionais recém-formados, é o fato de algumas empresas demandarem sempre profissionais com experiência, já treinados.
É evidente que é necessário haver determinado treinamento para exercer algumas funções profissionais. No entanto, cabe as empresas o papel de também colaborarem para que seus novos profissionais estejam preparados para cumprir atividades específicas, ao invés de exigirem experiência até mesmo para cargos iniciais, como estagiário.
Isso não seria um problema se o trabalho acadêmico fosse reconhecido como uma experiência a exemplo de qualquer outra. Pesquisas acadêmicas podem exigir o domínio de habilidades de grande utilidade para o mercado em geral, como: gestão de projetos; gestão de tempo; gestão de pessoas; utilização de técnicas de pesquisa quanti-qualitativas; domínio de softwares específicos; elaboração de relatórios; apresentação de resultados; capacidade de negociação; resiliência; trabalho em equipe etc.
Infelizmente, nem todas as empresas compreendem que tais habilidades técnicas e comportamentais fazem parte da trajetória acadêmica e acabam renunciando a profissionais qualificados que poderiam ser de grande valia para os propósitos de certos negócios.
Aspecto curioso também diz respeito à própria qualificação dos mestres e doutores. Não é incomum encontrar pessoas super qualificadas nesse meio que foram preteridas em processos seletivos no setor privado, justamente por serem consideradas qualificadas demais para a função.
Claro que é preciso haver certa compatibilidade entre a formação e a função desempenhada por um dado profissional. Mas isso não muda o fato de que pode ser frustrante passar anos se qualificando para depois não ver essa qualificação valorizada, e, ao contrário, vê-la sendo motivo para não contratação.
Por fim, o fenômeno da "uberização" do mercado de trabalho também afeta a vida dos pós-graduados. Muitos encontram em atividades pontuais e sem vínculos formais uma fonte de recursos para a sua sobrevivência.
É relevante pontuar que entre esses indivíduos nem todos praticam atividades informais que tenham relação com a sua formação. Alguns, inclusive, tornam-se reféns de trabalhos intermediados por aplicativos, inflando ainda mais o número de trabalhadores explorados por tal modalidade de "emprego".
Considerações finais
O artigo em tela não tem como objetivo desmotivar quem tem interesse pela trajetória acadêmica ou quem procura se qualificar para o mercado não acadêmico. Assim como o país precisa de bons professores e pesquisadores, o mercado de trabalho necessita de bons profissionais.
Considerando que estamos em período eleitoral, o propósito foi elencar alguns problemas e adversidades enfrentados por uma parcela de profissionais de suma importância para o futuro da nação. Espera-se que o presente artigo alcance não somente o público em geral, mas, também, aqueles que estão em posições centrais nos processos de tomada de decisões.
Não se tem a pretensão aqui de apenas listar problemas. Propor soluções também se faz necessário. A primeira delas é até meio óbvia: atualizar os valores das bolsas pagas a pesquisadores (da iniciação científica ao pós-doutorado) pelas principais instituições de fomento a pesquisas do Brasil, acima de tudo no que se refere às instituições federais, como Capes e CNPq.
Tal atualização, além de corrigir os valores pela inflação dos últimos anos, deve garantir que os mesmos valores sejam atualizados nos anos subsequentes. Uma valorização das bolsas no âmbito federal poderia levar a uma valorização também nas instituições estaduais, em um efeito dominó de muita serventia para tornar o caminho da Ciência um trajeto mais animador para os jovens brasileiros.
Não basta somente aumentar o valor das bolsas, é preciso, além disso, oferecer uma quantidade maior de bolsas e financiamentos para pesquisas Brasil afora, tanto nas áreas da Saúde e Tecnologia quanto nas Ciências Humanas. Não dá para continuar deixando pesquisadores e pesquisadoras super qualificados em uma competição selvagem por migalhas (o que é vergonhoso).
No que diz respeito ao acesso aos programas de mestrado e doutorado, pode ser frutífero haver uma expansão das políticas de cotas em seus processos seletivos. Embora essa já seja uma prática de algumas instituições e programas, ainda é preciso aprofundar as categorias de cotas, de modo a se considerar não apenas variáveis como raça, mas, também, gênero, renda e origem social.
Outra prática que tem ocorrido e que pode ser expandida é a de deixar a avaliação do conhecimento em línguas estrangeiras para o decorrer ou final da formação, e não já como exigência inicial do processo seletivo, particularmente no nível de mestrado. Mais do que saber outras línguas de forma fluente ou não, o que deveria importar é a capacidade do candidato em contribuir criticamente para o campo científico que se pretende integrar.
Já que, muitas vezes, a avaliação do pesquisador é feita pela quantidade e qualidade de suas publicações, poderia ser interessante que revistas científicas que exigem altas titulações para aceitar artigos submetidos deixem de fazer tal cobrança. Isso poderia abrir o leque de possibilidades de publicações para graduandos, mestrandos e doutorandos, e, assim, aumentar suas chances de sucesso no futuro.
Sim, sabe-se que muitas revistas atualmente são subfinanciadas e que a proposta acima poderia gerar um trabalho adicional a editores e pareceristas já sobrecarregados (outro problema, diga-se). Todavia, a noção de que graduandos, mestrandos e doutorandos podem produzir trabalhos de ótima qualidade, mesmo não tendo determinadas titulações, deveria ser considerada por editores e demais responsáveis pelos periódicos.
Uma alternativa também poderia ser a promoção de mais incentivos para que professores já titulados e com carreiras consolidadas publiquem trabalhos em conjunto com seus orientandos, sejam eles da graduação ou do pós-doutorado.
Em se tratando do universo não acadêmico, um dos pontos que merece mais atenção é a valorização da experiência acadêmico-científica. Mestrado e doutorado também são experiências profissionais. Por mais que certas empresas já reconheçam isso, tal entendimento deveria ser mais amplo e universalizado.
Políticas públicas para o aumento da formalização do mercado de trabalho também devem ser visadas pelas autoridades. Isso poderia beneficiar trabalhadores no âmbito geral e evitaria uma bomba previdenciária no futuro.
No que diz respeito às universidades públicas, que possuem como ponto central de sua existência a noção de ensino, pesquisa e extensão, dois fatores poderiam ser considerados.
O primeiro se trata do fato, e isso é comum em cursos na área de Ciências Sociais e Humanidades, de que parte dos professores não possuem experiência no mercado não acadêmico. Valorizar a experiência profissional não acadêmica nos concursos (além do trabalho acadêmico, claro) poderia ser uma forma de trazer novos ares e reflexões para a sala de aula.
Outro elemento é a falta de formação técnica voltada para o cumprimento de atividades específicas do mercado não acadêmico. O papel de uma universidade, evidentemente, não é formar somente técnicos. Mas, às vezes, esse conhecimento mais especializado falta em cursos de algumas instituições, seja pela indisposição dos educadores, seja pela falta de iniciativa dos próprios estudantes.
Por fim, parcerias envolvendo os dois campos podem ser benéficas. Esse artigo tem subtítulos que fazem referência a um "muro" entre as universidades e o mundo exterior. Acontece que esse muro, ou separações de qualquer tipo entre os campos, sequer deveriam existir. Programas que integrem a universidade ao mercado e vice-versa podem ser de grande utilidade.
Um exemplo nesse sentido é o Movimento Empresa Júnior, que procura justamente fazer essa conexão entre o ambiente acadêmico e o mercado de trabalho não acadêmico. As empresas juniores são empreendimentos formais que atuam em sintonia com universidades, prestando serviços para interessados de dentro e fora das instituições, e são geridas pelos próprios estudantes. Está aí algo também a ser mais valorizado pelas Instituições de Ensino Superior do país.
Enfim, o trabalho em tela não busca ser um fim em si mesmo, e é claro que pode haver divergências entre o que o autor deste manuscrito pensa e o que o leitor imagina que deveria ser feito. Se esse artigo fez você ao menos refletir um pouco mais sobre o assunto, ele já cumpriu seu propósito.
Que futuras pesquisas como a destacada no início desse artigo se deparem com pesquisadores e pesquisadoras com sentimentos mais positivos em relação à profissão científica. Que os pesquisadores do país vejam no Brasil um centro de produção científica e formação profissional que compense estar - e deixem de sair do país em busca de melhores condições e oportunidades.
Deseja-se, também, que a sociedade e as autoridades públicas e políticas do país compreendam que ciência não se resume a profissionais mais bem preparados para o mercado ou ao desenvolvimento tecnológico para a nação. Como ficou claro no decorrer da pandemia de Covid-19, em essência, ciência também é vida.