Rubens Naves, Advogado, ex-presidente e conselheiro da Fundação Abrinq, coautor do livro "Direito ao futuro - Desafios para a efetivação dos direitos das crianças e dos adolescentes" Ed. Imprensa Oficial, membro do Comitê de Assessoramento da Coordenadoria da Infância e Juventude do TJSP. Ex-professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP
A reconstrução democrática iniciada no Brasil em janeiro de 2023 não pode relegar a segundo plano o dever de tratar crianças e adolescentes como "prioridade absoluta" da nação. Compromisso que a Constituição Federal selou para o Estado e a cidadania, essa priorização é fator indispensável de um efetivo e consistente avanço social. E neste momento, para honrar e efetivar essa prioridade, devemos superar dois desafios - um deles no âmbito do Congresso e o outro, nas articulações internas do governo Lula.
Começando pelo governo federal, lembremos qual foi a herança recebida pela atual gestão e vejamos o que ela já fez de mais relevante para a infância e a juventude do País.
Nos últimos anos, os retrocessos que se abateram sobre a sociedade brasileira, sobretudo nas áreas de políticas sociais, saúde, educação, direitos humanos, combate à fome e à pobreza tiveram impacto especialmente danoso para crianças e adolescentes - atingidos em fase de formação biológica e psicossocial. Mazelas como desnutrição e insegurança alimentar, subfinanciamento e precarização do atendimento à primeira infância e da educação escolar marcaram o período recente. A vacinação infantil contra doenças mortais e debilitantes como a poliomielite e muitas outras caiu tão acentuadamente que o Brasil, que dava exemplo em termos de cobertura vacinal, passou a figurar entre os países com piores índices nessa área.
Transcorridos os primeiros sete meses de um novo governo federal, de frente ampla e orientação para o social, há recuperação em áreas importantes. O aumento do benefício médio do Bolsa Família (R$ 705 em junho) - incluindo o acréscimo de R$ 150 para cada criança de até seis anos de idade, que já está beneficiando cerca de 9 milhões de crianças - e o reajuste de até 39% nos repasses para merenda escolar de cerca de 40 milhões de alunos estão entre os avanços de maior abrangência e impacto imediato. A recriação, no final de fevereiro, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan) é sinalização relevante e promissora para um combate estruturado à fome e desnutrição.
Na Saúde, a Mobilização Nacional pela Vacinação, que tem o objetivo de levar o Brasil de volta à condição de referência em imunização, hoje busca alcançar a meta de voltar a superar os 90% de cobertura vacinal (o Brasil chegou a ter 95% de cobertura em 2015, mas o índice caiu para 68% em 2022). Na Educação, foi lançado o programa Escolas de Tempo Integral, prometendo investimentos de R$ 4 bilhões para aumentar em 1 milhão o número de matrículas nessa modalidade - num esforço de atingir a meta de, em 2024, o País ter pelo menos 25% dos estudantes da educação básica em regime escolar de 35 horas semanais ou mais.
Na área dos Direitos Humanos e Cidadania, foi anunciado um conjunto de ações para prevenção, combate à exploração e defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de violência sexual. O Ministério do Trabalho e Emprego, por sua vez, retomou o combate a outra forma de violência, o trabalho infantil e, nos quatro primeiros meses de 2023, mais de 700 crianças foram retiradas de situações de exploração e encaminhadas para inclusão em políticas públicas de proteção social, educação e formação profissional.
Avanços importantes em relação aos anos anteriores, essas medidas poderiam compor um plano transetorial que permitisse, ao governo e à cidadania, enxergar e promover as políticas para a infância e adolescência de modo integrado. O Plano Plurianual (PPA) para o período de 2024 a 2027, de acordo com o manual técnico divulgado em março pelo Ministério do Planejamento, terá a infância e adolescência entre as suas "agendas transversais" prioritárias. Não há razão, entretanto, para esperar a finalização do PPA para só então trabalhar pela articulação dessa transversalidade.
Em seus dois mandatos (2003 a 2010), Lula se compromissou com o programa "Presidente Amigo da Criança", proposto pela Fundação Abrinq. Seu governo elaborou o primeiro "Plano Presidente Amigo da Criança e do Adolescente" e estruturou a Rede de Monitoramento Amiga da Criança. Com apoio dessa parceria entre o governo federal e a sociedade civil, naqueles oito anos o país conquistou avanços relevantes em todos os campos prioritários do plano.
Agora, em 2023, é hora de atualizar esse tipo de articulação dentro do governo, coordenando diferentes áreas ministeriais em prol de uma visão factível, mas ambiciosa, de melhoria de condições de vida e desenvolvimento para os mais jovens. E uma das dimensões mais decisivas para esse avanço articulado - a educação escolar - nos remete ao segundo grande desafio deste momento: a defesa do Fundeb.
O investimento público por aluno da educação básica brasileira não chega à metade do investimento médio dos países da OCDE. Aumentar o investimento nesse nível de ensino já era um desafio histórico antes do retrocesso dos últimos anos - depois dele, tornou-se ainda mais urgente. E para isso, proteger e reforçar o Fundeb - que provê mais de 60% da verba que os estados e municípios investem na educação básica - é fundamental.
Para fazer valer a priorização absoluta das crianças e adolescentes, portanto, a emenda do Senado ao PL do Arcabouço Fiscal que exclui o Fundeb do limite de despesas do governo federal deve ser aprovada pela Câmara dos Deputados. Essa é uma causa que precisa ser imediatamente abraçada pela sociedade civil, o governo Lula e as lideranças verdadeiramente comprometidas com a Constituição, o combate à pobreza, o avanço da democracia e o desenvolvimento socioeconômico do País.