Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Quem tem medo das multas do Cade?


Por Redação

Para ter efeito dissuasório, as multas aplicadas precisam indicar às empresas que a prática do cartel não vale a pena.

 

 Foto: arquivo pessoal.
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Adilson Santana de Carvalho é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Bacharel em Direito pela UnB e Mestre em Economia pela FGV-EPPG

As multas pecuniárias aplicadas pelo Conselho Econômico de Defesa Econômica (Cade) são o principal instrumento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para combate a cartéis.  Como se sabe, os cartéis prejudicam o ambiente concorrencial porque permitem às empresas em conluio praticarem preços acima do que seria praticado caso o cartel não existisse. Isso gera enormes prejuízos ao consumidor, que tem que pagar mais caro pelo produto ou serviço adquirido. Embora no Brasil a prática seja crime e os prejudicados possam pleitear na justiça indenizações pelos danos sofridos, há ainda poucos casos de condenações criminais ou de reparações civis, restando às multas do Cade o papel de principal instrumento da política de combate aos cartéis. Nesse contexto, o valor da multa aplicada pela autarquia, ou a expectativa em relação a esse valor, tem uma função fundamental na decisão das empresas de participarem ou não de um cartel. Achar o ponto ótimo para as multas pecuniárias é, portanto, fundamental para a eficácia da atuação do Cade.

O debate sobre o cálculo ou não da vantagem auferida pelas empresas pela participação em cartel está presente nas discussões do tribunal há anos. Se a discussão continua viva entre os conselheiros em diferentes composições do colegiado, é sinal de que, no mínimo, desconfia-se que as multas que vêm sendo aplicadas podem ser muito baixas para desincentivar a prática.

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Uma rápida comparação com os sistemas europeu e norte-americano corroboram essa hipótese. No sistema europeu, a multa pecuniária aos condenados por cartel é calculada com base nas vendas realizadas no mercado afetado, levando-se em conta todo o período da conduta, mais uma taxa de 15% a 25%, independente da duração do cartel, a título de dissuasão da conduta. Nos Estados Unidos, na mesma linha, também se leva em conta todo o período da conduta no mercado afetado e pressupõe-se um sobrepreço (percentual acima do normal) de no mínimo 10%. Já no sistema brasileiro, o processo de dosimetria não leva em conta todo o período da conduta. A multa é calculada, como regra, com base no faturamento do ano anterior à instauração do processo administrativo. Além disso, a regra da lei de defesa da concorrência, que determina que a multa nunca pode ser inferior à vantagem auferida pelo praticante do ato ilícito, apesar de gerar muita discussão no tribunal, raramente é aplicada na prática.

Em 2022 analisei 209 situações de aplicação de multas pelo Cade a empresas condenadas por cartel, em 153 processos, julgados de 2012 a 2021. O objetivo era comparar as multas efetivamente aplicadas pelo Cade com o que seria o mínimo necessário para criar um desincentivo à prática de cartel, de acordo com a teoria econômica. A conta é simples: se o valor da multa esperada é maior que os ganhos com a cartelização, não vale a pena fazer cartel e tem-se, portanto, o desejado efeito dissuasório. Caso contrário, se os ganhos com a conduta ilícita são maiores que o valor pecuniário da punição pela autoridade antitruste, a prática do cartel é financeiramente vantajosa e continuará sendo praticada.

Os resultados indicam que o Cade pode estar sendo pouco eficaz em sua tarefa de desincentivar a prática de cartel. Isso porque, na simulação em diversos cenários, com os três diferentes modelos e variações nas estimativas para sobrepreço e probabilidade de punição, em todos eles a alíquota aplicada pelo Cade é inferior à ideal para o mínimo de dissuasão.

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As razões para essa disparidade entre o ideal e o real podem ser várias e precisam ser melhor investigadas. Salta aos olhos, no entanto, o fato de a fórmula básica de cálculo da multa pelo Cade não levar em conta todo o período de participação da empresa condenada no cartel. Considerando que a duração média dos cartéis gira em torno de 6 a 7 anos, tomar por base apenas um único ano da conduta tende, de fato, a gerar distorções importantes no cálculo da multa, afetando diretamente seu efeito dissuasório.

Essa percepção está em linha com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que, em relatório publicado em 2019 sobre as virtudes e fragilidades do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, recomendou que o Brasil adequasse seu mecanismo de cálculo das multas a cartéis, a fim de que se torne mais alinhado à prática internacional e como forma de garantir que as sanções sejam suficientemente dissuasórias.

O Cade também reconhece oficialmente essa lacuna, já que, na proposta de Guia de Dosimetria, em fase de consulta pública desde 2020, sugere um sistema de cálculo da multa que, além de estabelecer alíquota mínima elevada para os casos de cartel, também passa a levar em conta todo o período de duração do conluio.

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A inclusão de todo o período da conduta na base de cálculo para a multa do cartel, caso a mudança venha de fato a ser adotada, deverá dar às sanções pecuniárias aplicadas pela autoridade antitruste brasileira maior poder de dissuasão. Alterar esse aspecto, no entanto, pode exigir mudanças legislativas, que nem sempre ocorrem no tempo necessário.

O mais importante nesse cenário é, primeiro, reconhecer que os incentivos são determinantes para os efeitos da política de defesa da concorrência. Além disso, já que se reconhece que a decisão de participar ou não de um cartel depende da estrutura de incentivos, o sistema de dosimetria precisa estar alinhado com essa dinâmica.

Se o alinhamento virá pela inclusão do período completo da conduta na fórmula de cálculo ou por outra forma de aprimoramento no mecanismo de dosimetria, se requererá mudança legislativa ou mudança na jurisprudência do tribunal, vai depender das possibilidades políticas e jurídicas.

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O que não parece ser uma opção, sob pena de ineficácia da política de combate aos cartéis, é a existência de um ambiente em que os praticantes deixem de temer a atuação do Cade e tenham motivos para avaliar que fazer cartel vale a pena.

Nota

Esse texto é fruto de parceria entre o Diálogos Públicos e o Gestão, Política & Sociedade.

Para ter efeito dissuasório, as multas aplicadas precisam indicar às empresas que a prática do cartel não vale a pena.

 

 Foto: arquivo pessoal.

Adilson Santana de Carvalho é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Bacharel em Direito pela UnB e Mestre em Economia pela FGV-EPPG

As multas pecuniárias aplicadas pelo Conselho Econômico de Defesa Econômica (Cade) são o principal instrumento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para combate a cartéis.  Como se sabe, os cartéis prejudicam o ambiente concorrencial porque permitem às empresas em conluio praticarem preços acima do que seria praticado caso o cartel não existisse. Isso gera enormes prejuízos ao consumidor, que tem que pagar mais caro pelo produto ou serviço adquirido. Embora no Brasil a prática seja crime e os prejudicados possam pleitear na justiça indenizações pelos danos sofridos, há ainda poucos casos de condenações criminais ou de reparações civis, restando às multas do Cade o papel de principal instrumento da política de combate aos cartéis. Nesse contexto, o valor da multa aplicada pela autarquia, ou a expectativa em relação a esse valor, tem uma função fundamental na decisão das empresas de participarem ou não de um cartel. Achar o ponto ótimo para as multas pecuniárias é, portanto, fundamental para a eficácia da atuação do Cade.

O debate sobre o cálculo ou não da vantagem auferida pelas empresas pela participação em cartel está presente nas discussões do tribunal há anos. Se a discussão continua viva entre os conselheiros em diferentes composições do colegiado, é sinal de que, no mínimo, desconfia-se que as multas que vêm sendo aplicadas podem ser muito baixas para desincentivar a prática.

Uma rápida comparação com os sistemas europeu e norte-americano corroboram essa hipótese. No sistema europeu, a multa pecuniária aos condenados por cartel é calculada com base nas vendas realizadas no mercado afetado, levando-se em conta todo o período da conduta, mais uma taxa de 15% a 25%, independente da duração do cartel, a título de dissuasão da conduta. Nos Estados Unidos, na mesma linha, também se leva em conta todo o período da conduta no mercado afetado e pressupõe-se um sobrepreço (percentual acima do normal) de no mínimo 10%. Já no sistema brasileiro, o processo de dosimetria não leva em conta todo o período da conduta. A multa é calculada, como regra, com base no faturamento do ano anterior à instauração do processo administrativo. Além disso, a regra da lei de defesa da concorrência, que determina que a multa nunca pode ser inferior à vantagem auferida pelo praticante do ato ilícito, apesar de gerar muita discussão no tribunal, raramente é aplicada na prática.

Em 2022 analisei 209 situações de aplicação de multas pelo Cade a empresas condenadas por cartel, em 153 processos, julgados de 2012 a 2021. O objetivo era comparar as multas efetivamente aplicadas pelo Cade com o que seria o mínimo necessário para criar um desincentivo à prática de cartel, de acordo com a teoria econômica. A conta é simples: se o valor da multa esperada é maior que os ganhos com a cartelização, não vale a pena fazer cartel e tem-se, portanto, o desejado efeito dissuasório. Caso contrário, se os ganhos com a conduta ilícita são maiores que o valor pecuniário da punição pela autoridade antitruste, a prática do cartel é financeiramente vantajosa e continuará sendo praticada.

Os resultados indicam que o Cade pode estar sendo pouco eficaz em sua tarefa de desincentivar a prática de cartel. Isso porque, na simulação em diversos cenários, com os três diferentes modelos e variações nas estimativas para sobrepreço e probabilidade de punição, em todos eles a alíquota aplicada pelo Cade é inferior à ideal para o mínimo de dissuasão.

As razões para essa disparidade entre o ideal e o real podem ser várias e precisam ser melhor investigadas. Salta aos olhos, no entanto, o fato de a fórmula básica de cálculo da multa pelo Cade não levar em conta todo o período de participação da empresa condenada no cartel. Considerando que a duração média dos cartéis gira em torno de 6 a 7 anos, tomar por base apenas um único ano da conduta tende, de fato, a gerar distorções importantes no cálculo da multa, afetando diretamente seu efeito dissuasório.

Essa percepção está em linha com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que, em relatório publicado em 2019 sobre as virtudes e fragilidades do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, recomendou que o Brasil adequasse seu mecanismo de cálculo das multas a cartéis, a fim de que se torne mais alinhado à prática internacional e como forma de garantir que as sanções sejam suficientemente dissuasórias.

O Cade também reconhece oficialmente essa lacuna, já que, na proposta de Guia de Dosimetria, em fase de consulta pública desde 2020, sugere um sistema de cálculo da multa que, além de estabelecer alíquota mínima elevada para os casos de cartel, também passa a levar em conta todo o período de duração do conluio.

A inclusão de todo o período da conduta na base de cálculo para a multa do cartel, caso a mudança venha de fato a ser adotada, deverá dar às sanções pecuniárias aplicadas pela autoridade antitruste brasileira maior poder de dissuasão. Alterar esse aspecto, no entanto, pode exigir mudanças legislativas, que nem sempre ocorrem no tempo necessário.

O mais importante nesse cenário é, primeiro, reconhecer que os incentivos são determinantes para os efeitos da política de defesa da concorrência. Além disso, já que se reconhece que a decisão de participar ou não de um cartel depende da estrutura de incentivos, o sistema de dosimetria precisa estar alinhado com essa dinâmica.

Se o alinhamento virá pela inclusão do período completo da conduta na fórmula de cálculo ou por outra forma de aprimoramento no mecanismo de dosimetria, se requererá mudança legislativa ou mudança na jurisprudência do tribunal, vai depender das possibilidades políticas e jurídicas.

O que não parece ser uma opção, sob pena de ineficácia da política de combate aos cartéis, é a existência de um ambiente em que os praticantes deixem de temer a atuação do Cade e tenham motivos para avaliar que fazer cartel vale a pena.

Nota

Esse texto é fruto de parceria entre o Diálogos Públicos e o Gestão, Política & Sociedade.

Para ter efeito dissuasório, as multas aplicadas precisam indicar às empresas que a prática do cartel não vale a pena.

 

 Foto: arquivo pessoal.

Adilson Santana de Carvalho é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Bacharel em Direito pela UnB e Mestre em Economia pela FGV-EPPG

As multas pecuniárias aplicadas pelo Conselho Econômico de Defesa Econômica (Cade) são o principal instrumento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para combate a cartéis.  Como se sabe, os cartéis prejudicam o ambiente concorrencial porque permitem às empresas em conluio praticarem preços acima do que seria praticado caso o cartel não existisse. Isso gera enormes prejuízos ao consumidor, que tem que pagar mais caro pelo produto ou serviço adquirido. Embora no Brasil a prática seja crime e os prejudicados possam pleitear na justiça indenizações pelos danos sofridos, há ainda poucos casos de condenações criminais ou de reparações civis, restando às multas do Cade o papel de principal instrumento da política de combate aos cartéis. Nesse contexto, o valor da multa aplicada pela autarquia, ou a expectativa em relação a esse valor, tem uma função fundamental na decisão das empresas de participarem ou não de um cartel. Achar o ponto ótimo para as multas pecuniárias é, portanto, fundamental para a eficácia da atuação do Cade.

O debate sobre o cálculo ou não da vantagem auferida pelas empresas pela participação em cartel está presente nas discussões do tribunal há anos. Se a discussão continua viva entre os conselheiros em diferentes composições do colegiado, é sinal de que, no mínimo, desconfia-se que as multas que vêm sendo aplicadas podem ser muito baixas para desincentivar a prática.

Uma rápida comparação com os sistemas europeu e norte-americano corroboram essa hipótese. No sistema europeu, a multa pecuniária aos condenados por cartel é calculada com base nas vendas realizadas no mercado afetado, levando-se em conta todo o período da conduta, mais uma taxa de 15% a 25%, independente da duração do cartel, a título de dissuasão da conduta. Nos Estados Unidos, na mesma linha, também se leva em conta todo o período da conduta no mercado afetado e pressupõe-se um sobrepreço (percentual acima do normal) de no mínimo 10%. Já no sistema brasileiro, o processo de dosimetria não leva em conta todo o período da conduta. A multa é calculada, como regra, com base no faturamento do ano anterior à instauração do processo administrativo. Além disso, a regra da lei de defesa da concorrência, que determina que a multa nunca pode ser inferior à vantagem auferida pelo praticante do ato ilícito, apesar de gerar muita discussão no tribunal, raramente é aplicada na prática.

Em 2022 analisei 209 situações de aplicação de multas pelo Cade a empresas condenadas por cartel, em 153 processos, julgados de 2012 a 2021. O objetivo era comparar as multas efetivamente aplicadas pelo Cade com o que seria o mínimo necessário para criar um desincentivo à prática de cartel, de acordo com a teoria econômica. A conta é simples: se o valor da multa esperada é maior que os ganhos com a cartelização, não vale a pena fazer cartel e tem-se, portanto, o desejado efeito dissuasório. Caso contrário, se os ganhos com a conduta ilícita são maiores que o valor pecuniário da punição pela autoridade antitruste, a prática do cartel é financeiramente vantajosa e continuará sendo praticada.

Os resultados indicam que o Cade pode estar sendo pouco eficaz em sua tarefa de desincentivar a prática de cartel. Isso porque, na simulação em diversos cenários, com os três diferentes modelos e variações nas estimativas para sobrepreço e probabilidade de punição, em todos eles a alíquota aplicada pelo Cade é inferior à ideal para o mínimo de dissuasão.

As razões para essa disparidade entre o ideal e o real podem ser várias e precisam ser melhor investigadas. Salta aos olhos, no entanto, o fato de a fórmula básica de cálculo da multa pelo Cade não levar em conta todo o período de participação da empresa condenada no cartel. Considerando que a duração média dos cartéis gira em torno de 6 a 7 anos, tomar por base apenas um único ano da conduta tende, de fato, a gerar distorções importantes no cálculo da multa, afetando diretamente seu efeito dissuasório.

Essa percepção está em linha com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que, em relatório publicado em 2019 sobre as virtudes e fragilidades do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, recomendou que o Brasil adequasse seu mecanismo de cálculo das multas a cartéis, a fim de que se torne mais alinhado à prática internacional e como forma de garantir que as sanções sejam suficientemente dissuasórias.

O Cade também reconhece oficialmente essa lacuna, já que, na proposta de Guia de Dosimetria, em fase de consulta pública desde 2020, sugere um sistema de cálculo da multa que, além de estabelecer alíquota mínima elevada para os casos de cartel, também passa a levar em conta todo o período de duração do conluio.

A inclusão de todo o período da conduta na base de cálculo para a multa do cartel, caso a mudança venha de fato a ser adotada, deverá dar às sanções pecuniárias aplicadas pela autoridade antitruste brasileira maior poder de dissuasão. Alterar esse aspecto, no entanto, pode exigir mudanças legislativas, que nem sempre ocorrem no tempo necessário.

O mais importante nesse cenário é, primeiro, reconhecer que os incentivos são determinantes para os efeitos da política de defesa da concorrência. Além disso, já que se reconhece que a decisão de participar ou não de um cartel depende da estrutura de incentivos, o sistema de dosimetria precisa estar alinhado com essa dinâmica.

Se o alinhamento virá pela inclusão do período completo da conduta na fórmula de cálculo ou por outra forma de aprimoramento no mecanismo de dosimetria, se requererá mudança legislativa ou mudança na jurisprudência do tribunal, vai depender das possibilidades políticas e jurídicas.

O que não parece ser uma opção, sob pena de ineficácia da política de combate aos cartéis, é a existência de um ambiente em que os praticantes deixem de temer a atuação do Cade e tenham motivos para avaliar que fazer cartel vale a pena.

Nota

Esse texto é fruto de parceria entre o Diálogos Públicos e o Gestão, Política & Sociedade.

Para ter efeito dissuasório, as multas aplicadas precisam indicar às empresas que a prática do cartel não vale a pena.

 

 Foto: arquivo pessoal.

Adilson Santana de Carvalho é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Bacharel em Direito pela UnB e Mestre em Economia pela FGV-EPPG

As multas pecuniárias aplicadas pelo Conselho Econômico de Defesa Econômica (Cade) são o principal instrumento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para combate a cartéis.  Como se sabe, os cartéis prejudicam o ambiente concorrencial porque permitem às empresas em conluio praticarem preços acima do que seria praticado caso o cartel não existisse. Isso gera enormes prejuízos ao consumidor, que tem que pagar mais caro pelo produto ou serviço adquirido. Embora no Brasil a prática seja crime e os prejudicados possam pleitear na justiça indenizações pelos danos sofridos, há ainda poucos casos de condenações criminais ou de reparações civis, restando às multas do Cade o papel de principal instrumento da política de combate aos cartéis. Nesse contexto, o valor da multa aplicada pela autarquia, ou a expectativa em relação a esse valor, tem uma função fundamental na decisão das empresas de participarem ou não de um cartel. Achar o ponto ótimo para as multas pecuniárias é, portanto, fundamental para a eficácia da atuação do Cade.

O debate sobre o cálculo ou não da vantagem auferida pelas empresas pela participação em cartel está presente nas discussões do tribunal há anos. Se a discussão continua viva entre os conselheiros em diferentes composições do colegiado, é sinal de que, no mínimo, desconfia-se que as multas que vêm sendo aplicadas podem ser muito baixas para desincentivar a prática.

Uma rápida comparação com os sistemas europeu e norte-americano corroboram essa hipótese. No sistema europeu, a multa pecuniária aos condenados por cartel é calculada com base nas vendas realizadas no mercado afetado, levando-se em conta todo o período da conduta, mais uma taxa de 15% a 25%, independente da duração do cartel, a título de dissuasão da conduta. Nos Estados Unidos, na mesma linha, também se leva em conta todo o período da conduta no mercado afetado e pressupõe-se um sobrepreço (percentual acima do normal) de no mínimo 10%. Já no sistema brasileiro, o processo de dosimetria não leva em conta todo o período da conduta. A multa é calculada, como regra, com base no faturamento do ano anterior à instauração do processo administrativo. Além disso, a regra da lei de defesa da concorrência, que determina que a multa nunca pode ser inferior à vantagem auferida pelo praticante do ato ilícito, apesar de gerar muita discussão no tribunal, raramente é aplicada na prática.

Em 2022 analisei 209 situações de aplicação de multas pelo Cade a empresas condenadas por cartel, em 153 processos, julgados de 2012 a 2021. O objetivo era comparar as multas efetivamente aplicadas pelo Cade com o que seria o mínimo necessário para criar um desincentivo à prática de cartel, de acordo com a teoria econômica. A conta é simples: se o valor da multa esperada é maior que os ganhos com a cartelização, não vale a pena fazer cartel e tem-se, portanto, o desejado efeito dissuasório. Caso contrário, se os ganhos com a conduta ilícita são maiores que o valor pecuniário da punição pela autoridade antitruste, a prática do cartel é financeiramente vantajosa e continuará sendo praticada.

Os resultados indicam que o Cade pode estar sendo pouco eficaz em sua tarefa de desincentivar a prática de cartel. Isso porque, na simulação em diversos cenários, com os três diferentes modelos e variações nas estimativas para sobrepreço e probabilidade de punição, em todos eles a alíquota aplicada pelo Cade é inferior à ideal para o mínimo de dissuasão.

As razões para essa disparidade entre o ideal e o real podem ser várias e precisam ser melhor investigadas. Salta aos olhos, no entanto, o fato de a fórmula básica de cálculo da multa pelo Cade não levar em conta todo o período de participação da empresa condenada no cartel. Considerando que a duração média dos cartéis gira em torno de 6 a 7 anos, tomar por base apenas um único ano da conduta tende, de fato, a gerar distorções importantes no cálculo da multa, afetando diretamente seu efeito dissuasório.

Essa percepção está em linha com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que, em relatório publicado em 2019 sobre as virtudes e fragilidades do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, recomendou que o Brasil adequasse seu mecanismo de cálculo das multas a cartéis, a fim de que se torne mais alinhado à prática internacional e como forma de garantir que as sanções sejam suficientemente dissuasórias.

O Cade também reconhece oficialmente essa lacuna, já que, na proposta de Guia de Dosimetria, em fase de consulta pública desde 2020, sugere um sistema de cálculo da multa que, além de estabelecer alíquota mínima elevada para os casos de cartel, também passa a levar em conta todo o período de duração do conluio.

A inclusão de todo o período da conduta na base de cálculo para a multa do cartel, caso a mudança venha de fato a ser adotada, deverá dar às sanções pecuniárias aplicadas pela autoridade antitruste brasileira maior poder de dissuasão. Alterar esse aspecto, no entanto, pode exigir mudanças legislativas, que nem sempre ocorrem no tempo necessário.

O mais importante nesse cenário é, primeiro, reconhecer que os incentivos são determinantes para os efeitos da política de defesa da concorrência. Além disso, já que se reconhece que a decisão de participar ou não de um cartel depende da estrutura de incentivos, o sistema de dosimetria precisa estar alinhado com essa dinâmica.

Se o alinhamento virá pela inclusão do período completo da conduta na fórmula de cálculo ou por outra forma de aprimoramento no mecanismo de dosimetria, se requererá mudança legislativa ou mudança na jurisprudência do tribunal, vai depender das possibilidades políticas e jurídicas.

O que não parece ser uma opção, sob pena de ineficácia da política de combate aos cartéis, é a existência de um ambiente em que os praticantes deixem de temer a atuação do Cade e tenham motivos para avaliar que fazer cartel vale a pena.

Nota

Esse texto é fruto de parceria entre o Diálogos Públicos e o Gestão, Política & Sociedade.

Para ter efeito dissuasório, as multas aplicadas precisam indicar às empresas que a prática do cartel não vale a pena.

 

 Foto: arquivo pessoal.

Adilson Santana de Carvalho é integrante da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Bacharel em Direito pela UnB e Mestre em Economia pela FGV-EPPG

As multas pecuniárias aplicadas pelo Conselho Econômico de Defesa Econômica (Cade) são o principal instrumento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência para combate a cartéis.  Como se sabe, os cartéis prejudicam o ambiente concorrencial porque permitem às empresas em conluio praticarem preços acima do que seria praticado caso o cartel não existisse. Isso gera enormes prejuízos ao consumidor, que tem que pagar mais caro pelo produto ou serviço adquirido. Embora no Brasil a prática seja crime e os prejudicados possam pleitear na justiça indenizações pelos danos sofridos, há ainda poucos casos de condenações criminais ou de reparações civis, restando às multas do Cade o papel de principal instrumento da política de combate aos cartéis. Nesse contexto, o valor da multa aplicada pela autarquia, ou a expectativa em relação a esse valor, tem uma função fundamental na decisão das empresas de participarem ou não de um cartel. Achar o ponto ótimo para as multas pecuniárias é, portanto, fundamental para a eficácia da atuação do Cade.

O debate sobre o cálculo ou não da vantagem auferida pelas empresas pela participação em cartel está presente nas discussões do tribunal há anos. Se a discussão continua viva entre os conselheiros em diferentes composições do colegiado, é sinal de que, no mínimo, desconfia-se que as multas que vêm sendo aplicadas podem ser muito baixas para desincentivar a prática.

Uma rápida comparação com os sistemas europeu e norte-americano corroboram essa hipótese. No sistema europeu, a multa pecuniária aos condenados por cartel é calculada com base nas vendas realizadas no mercado afetado, levando-se em conta todo o período da conduta, mais uma taxa de 15% a 25%, independente da duração do cartel, a título de dissuasão da conduta. Nos Estados Unidos, na mesma linha, também se leva em conta todo o período da conduta no mercado afetado e pressupõe-se um sobrepreço (percentual acima do normal) de no mínimo 10%. Já no sistema brasileiro, o processo de dosimetria não leva em conta todo o período da conduta. A multa é calculada, como regra, com base no faturamento do ano anterior à instauração do processo administrativo. Além disso, a regra da lei de defesa da concorrência, que determina que a multa nunca pode ser inferior à vantagem auferida pelo praticante do ato ilícito, apesar de gerar muita discussão no tribunal, raramente é aplicada na prática.

Em 2022 analisei 209 situações de aplicação de multas pelo Cade a empresas condenadas por cartel, em 153 processos, julgados de 2012 a 2021. O objetivo era comparar as multas efetivamente aplicadas pelo Cade com o que seria o mínimo necessário para criar um desincentivo à prática de cartel, de acordo com a teoria econômica. A conta é simples: se o valor da multa esperada é maior que os ganhos com a cartelização, não vale a pena fazer cartel e tem-se, portanto, o desejado efeito dissuasório. Caso contrário, se os ganhos com a conduta ilícita são maiores que o valor pecuniário da punição pela autoridade antitruste, a prática do cartel é financeiramente vantajosa e continuará sendo praticada.

Os resultados indicam que o Cade pode estar sendo pouco eficaz em sua tarefa de desincentivar a prática de cartel. Isso porque, na simulação em diversos cenários, com os três diferentes modelos e variações nas estimativas para sobrepreço e probabilidade de punição, em todos eles a alíquota aplicada pelo Cade é inferior à ideal para o mínimo de dissuasão.

As razões para essa disparidade entre o ideal e o real podem ser várias e precisam ser melhor investigadas. Salta aos olhos, no entanto, o fato de a fórmula básica de cálculo da multa pelo Cade não levar em conta todo o período de participação da empresa condenada no cartel. Considerando que a duração média dos cartéis gira em torno de 6 a 7 anos, tomar por base apenas um único ano da conduta tende, de fato, a gerar distorções importantes no cálculo da multa, afetando diretamente seu efeito dissuasório.

Essa percepção está em linha com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que, em relatório publicado em 2019 sobre as virtudes e fragilidades do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, recomendou que o Brasil adequasse seu mecanismo de cálculo das multas a cartéis, a fim de que se torne mais alinhado à prática internacional e como forma de garantir que as sanções sejam suficientemente dissuasórias.

O Cade também reconhece oficialmente essa lacuna, já que, na proposta de Guia de Dosimetria, em fase de consulta pública desde 2020, sugere um sistema de cálculo da multa que, além de estabelecer alíquota mínima elevada para os casos de cartel, também passa a levar em conta todo o período de duração do conluio.

A inclusão de todo o período da conduta na base de cálculo para a multa do cartel, caso a mudança venha de fato a ser adotada, deverá dar às sanções pecuniárias aplicadas pela autoridade antitruste brasileira maior poder de dissuasão. Alterar esse aspecto, no entanto, pode exigir mudanças legislativas, que nem sempre ocorrem no tempo necessário.

O mais importante nesse cenário é, primeiro, reconhecer que os incentivos são determinantes para os efeitos da política de defesa da concorrência. Além disso, já que se reconhece que a decisão de participar ou não de um cartel depende da estrutura de incentivos, o sistema de dosimetria precisa estar alinhado com essa dinâmica.

Se o alinhamento virá pela inclusão do período completo da conduta na fórmula de cálculo ou por outra forma de aprimoramento no mecanismo de dosimetria, se requererá mudança legislativa ou mudança na jurisprudência do tribunal, vai depender das possibilidades políticas e jurídicas.

O que não parece ser uma opção, sob pena de ineficácia da política de combate aos cartéis, é a existência de um ambiente em que os praticantes deixem de temer a atuação do Cade e tenham motivos para avaliar que fazer cartel vale a pena.

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