Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Quanto vale ou é por gênero?


Por Redação
Imagem divulgação.  

Na última semana tivemos a circulação de uma notícia que nos espantaria pela sua indecência jornalística, se não estivéssemos em um país que ocupa a 104.a posição no ranking global de empoderamento político [political empowerment], dentre 146 países monitorados, no Global Gender Gap Index Report [Relatório do Índice de Desigualdades de Gênero] de 2022, publicação do Fórum Econòmico Mundial (WEF)[1]. Em nossa Câmara dos Deputados, cuja representação deveria espelhar a diversidade populacional, dado o nosso sistema representativo proporcional,temos apenas 15% dos assentos ocupados por mulheres.[2]

A notícia foi circulada pelo jornal O Estado de São Paulo e intitulada "Mulheres de cinco ministros do governo Lula são nomeadas para cargos públicos". Como informação, constou apenas a relação de seis mulheres que foram apresentadas como esposas ou ex-esposa de ministros. Foram elas: Aline Peixoto[3], Rejane Dias[4], Ana Estela Haddad[5], Thássia Azevedo Alves[6], Nilza de Oliveira[7] e Carolina Gabas Stuchi[8]. No texto publicado no jornal, consta a consulta a um advogado, que apontou que tais nomeações "poderiam configurar nepotismo".

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É inaceitável o nível de leviandade de uma notícia como essa. Em nenhum momento são informadas a experiência e a qualificação profissionais dessas servidoras públicas para exercer sua função. No caso de Ana Estela Haddad, por exemplo, trata-se de uma professora  titular da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), posição da qual se afastou para assumir o cargo no Governo Federal. Rejane Dias é deputada eleita pelo estado do Piauí, em seu segundo mandato. Além disso, tal notícia desconsidera que estas mulheres possuem uma trajetória extensa na área onde trabalham, sendo reconhecidas por sua competência profissional que não está relacionada a seus vínculos maritais.

A gravidade da desinformação ganha maior escala quando se percebe que o Estado de São Paulo não é apenas um jornal, mas também uma agência de notícias que serve de fonte para outros jornais de outros estados brasileiros, como, por exemplo, a Gazeta do Povo, no Paraná, e outros blogs que se sustentam na replicação de notícias.

Essa prioridade dada a fofocas palacianas, que reforçam práticas machistas arraigadas em nossa sociedade, vai de encontro aos anseios dessa própria sociedade que, desde 1988, com o estabelecimento da igualdade entre homens e mulheres, não conseguiu atingi-la de fato, tendo de aprovar, recentemente, o PL n.o 1085/23, na Câmara dos deputados, que estabelece, entre outras, medidas de fiscalização e punição de empregadores que não remunerarem igualmente homens e mulheres nas mesmas funções.

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Além de ir contra esforços incessantes para que desigualdades escandalosas sejam diminuídas, tal tipo de notícia expõe as mulheres que ocupam os espaços de poder, tornando essa ocupação ainda mais custosa, trabalhosa e passível de todo tipo de violência. A violência política de gênero investida contra mulheres que, além de sua jornada doméstica de trabalho, têm a coragem de desafiar a exposição da vida pública, desestimula que mais mulheres atinjam altos postos de poder.

A igualdade de gênero é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Consta no Objetivo n.o 5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Qual a mensagem dada a meninas e mulheres, com a referida notícia?

Nesse ponto, ao invés de buscar relações conjugais de seis mulheres, por que não apontar incansavelmente as desigualdades entre homens e mulheres que persistem, década após década e que são monitoradas por instituições que se mantêm a custo de muito esforço e dedicação de suas pesquisadoras?

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De acordo com censo do Instituto Alziras[9], apenas 12% dos municípios são governados por mulheres e 4% de todos os municípios são governados por mulheres negras. Em relação aos governos estaduais, temos apenas duas governadoras eleitas, Fátima Bezerra, no Rio Grande do Norte, e Raquel Lyra, em Pernambuco.

Na campanha eleitoral de 2022, muito foi cobrado a respeito da representatividade das pessoas negras, homens e mulheres e da diversidade de todos os segmentos populacionais na ocupação de funções de chefia e liderança nos cargos de governo. A paridade ainda não foi alcançada, embora muitos esforços tenham sido feitos.

Estamos construindo nossa democracia republicana a duras penas, com avanços e retrocessos. Não há democracia e civilidade republicana sem respeito a todas as pessoas e sem a luta por suprimir desigualdades espúrias. A ocupação de um cargo público requer transparência dos atos de quem o ocupa, mas não é uma porta escancarada para que o desrespeito e a desqualificação seja feita de forma contrária ao que se busca atualmente na sociedade brasileira: a ocupação de cargos públicos por mulheres e pessoas negras, além de representantes dos mais diversos segmentos da população. Em um país em que tivemos uma vereadora negra assassinada e representantes políticas negras sofrem ameaças de morte constantes, esse tipo de informação apenas colabora para o ambiente de intensificação da violência política de gênero.

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Manifestamos aqui todo repúdio a um tipo de jornalismo que não faz jus à profissão cuja missão é promover a informação, para que as pessoas constituintes do poder político possam tomar as melhores decisões e escolhas. Suprimir a boa informação e espalhar informações que escamoteiam o que é importante e reforça preconceitos é atacar o próprio direito de escolha e de escrutínio sobre o mundo.  Em nome da defesa de valores éticos e referentes ao respeito necessário para o convívio social e político democráticos e republicanos, exigimos que esse tipo de prática jornalística não seja realizada.

Ao invés disso, ansiamos para construir uma gestão pública mais igualitária e mais sensível aos problemas de nosso país. A desigualdade de gênero é um de seus problemas e, nesse ponto, a dimensão dos espaços de poder e decisão política é onde ele se demonstra mais grave, como vem demonstrando os indicadores de instituições nacionais e internacionais que acompanham o tema há décadas. Reverter essa realidade depende de um trabalho incansável e é lamentável que energia esteja sendo voltada para estancar retrocessos e não promover avanços. Igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.

Notas

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[1]Documento disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2022.pdf, dados retirados da página 16.

[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/911406-bancada-feminina-aumenta-18-e-tem-2-representantes-trans/

[3] Enfermeira, formada pela Universidade Federal da Bahia, com atuação em gestão da saúde: https://br.linkedin.com/in/aline-peixoto-86b317186

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[4] Administradora, deputada federal em seu segundo mandato. Sua biografia pode ser verificada em: https://www.camara.leg.br/deputados/178925/biografia

[5] Ver currículo: http://lattes.cnpq.br/5132173662388670

[6] Doutoranda em políticas públicas pela UFABC, o resumo de sua experiência pode ser verificado aqui: https://www.escavador.com/sobre/379068657/thassia-azevedo-alves

[7] Ver currículo: ID Lattes: 9716062712891724

[8] Ver currículo:  ID Lattes: 7347946471179906

[9] Disponível em: http://prefeitas.institutoalziras.org.br/censo/

 

Autoras e autores*

Alcides Gussi, Universidade Federal do Ceará

Breynner R. Oliveira, Universidade Federal de Ouro Preto

Caio Pedra, Universidade Federal de Minas Gerais

Camila De Mario, Universidade Candido Mendes

Carla Bronzo, Fundação João Pinheiro - EG

Carlos Vainer, Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Carolina Andion, Universidade do Estado de Santa Catarina - ESAG

Cibele Franzese, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Edgilson Tavares de Araújo, Universidade Federal da Bahia

Fernanda Natasha Bravo Cruz, Universidade de Brasília

Fernando Abrucio, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Filipe Souza Corrêa, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Flávio Cireno, Fundação Joaquim Nabuco - MEC

Francisco Gaetani, Fundação Getulio Vargas - EBAPE

Francisco Raniere Moreira, Universidade Federal do Cariri

Gabriela Lotta, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Gustavo Costa de Souza, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Hironobu Sano, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Jonimar Souza, Instituto Federal de Rondônia

Lady Souza, Instituto Federal de Rondônia

Lindijane de Souza Bento Almeida, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Magda de Lima Lúcio, Universidade de Brasília

Maria Aparecida Azevedo Abreu, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Maria Isabel Araújo, Fundação João Pinheiro - EG

Paulo Jannuzzi, Escola Nacional de Ciências Estatísticas - IBGE

Pedro de Almeida Costa, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Rodrigo Horochovski, Universidade Federal do Paraná

Tânia Fischer, Universidade Federal da Bahia

Imagem divulgação.  

Na última semana tivemos a circulação de uma notícia que nos espantaria pela sua indecência jornalística, se não estivéssemos em um país que ocupa a 104.a posição no ranking global de empoderamento político [political empowerment], dentre 146 países monitorados, no Global Gender Gap Index Report [Relatório do Índice de Desigualdades de Gênero] de 2022, publicação do Fórum Econòmico Mundial (WEF)[1]. Em nossa Câmara dos Deputados, cuja representação deveria espelhar a diversidade populacional, dado o nosso sistema representativo proporcional,temos apenas 15% dos assentos ocupados por mulheres.[2]

A notícia foi circulada pelo jornal O Estado de São Paulo e intitulada "Mulheres de cinco ministros do governo Lula são nomeadas para cargos públicos". Como informação, constou apenas a relação de seis mulheres que foram apresentadas como esposas ou ex-esposa de ministros. Foram elas: Aline Peixoto[3], Rejane Dias[4], Ana Estela Haddad[5], Thássia Azevedo Alves[6], Nilza de Oliveira[7] e Carolina Gabas Stuchi[8]. No texto publicado no jornal, consta a consulta a um advogado, que apontou que tais nomeações "poderiam configurar nepotismo".

É inaceitável o nível de leviandade de uma notícia como essa. Em nenhum momento são informadas a experiência e a qualificação profissionais dessas servidoras públicas para exercer sua função. No caso de Ana Estela Haddad, por exemplo, trata-se de uma professora  titular da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), posição da qual se afastou para assumir o cargo no Governo Federal. Rejane Dias é deputada eleita pelo estado do Piauí, em seu segundo mandato. Além disso, tal notícia desconsidera que estas mulheres possuem uma trajetória extensa na área onde trabalham, sendo reconhecidas por sua competência profissional que não está relacionada a seus vínculos maritais.

A gravidade da desinformação ganha maior escala quando se percebe que o Estado de São Paulo não é apenas um jornal, mas também uma agência de notícias que serve de fonte para outros jornais de outros estados brasileiros, como, por exemplo, a Gazeta do Povo, no Paraná, e outros blogs que se sustentam na replicação de notícias.

Essa prioridade dada a fofocas palacianas, que reforçam práticas machistas arraigadas em nossa sociedade, vai de encontro aos anseios dessa própria sociedade que, desde 1988, com o estabelecimento da igualdade entre homens e mulheres, não conseguiu atingi-la de fato, tendo de aprovar, recentemente, o PL n.o 1085/23, na Câmara dos deputados, que estabelece, entre outras, medidas de fiscalização e punição de empregadores que não remunerarem igualmente homens e mulheres nas mesmas funções.

Além de ir contra esforços incessantes para que desigualdades escandalosas sejam diminuídas, tal tipo de notícia expõe as mulheres que ocupam os espaços de poder, tornando essa ocupação ainda mais custosa, trabalhosa e passível de todo tipo de violência. A violência política de gênero investida contra mulheres que, além de sua jornada doméstica de trabalho, têm a coragem de desafiar a exposição da vida pública, desestimula que mais mulheres atinjam altos postos de poder.

A igualdade de gênero é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Consta no Objetivo n.o 5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Qual a mensagem dada a meninas e mulheres, com a referida notícia?

Nesse ponto, ao invés de buscar relações conjugais de seis mulheres, por que não apontar incansavelmente as desigualdades entre homens e mulheres que persistem, década após década e que são monitoradas por instituições que se mantêm a custo de muito esforço e dedicação de suas pesquisadoras?

De acordo com censo do Instituto Alziras[9], apenas 12% dos municípios são governados por mulheres e 4% de todos os municípios são governados por mulheres negras. Em relação aos governos estaduais, temos apenas duas governadoras eleitas, Fátima Bezerra, no Rio Grande do Norte, e Raquel Lyra, em Pernambuco.

Na campanha eleitoral de 2022, muito foi cobrado a respeito da representatividade das pessoas negras, homens e mulheres e da diversidade de todos os segmentos populacionais na ocupação de funções de chefia e liderança nos cargos de governo. A paridade ainda não foi alcançada, embora muitos esforços tenham sido feitos.

Estamos construindo nossa democracia republicana a duras penas, com avanços e retrocessos. Não há democracia e civilidade republicana sem respeito a todas as pessoas e sem a luta por suprimir desigualdades espúrias. A ocupação de um cargo público requer transparência dos atos de quem o ocupa, mas não é uma porta escancarada para que o desrespeito e a desqualificação seja feita de forma contrária ao que se busca atualmente na sociedade brasileira: a ocupação de cargos públicos por mulheres e pessoas negras, além de representantes dos mais diversos segmentos da população. Em um país em que tivemos uma vereadora negra assassinada e representantes políticas negras sofrem ameaças de morte constantes, esse tipo de informação apenas colabora para o ambiente de intensificação da violência política de gênero.

Manifestamos aqui todo repúdio a um tipo de jornalismo que não faz jus à profissão cuja missão é promover a informação, para que as pessoas constituintes do poder político possam tomar as melhores decisões e escolhas. Suprimir a boa informação e espalhar informações que escamoteiam o que é importante e reforça preconceitos é atacar o próprio direito de escolha e de escrutínio sobre o mundo.  Em nome da defesa de valores éticos e referentes ao respeito necessário para o convívio social e político democráticos e republicanos, exigimos que esse tipo de prática jornalística não seja realizada.

Ao invés disso, ansiamos para construir uma gestão pública mais igualitária e mais sensível aos problemas de nosso país. A desigualdade de gênero é um de seus problemas e, nesse ponto, a dimensão dos espaços de poder e decisão política é onde ele se demonstra mais grave, como vem demonstrando os indicadores de instituições nacionais e internacionais que acompanham o tema há décadas. Reverter essa realidade depende de um trabalho incansável e é lamentável que energia esteja sendo voltada para estancar retrocessos e não promover avanços. Igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.

Notas

[1]Documento disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2022.pdf, dados retirados da página 16.

[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/911406-bancada-feminina-aumenta-18-e-tem-2-representantes-trans/

[3] Enfermeira, formada pela Universidade Federal da Bahia, com atuação em gestão da saúde: https://br.linkedin.com/in/aline-peixoto-86b317186

[4] Administradora, deputada federal em seu segundo mandato. Sua biografia pode ser verificada em: https://www.camara.leg.br/deputados/178925/biografia

[5] Ver currículo: http://lattes.cnpq.br/5132173662388670

[6] Doutoranda em políticas públicas pela UFABC, o resumo de sua experiência pode ser verificado aqui: https://www.escavador.com/sobre/379068657/thassia-azevedo-alves

[7] Ver currículo: ID Lattes: 9716062712891724

[8] Ver currículo:  ID Lattes: 7347946471179906

[9] Disponível em: http://prefeitas.institutoalziras.org.br/censo/

 

Autoras e autores*

Alcides Gussi, Universidade Federal do Ceará

Breynner R. Oliveira, Universidade Federal de Ouro Preto

Caio Pedra, Universidade Federal de Minas Gerais

Camila De Mario, Universidade Candido Mendes

Carla Bronzo, Fundação João Pinheiro - EG

Carlos Vainer, Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Carolina Andion, Universidade do Estado de Santa Catarina - ESAG

Cibele Franzese, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Edgilson Tavares de Araújo, Universidade Federal da Bahia

Fernanda Natasha Bravo Cruz, Universidade de Brasília

Fernando Abrucio, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Filipe Souza Corrêa, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Flávio Cireno, Fundação Joaquim Nabuco - MEC

Francisco Gaetani, Fundação Getulio Vargas - EBAPE

Francisco Raniere Moreira, Universidade Federal do Cariri

Gabriela Lotta, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Gustavo Costa de Souza, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Hironobu Sano, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Jonimar Souza, Instituto Federal de Rondônia

Lady Souza, Instituto Federal de Rondônia

Lindijane de Souza Bento Almeida, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Magda de Lima Lúcio, Universidade de Brasília

Maria Aparecida Azevedo Abreu, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Maria Isabel Araújo, Fundação João Pinheiro - EG

Paulo Jannuzzi, Escola Nacional de Ciências Estatísticas - IBGE

Pedro de Almeida Costa, Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Rodrigo Horochovski, Universidade Federal do Paraná

Tânia Fischer, Universidade Federal da Bahia

Imagem divulgação.  

Na última semana tivemos a circulação de uma notícia que nos espantaria pela sua indecência jornalística, se não estivéssemos em um país que ocupa a 104.a posição no ranking global de empoderamento político [political empowerment], dentre 146 países monitorados, no Global Gender Gap Index Report [Relatório do Índice de Desigualdades de Gênero] de 2022, publicação do Fórum Econòmico Mundial (WEF)[1]. Em nossa Câmara dos Deputados, cuja representação deveria espelhar a diversidade populacional, dado o nosso sistema representativo proporcional,temos apenas 15% dos assentos ocupados por mulheres.[2]

A notícia foi circulada pelo jornal O Estado de São Paulo e intitulada "Mulheres de cinco ministros do governo Lula são nomeadas para cargos públicos". Como informação, constou apenas a relação de seis mulheres que foram apresentadas como esposas ou ex-esposa de ministros. Foram elas: Aline Peixoto[3], Rejane Dias[4], Ana Estela Haddad[5], Thássia Azevedo Alves[6], Nilza de Oliveira[7] e Carolina Gabas Stuchi[8]. No texto publicado no jornal, consta a consulta a um advogado, que apontou que tais nomeações "poderiam configurar nepotismo".

É inaceitável o nível de leviandade de uma notícia como essa. Em nenhum momento são informadas a experiência e a qualificação profissionais dessas servidoras públicas para exercer sua função. No caso de Ana Estela Haddad, por exemplo, trata-se de uma professora  titular da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), posição da qual se afastou para assumir o cargo no Governo Federal. Rejane Dias é deputada eleita pelo estado do Piauí, em seu segundo mandato. Além disso, tal notícia desconsidera que estas mulheres possuem uma trajetória extensa na área onde trabalham, sendo reconhecidas por sua competência profissional que não está relacionada a seus vínculos maritais.

A gravidade da desinformação ganha maior escala quando se percebe que o Estado de São Paulo não é apenas um jornal, mas também uma agência de notícias que serve de fonte para outros jornais de outros estados brasileiros, como, por exemplo, a Gazeta do Povo, no Paraná, e outros blogs que se sustentam na replicação de notícias.

Essa prioridade dada a fofocas palacianas, que reforçam práticas machistas arraigadas em nossa sociedade, vai de encontro aos anseios dessa própria sociedade que, desde 1988, com o estabelecimento da igualdade entre homens e mulheres, não conseguiu atingi-la de fato, tendo de aprovar, recentemente, o PL n.o 1085/23, na Câmara dos deputados, que estabelece, entre outras, medidas de fiscalização e punição de empregadores que não remunerarem igualmente homens e mulheres nas mesmas funções.

Além de ir contra esforços incessantes para que desigualdades escandalosas sejam diminuídas, tal tipo de notícia expõe as mulheres que ocupam os espaços de poder, tornando essa ocupação ainda mais custosa, trabalhosa e passível de todo tipo de violência. A violência política de gênero investida contra mulheres que, além de sua jornada doméstica de trabalho, têm a coragem de desafiar a exposição da vida pública, desestimula que mais mulheres atinjam altos postos de poder.

A igualdade de gênero é um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda 2030. Consta no Objetivo n.o 5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas. Qual a mensagem dada a meninas e mulheres, com a referida notícia?

Nesse ponto, ao invés de buscar relações conjugais de seis mulheres, por que não apontar incansavelmente as desigualdades entre homens e mulheres que persistem, década após década e que são monitoradas por instituições que se mantêm a custo de muito esforço e dedicação de suas pesquisadoras?

De acordo com censo do Instituto Alziras[9], apenas 12% dos municípios são governados por mulheres e 4% de todos os municípios são governados por mulheres negras. Em relação aos governos estaduais, temos apenas duas governadoras eleitas, Fátima Bezerra, no Rio Grande do Norte, e Raquel Lyra, em Pernambuco.

Na campanha eleitoral de 2022, muito foi cobrado a respeito da representatividade das pessoas negras, homens e mulheres e da diversidade de todos os segmentos populacionais na ocupação de funções de chefia e liderança nos cargos de governo. A paridade ainda não foi alcançada, embora muitos esforços tenham sido feitos.

Estamos construindo nossa democracia republicana a duras penas, com avanços e retrocessos. Não há democracia e civilidade republicana sem respeito a todas as pessoas e sem a luta por suprimir desigualdades espúrias. A ocupação de um cargo público requer transparência dos atos de quem o ocupa, mas não é uma porta escancarada para que o desrespeito e a desqualificação seja feita de forma contrária ao que se busca atualmente na sociedade brasileira: a ocupação de cargos públicos por mulheres e pessoas negras, além de representantes dos mais diversos segmentos da população. Em um país em que tivemos uma vereadora negra assassinada e representantes políticas negras sofrem ameaças de morte constantes, esse tipo de informação apenas colabora para o ambiente de intensificação da violência política de gênero.

Manifestamos aqui todo repúdio a um tipo de jornalismo que não faz jus à profissão cuja missão é promover a informação, para que as pessoas constituintes do poder político possam tomar as melhores decisões e escolhas. Suprimir a boa informação e espalhar informações que escamoteiam o que é importante e reforça preconceitos é atacar o próprio direito de escolha e de escrutínio sobre o mundo.  Em nome da defesa de valores éticos e referentes ao respeito necessário para o convívio social e político democráticos e republicanos, exigimos que esse tipo de prática jornalística não seja realizada.

Ao invés disso, ansiamos para construir uma gestão pública mais igualitária e mais sensível aos problemas de nosso país. A desigualdade de gênero é um de seus problemas e, nesse ponto, a dimensão dos espaços de poder e decisão política é onde ele se demonstra mais grave, como vem demonstrando os indicadores de instituições nacionais e internacionais que acompanham o tema há décadas. Reverter essa realidade depende de um trabalho incansável e é lamentável que energia esteja sendo voltada para estancar retrocessos e não promover avanços. Igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.

Notas

[1]Documento disponível em: https://www3.weforum.org/docs/WEF_GGGR_2022.pdf, dados retirados da página 16.

[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/911406-bancada-feminina-aumenta-18-e-tem-2-representantes-trans/

[3] Enfermeira, formada pela Universidade Federal da Bahia, com atuação em gestão da saúde: https://br.linkedin.com/in/aline-peixoto-86b317186

[4] Administradora, deputada federal em seu segundo mandato. Sua biografia pode ser verificada em: https://www.camara.leg.br/deputados/178925/biografia

[5] Ver currículo: http://lattes.cnpq.br/5132173662388670

[6] Doutoranda em políticas públicas pela UFABC, o resumo de sua experiência pode ser verificado aqui: https://www.escavador.com/sobre/379068657/thassia-azevedo-alves

[7] Ver currículo: ID Lattes: 9716062712891724

[8] Ver currículo:  ID Lattes: 7347946471179906

[9] Disponível em: http://prefeitas.institutoalziras.org.br/censo/

 

Autoras e autores*

Alcides Gussi, Universidade Federal do Ceará

Breynner R. Oliveira, Universidade Federal de Ouro Preto

Caio Pedra, Universidade Federal de Minas Gerais

Camila De Mario, Universidade Candido Mendes

Carla Bronzo, Fundação João Pinheiro - EG

Carlos Vainer, Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Carolina Andion, Universidade do Estado de Santa Catarina - ESAG

Cibele Franzese, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Edgilson Tavares de Araújo, Universidade Federal da Bahia

Fernanda Natasha Bravo Cruz, Universidade de Brasília

Fernando Abrucio, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Filipe Souza Corrêa, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Flávio Cireno, Fundação Joaquim Nabuco - MEC

Francisco Gaetani, Fundação Getulio Vargas - EBAPE

Francisco Raniere Moreira, Universidade Federal do Cariri

Gabriela Lotta, Fundação Getulio Vargas - EAESP

Gustavo Costa de Souza, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Hironobu Sano, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Jonimar Souza, Instituto Federal de Rondônia

Lady Souza, Instituto Federal de Rondônia

Lindijane de Souza Bento Almeida, Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Magda de Lima Lúcio, Universidade de Brasília

Maria Aparecida Azevedo Abreu, Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPPUR

Maria Isabel Araújo, Fundação João Pinheiro - EG

Paulo Jannuzzi, Escola Nacional de Ciências Estatísticas - IBGE

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Rodrigo Horochovski, Universidade Federal do Paraná

Tânia Fischer, Universidade Federal da Bahia

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