Leonardo Barros Soares, Mestre e Doutor em ciência política pela UFMG. Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da UFV e Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFPA. Coordenador do grupo de pesquisa Política e Povos Indígenas nas Américas (POPIAM) e da ABCP Indígena. E-mail: leonardo.b.soares@ufv.br.
E o Brasil acordou descobrindo a existência de indígenas bolsonaristas. Após a noite de fúria dos bolsonaristas, que findou com um arremedo de invasão do Capitólio, o país assiste atônito à notícia de que o "pretexto" para tais atos criminosos e tresloucados foi a prisão de um "índio bolsonarista", assim mesmo, com aspas, como a designar um paroxismo. A figura é mesmo ímpar: o cacique José Acácio Tsererê é indígena do povo Xavante, do estado do Mato Grosso, pastor evangélico que já fora condenado por tráfico de drogas, cuja prisão, autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, se deu por sua participação em ações diretas no grande conjunto de atos antidemocráticos pós-eleição de Luís Inácio Lula da Silva em outubro passado.
Pensando melhor, é possível que Tsererê não seja tão singular assim, pois representa um grupo que, visivelmente, ganhou forma, conteúdo e intensidade durante os quatro anos da administração federal de Bolsonaro, qual seja, o grupo dos indígenas que esposam ideologias de direita ou de extrema-direita. Como ainda se trata de um fenômeno com pouca visibilidade e debate público, gostaria de oferecer aqui, nesse texto, alguns pensamentos sobre a questão em tela, partir de minha percepção de pesquisador e observador interessado em política indígena e indigenista em nosso país.
Em primeiro lugar, penso que é importante tentar sugerir uma definição, ainda que provisória, do que compreendemos como "indígenas bolsonaristas". A meu juízo, tratam-se de indivíduos indígenas que orientam suas ações políticas pela cosmovisão que abrange ultraliberalismo econômico, militarismo e uma forte agenda moralista amparada pela gramática moral e institucional do cristianismo, sobretudo o de matriz neopentecostal.
No que se refere às questões concernentes especificamente à população indígena, essa pauta genérica se traduz em: apoio à liberação de atividades de exploração econômica no interior de terras indígenas (garimpo, mineração, pecuária extensiva, arrendamento para plantações de larga escala, extração de madeira, estabelecimento de cassinos, liberação de pesca esportiva, dentre outras), a defesa da aquisição e porte de armas e munições atrelada à caça e a defesa da presença e expansão das missões evangélicas entre os povos indígenas, com destaque para aqueles em situação de isolamento voluntário; tendem a argumentar que organizações não-governamentais "manipulam" os povos indígenas por meio de financiamentos internacionais que, na verdade, mascarariam os interesses escusos de governos estrangeiros sobre a Amazônia; consideram que as políticas indigenistas do estado brasileiro levadas a cabo na redemocratização, em verdade, atrasam o "desenvolvimento" dos povos indígenas. Em suma, articulam uma visão de mundo conservadora que adquire matizes específicas no que se refere ao seu caráter étnico.
Em segundo lugar, julgo oportuno lembrar aos leitores e às leitoras que tratar grupos racializados como homogêneos é uma expressão do racismo, que, por sua vez, é um dos pilares de engendramento do colonialismo como estrutura de pensamento dominante em nossa sociedade. Em outras palavras, é importante assentar, de uma vez por todas, que os povos indígenas brasileiros não pensam de forma uníssona e têm suas divergências políticas internas. É lamentável ver que, diante do fato concreto da existência de indígenas bolsonaristas, muita gente tenha reagido com perplexidade, ceticismo e com expressões pejorativas tais como "cacique fake" que estaria sendo "manipulado" pelos bolsonaristas.
Devagar com o andor aqui. Goste-se ou não, o indígena em questão não é mais ou menos indígena que seus parentes e é responsável por suas escolhas políticas. A minorização desse segmento étnico é a expressão de uma tutela paternalista que não deve mais encontrar guarida entre nós. Fingir que nada está acontecendo nunca é um bom caminho. Encaremos a dura realidade: a radicalização política pela qual passou a sociedade brasileira nos últimos anos não deixou grupo algum incólume, nem mesmo os povos originários.
Por fim, penso que o reconhecimento do fenômeno acima descrito deve servir de alerta para partidos e organizações de esquerda de que movimentos e organizações de direita estão na disputa pelos corações e mentes dos indígenas. É claro que, na condição de um dos grupos mais subalternizados da sociedade brasileira que, nunca é demais lembrar, é das mais desiguais, violentas e racistas do planeta, a aproximação entre movimentos indígenas e agentes políticos do campo da esquerda foi natural e adquiriu uma tessitura própria ao longo das décadas.
No entanto, mais recentemente, a direita política também está fazendo seu trabalho de base com grande penetração e efetividade. A condição de subalternidade não desemboca, automaticamente, numa busca pelo entendimento e superação de sua opressão. Como é sabido de há muito, o oprimido também pode aderir ao opressor, com consequências catastróficas para os primeiros. Dito de outra forma: ou a esquerda leva a sério sua relação com os povos indígenas, suas organizações e representantes ou, muito em breve, veremos um contingente cada vez maior de indígenas gravitando em torno de visões extremistas que, não raro, atentam contra a integridade de seus territórios, seu modo de viver e seus direitos fundamentais.
É preciso que os atos perpetrados por Tsererê e seus comparsas bolsonaristas sejam apurados e punidos com o rigor da lei. Isso, no entanto, não fará a questão de base sumir como por mágica. Os indígenas bolsonaristas vieram para ficar. O que faremos com isso? Cenas dos próximos capítulos.