Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

"Tá com dó? Leva pra casa": auxílio reencontro e a terceirização da responsabilidade


Por Redação

Júlia Lima, Especialista em Gestão Pública (Insper), Ex-Coordenadora de Políticas para a População em Situação de Rua de São Paulo

Kelseny Medeiros Pinho, Mestranda em Planejamento e Gestão do Território (UFABC), Pesquisadora do Laboratório de Justiça Territorial (LabJUTA)

Laura Cavalcanti Salatino, Mestranda em Administração Pública e Governo (FGV - EAESP), Advogada e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

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Marina Torres,  Graduanda em Direito (FDUSP) e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

Verônica Martines, Graduada em direito (FDUSP) e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

Durante a pandemia de Covid-19, o município de São Paulo, maior cidade da América Latina, observou um aumento de 31% de pessoas vivendo nas ruas com relação ao ano de 2019. O Censo realizado em 2021 aponta 31.884 pessoas em situação de rua na cidade, diante de uma rede de acolhimento de apenas 15 mil vagas. Trata-se, na série histórica de levantamentos municipais dessa população, da maior desproporção entre o número de pessoas em situação de calçada e pessoas acolhidas, revelando o baixo alcance das políticas oferecidas, tanto em termos numéricos quanto em efetividade.

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Diante deste cenário, o governo, a sociedade civil e os movimentos sociais têm empreendido esforços no sentido de ampliar e construir políticas públicas para o público. No entanto, existem disputas em curso sobre quais os modelos mais efetivos e adequados às necessidades dessa população. Por um lado, há a defesa e a persistência de políticas repressivas ou tutelares da população em situação de rua, por outro, há a disputa pela construção de modelos que visam atingir a autonomia a longo prazo, estabilidade financeira e acesso permanente à moradia. Esse conflito transparece em cada nova proposta apresentada e nesta semana assistimos a mais um embate que teve palco no Legislativo municipal.

Na última quarta-feira (29), a prefeitura sancionou a Lei n. 17.819/2022 que institui diversas medidas para atender a população em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo, sobretudo com relação a questões de segurança alimentar e acesso a produtos de higiene. Entre as propostas da Lei, encontram-se a Vila Reencontro, programa apresentado como moradia social, cuja função seria o acolhimento transitório - destoando das ofertas de moradia para outros grupos sociais, em que o atendimento habitacional é permanente - e o Auxílio Reencontro, que consiste em benefício financeiro a quem se dispuser e demonstrar condições de acolher a pessoa em situação de rua, o qual gostaríamos de abordar mais detidamente neste texto.

Antes de tratar das propostas em si, é preciso discutir a forma pela qual a Lei foi aprovada na Câmara dos Vereadores e sancionada pelo Prefeito Ricardo Nunes. A Lei é fruto do Projeto de Lei 427/2022 protocolado pelo Poder Executivo em 28 de junho e sancionado, às pressas, menos de 48h depois. Pela Lei Orgânica do Município de São Paulo, os projetos de lei serão apreciados em 2 (dois) turnos de discussão e votação. Pelo regimento interno da Câmara Municipal, deve ocorrer com intervalo mínimo de 48 (quarenta e oito) horas entre a primeira e a segunda votação de todos os projetos de lei.

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Considerando a urgência da Prefeitura e o recesso da Câmara Municipal previsto para iniciar no dia 01 de julho, o texto do PL 427 foi apresentado pela base do governo como um substitutivo de um projeto de lei anterior sobre restaurantes populares (PL 528/2021), já aprovado em primeira votação. Dessa forma, os proponentes do PL conseguiram pular as etapas básicas do processo legislativo, que envolvem debate com a sociedade civil por meio de audiências públicas, violando os princípios de participação e exercício de cidadania. Ressalta-se que a Prefeitura não apresentou qualquer estudo técnico ou orçamentário, pontos essenciais quando se cria um auxílio financeiro em pleno ano eleitoral.

Também pelo regimento interno da Câmara, os projetos substitutivos devem tratar do mesmo assunto do projeto original, mas o PL 427 apresentou matéria inteiramente nova, com assuntos que tocam não só a segurança alimentar e nutricional, mas também auxílios e moradia para população em situação de rua. Ainda, as Comissões legislativas, estruturas temáticas que estudam os projetos de lei, deveriam ter 48h para emitir parecer sobre o projeto substitutivo ou emitir parecer conjunto após as discussões, mas tiveram apenas uma hora para aprovar o projeto apresentado. O resultado do atropelo foi uma colcha de retalhos de proposições confusas e sem coerência entre si, transparecendo uma péssima técnica legislativa, que terceiriza questões centrais para serem definidas posteriormente pela Prefeitura em decreto regulamentador.

No trâmite de aprovação do Projeto, também foram desrespeitadas legislações específicas a respeito das políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional, à assistência social e à população em situação de rua. As temáticas tratadas no projeto aprovado deveriam envolver previamente os conselhos de participação social que tratam do tema, como o COMUSAN (Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional), o COMAS (Conselho Municipal da Assistência Social) e o Comitê PopRua (Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua), órgãos compostos por membros do governo e sociedade civil e com atribuição para discutir e/ou definir as diretrizes das políticas públicas na temática, bem como avaliá-las e monitorá-las. No entanto, nenhum dos conselhos foi consultado a respeito das novas propostas instituídas pela Lei.

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Para além de vícios formais, as políticas propostas apresentam diversos problemas em seu conteúdo, com destaque para o Auxílio Reencontro. Há, sobretudo, uma violação da autonomia e autodeterminação de pessoas em situação de rua. Ao instituir um terceiro intermediário como titular do benefício, o auxílio é o único dentro das políticas públicas municipais para adultos que não se destina diretamente para a pessoa que se encontra em situação de vulnerabilidade, demonstrando uma opção da gestão por recorrer a um acolhimento terceirizado em ambiente doméstico em detrimento de políticas que fortaleçam a independência e privacidade da população em situação de rua e sua inserção em outros serviços, como de inclusão produtiva, assistência e habitação.

A proposta vai na contramão de auxílios já existentes como o emergencial, o bolsa aluguel, o antigo bolsa-família e o auxílio municipal às mulheres vítimas de violência doméstica, entre outros, que se destinam diretamente ao público que se deseja fortalecer. Essa distinção  cria uma forma de discriminação que contraria disposições da Política Nacional e da Política Municipal da população em situação de rua, já que ambas tem como diretrizes o fomento da sua autonomia e participação direta nas políticas públicas, fruto da luta histórica dos movimentos da população de rua.

Há, ainda, a questão de que a proposta de uma política dispersa, pautada pelo acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade em espaços domésticos e privados dos quais essas pessoas não são titulares, pode produzir ainda mais riscos para pessoas em situação de rua. A Prefeitura tem sinalizado que o auxílio teria como objetivo o retorno à família, que seria a titular do benefício. No entanto, essa proposta ignora os dados do censo municipal da população em situação de rua, segundo os quais o principal motivo para se estar em situação de rua são os conflitos familiares (34,7% das pessoas em situação de rua).  Para mulheres e pessoas LGBTQIA+ a situação é ainda mais grave (37% apontam esse motivo para estar nas ruas), ainda mais quando se considera que o conflito familiar que mais leva esse público para as ruas é a violência doméstica (28,7% das ocorrências de conflito familiar). Assim, o projeto apresentado permite que possíveis agressores recebam auxílio financeiro para manter familiares que estão em situação de rua em suas casas, ignorando o fato de que muitas vezes, para essas pessoas, a casa da família pode ser um local de violência.

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Também, não pode ser ignorado o risco de escravização de pessoas em situação de rua. No ambiente urbano, uma das principais formas de trabalho forçado é o trabalho escravo doméstico, atingindo principalmente mulheres negras e geralmente apresentado como se fosse uma "troca" de serviços domésticos por moradia. Com o pagamento de um auxílio financeiro para que pessoas recebam pessoas em situação de rua em suas casas dando em troca a moradia, se reforça e amplia a possibilidade de ocorrência dessa prática de escravização.

Os riscos devem ser levados em conta principalmente considerando que pouco foi dito na legislação sobre os critérios para acolhimento e as formas de fiscalização. A isso se soma a baixa capacidade que a Prefeitura de São Paulo já apresenta para realizar a fiscalização das políticas públicas de acolhimento em equipamentos estatais, serviços geridos por organizações sociais conveniadas, que possuem contratos com a Prefeitura e atribuições claras. As condições desses espaços e a capacidade de fiscalização da Prefeitura vêm sendo questionadas por estudos e visitas organizadas pelo Legislativo e entidades da sociedade civil, que diagnosticaram situações precárias de falta de higiene, alimentos estragados e condições precárias de estrutura que não haviam sido observadas pela Prefeitura. Dessa forma, é preciso questionar: quais os mecanismos de controle e proteção que serão utilizados pela Prefeitura para acompanhar os acolhimentos privados e dispersos dadas as já presentes dificuldades encontradas para fiscalizar os serviços públicos da rede conveniada?

Além das questões colocadas com relação aos riscos, cabe mencionar que a proposta não é ancorada em nenhuma experiência prévia bem-sucedida, tratando-se de um projeto apresentado sem qualquer pesquisa ou evidência empírica, fato reforçado pela ausência de estudos técnicos e orçamentários que respaldem o projeto. Cumulado com a ausência de diálogo com a sociedade civil, o projeto destoa das demandas das pessoas em situação de rua. Como têm entendido especialistas e, principalmente, movimentos sociais formados por pessoas com experiência nessa realidade, as alternativas para essa população devem envolver a construção de serviços de moradia, que permitam maior individualidade e autonomia sobre os horários e formas de uso do local. Ainda, segundo pesquisas, políticas que ofertam moradia de caráter permanente tendem a ser mais efetivas, sobretudo para grupos com histórico de rua crônico ("rough sleepers"), como é o caso da política de moradia primeiro que tem sido implementada em várias cidades no mundo todo.

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A exclusão dos movimentos sociais e das entidades da sociedade civil do debate denuncia a fragilidade da lei aprovada, na medida em que se afasta das demandas da população em situação de rua. O projeto demonstra profunda desconexão com as lutas históricas dos movimentos na busca por políticas que sejam pautadas e que criem maior autonomia, reconhecendo o protagonismo das pessoas em situação de rua sobre sua própria vida. Resta perguntar se o reencontro em questão é, na verdade, com as mesmas fórmulas já superadas de intervenção nessa difícil realidade.

Júlia Lima, Especialista em Gestão Pública (Insper), Ex-Coordenadora de Políticas para a População em Situação de Rua de São Paulo

Kelseny Medeiros Pinho, Mestranda em Planejamento e Gestão do Território (UFABC), Pesquisadora do Laboratório de Justiça Territorial (LabJUTA)

Laura Cavalcanti Salatino, Mestranda em Administração Pública e Governo (FGV - EAESP), Advogada e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

Marina Torres,  Graduanda em Direito (FDUSP) e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

Verônica Martines, Graduada em direito (FDUSP) e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

Durante a pandemia de Covid-19, o município de São Paulo, maior cidade da América Latina, observou um aumento de 31% de pessoas vivendo nas ruas com relação ao ano de 2019. O Censo realizado em 2021 aponta 31.884 pessoas em situação de rua na cidade, diante de uma rede de acolhimento de apenas 15 mil vagas. Trata-se, na série histórica de levantamentos municipais dessa população, da maior desproporção entre o número de pessoas em situação de calçada e pessoas acolhidas, revelando o baixo alcance das políticas oferecidas, tanto em termos numéricos quanto em efetividade.

Diante deste cenário, o governo, a sociedade civil e os movimentos sociais têm empreendido esforços no sentido de ampliar e construir políticas públicas para o público. No entanto, existem disputas em curso sobre quais os modelos mais efetivos e adequados às necessidades dessa população. Por um lado, há a defesa e a persistência de políticas repressivas ou tutelares da população em situação de rua, por outro, há a disputa pela construção de modelos que visam atingir a autonomia a longo prazo, estabilidade financeira e acesso permanente à moradia. Esse conflito transparece em cada nova proposta apresentada e nesta semana assistimos a mais um embate que teve palco no Legislativo municipal.

Na última quarta-feira (29), a prefeitura sancionou a Lei n. 17.819/2022 que institui diversas medidas para atender a população em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo, sobretudo com relação a questões de segurança alimentar e acesso a produtos de higiene. Entre as propostas da Lei, encontram-se a Vila Reencontro, programa apresentado como moradia social, cuja função seria o acolhimento transitório - destoando das ofertas de moradia para outros grupos sociais, em que o atendimento habitacional é permanente - e o Auxílio Reencontro, que consiste em benefício financeiro a quem se dispuser e demonstrar condições de acolher a pessoa em situação de rua, o qual gostaríamos de abordar mais detidamente neste texto.

Antes de tratar das propostas em si, é preciso discutir a forma pela qual a Lei foi aprovada na Câmara dos Vereadores e sancionada pelo Prefeito Ricardo Nunes. A Lei é fruto do Projeto de Lei 427/2022 protocolado pelo Poder Executivo em 28 de junho e sancionado, às pressas, menos de 48h depois. Pela Lei Orgânica do Município de São Paulo, os projetos de lei serão apreciados em 2 (dois) turnos de discussão e votação. Pelo regimento interno da Câmara Municipal, deve ocorrer com intervalo mínimo de 48 (quarenta e oito) horas entre a primeira e a segunda votação de todos os projetos de lei.

Considerando a urgência da Prefeitura e o recesso da Câmara Municipal previsto para iniciar no dia 01 de julho, o texto do PL 427 foi apresentado pela base do governo como um substitutivo de um projeto de lei anterior sobre restaurantes populares (PL 528/2021), já aprovado em primeira votação. Dessa forma, os proponentes do PL conseguiram pular as etapas básicas do processo legislativo, que envolvem debate com a sociedade civil por meio de audiências públicas, violando os princípios de participação e exercício de cidadania. Ressalta-se que a Prefeitura não apresentou qualquer estudo técnico ou orçamentário, pontos essenciais quando se cria um auxílio financeiro em pleno ano eleitoral.

Também pelo regimento interno da Câmara, os projetos substitutivos devem tratar do mesmo assunto do projeto original, mas o PL 427 apresentou matéria inteiramente nova, com assuntos que tocam não só a segurança alimentar e nutricional, mas também auxílios e moradia para população em situação de rua. Ainda, as Comissões legislativas, estruturas temáticas que estudam os projetos de lei, deveriam ter 48h para emitir parecer sobre o projeto substitutivo ou emitir parecer conjunto após as discussões, mas tiveram apenas uma hora para aprovar o projeto apresentado. O resultado do atropelo foi uma colcha de retalhos de proposições confusas e sem coerência entre si, transparecendo uma péssima técnica legislativa, que terceiriza questões centrais para serem definidas posteriormente pela Prefeitura em decreto regulamentador.

No trâmite de aprovação do Projeto, também foram desrespeitadas legislações específicas a respeito das políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional, à assistência social e à população em situação de rua. As temáticas tratadas no projeto aprovado deveriam envolver previamente os conselhos de participação social que tratam do tema, como o COMUSAN (Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional), o COMAS (Conselho Municipal da Assistência Social) e o Comitê PopRua (Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua), órgãos compostos por membros do governo e sociedade civil e com atribuição para discutir e/ou definir as diretrizes das políticas públicas na temática, bem como avaliá-las e monitorá-las. No entanto, nenhum dos conselhos foi consultado a respeito das novas propostas instituídas pela Lei.

Para além de vícios formais, as políticas propostas apresentam diversos problemas em seu conteúdo, com destaque para o Auxílio Reencontro. Há, sobretudo, uma violação da autonomia e autodeterminação de pessoas em situação de rua. Ao instituir um terceiro intermediário como titular do benefício, o auxílio é o único dentro das políticas públicas municipais para adultos que não se destina diretamente para a pessoa que se encontra em situação de vulnerabilidade, demonstrando uma opção da gestão por recorrer a um acolhimento terceirizado em ambiente doméstico em detrimento de políticas que fortaleçam a independência e privacidade da população em situação de rua e sua inserção em outros serviços, como de inclusão produtiva, assistência e habitação.

A proposta vai na contramão de auxílios já existentes como o emergencial, o bolsa aluguel, o antigo bolsa-família e o auxílio municipal às mulheres vítimas de violência doméstica, entre outros, que se destinam diretamente ao público que se deseja fortalecer. Essa distinção  cria uma forma de discriminação que contraria disposições da Política Nacional e da Política Municipal da população em situação de rua, já que ambas tem como diretrizes o fomento da sua autonomia e participação direta nas políticas públicas, fruto da luta histórica dos movimentos da população de rua.

Há, ainda, a questão de que a proposta de uma política dispersa, pautada pelo acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade em espaços domésticos e privados dos quais essas pessoas não são titulares, pode produzir ainda mais riscos para pessoas em situação de rua. A Prefeitura tem sinalizado que o auxílio teria como objetivo o retorno à família, que seria a titular do benefício. No entanto, essa proposta ignora os dados do censo municipal da população em situação de rua, segundo os quais o principal motivo para se estar em situação de rua são os conflitos familiares (34,7% das pessoas em situação de rua).  Para mulheres e pessoas LGBTQIA+ a situação é ainda mais grave (37% apontam esse motivo para estar nas ruas), ainda mais quando se considera que o conflito familiar que mais leva esse público para as ruas é a violência doméstica (28,7% das ocorrências de conflito familiar). Assim, o projeto apresentado permite que possíveis agressores recebam auxílio financeiro para manter familiares que estão em situação de rua em suas casas, ignorando o fato de que muitas vezes, para essas pessoas, a casa da família pode ser um local de violência.

Também, não pode ser ignorado o risco de escravização de pessoas em situação de rua. No ambiente urbano, uma das principais formas de trabalho forçado é o trabalho escravo doméstico, atingindo principalmente mulheres negras e geralmente apresentado como se fosse uma "troca" de serviços domésticos por moradia. Com o pagamento de um auxílio financeiro para que pessoas recebam pessoas em situação de rua em suas casas dando em troca a moradia, se reforça e amplia a possibilidade de ocorrência dessa prática de escravização.

Os riscos devem ser levados em conta principalmente considerando que pouco foi dito na legislação sobre os critérios para acolhimento e as formas de fiscalização. A isso se soma a baixa capacidade que a Prefeitura de São Paulo já apresenta para realizar a fiscalização das políticas públicas de acolhimento em equipamentos estatais, serviços geridos por organizações sociais conveniadas, que possuem contratos com a Prefeitura e atribuições claras. As condições desses espaços e a capacidade de fiscalização da Prefeitura vêm sendo questionadas por estudos e visitas organizadas pelo Legislativo e entidades da sociedade civil, que diagnosticaram situações precárias de falta de higiene, alimentos estragados e condições precárias de estrutura que não haviam sido observadas pela Prefeitura. Dessa forma, é preciso questionar: quais os mecanismos de controle e proteção que serão utilizados pela Prefeitura para acompanhar os acolhimentos privados e dispersos dadas as já presentes dificuldades encontradas para fiscalizar os serviços públicos da rede conveniada?

Além das questões colocadas com relação aos riscos, cabe mencionar que a proposta não é ancorada em nenhuma experiência prévia bem-sucedida, tratando-se de um projeto apresentado sem qualquer pesquisa ou evidência empírica, fato reforçado pela ausência de estudos técnicos e orçamentários que respaldem o projeto. Cumulado com a ausência de diálogo com a sociedade civil, o projeto destoa das demandas das pessoas em situação de rua. Como têm entendido especialistas e, principalmente, movimentos sociais formados por pessoas com experiência nessa realidade, as alternativas para essa população devem envolver a construção de serviços de moradia, que permitam maior individualidade e autonomia sobre os horários e formas de uso do local. Ainda, segundo pesquisas, políticas que ofertam moradia de caráter permanente tendem a ser mais efetivas, sobretudo para grupos com histórico de rua crônico ("rough sleepers"), como é o caso da política de moradia primeiro que tem sido implementada em várias cidades no mundo todo.

A exclusão dos movimentos sociais e das entidades da sociedade civil do debate denuncia a fragilidade da lei aprovada, na medida em que se afasta das demandas da população em situação de rua. O projeto demonstra profunda desconexão com as lutas históricas dos movimentos na busca por políticas que sejam pautadas e que criem maior autonomia, reconhecendo o protagonismo das pessoas em situação de rua sobre sua própria vida. Resta perguntar se o reencontro em questão é, na verdade, com as mesmas fórmulas já superadas de intervenção nessa difícil realidade.

Júlia Lima, Especialista em Gestão Pública (Insper), Ex-Coordenadora de Políticas para a População em Situação de Rua de São Paulo

Kelseny Medeiros Pinho, Mestranda em Planejamento e Gestão do Território (UFABC), Pesquisadora do Laboratório de Justiça Territorial (LabJUTA)

Laura Cavalcanti Salatino, Mestranda em Administração Pública e Governo (FGV - EAESP), Advogada e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

Marina Torres,  Graduanda em Direito (FDUSP) e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

Verônica Martines, Graduada em direito (FDUSP) e Coordenadora Pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (FDUSP)

Durante a pandemia de Covid-19, o município de São Paulo, maior cidade da América Latina, observou um aumento de 31% de pessoas vivendo nas ruas com relação ao ano de 2019. O Censo realizado em 2021 aponta 31.884 pessoas em situação de rua na cidade, diante de uma rede de acolhimento de apenas 15 mil vagas. Trata-se, na série histórica de levantamentos municipais dessa população, da maior desproporção entre o número de pessoas em situação de calçada e pessoas acolhidas, revelando o baixo alcance das políticas oferecidas, tanto em termos numéricos quanto em efetividade.

Diante deste cenário, o governo, a sociedade civil e os movimentos sociais têm empreendido esforços no sentido de ampliar e construir políticas públicas para o público. No entanto, existem disputas em curso sobre quais os modelos mais efetivos e adequados às necessidades dessa população. Por um lado, há a defesa e a persistência de políticas repressivas ou tutelares da população em situação de rua, por outro, há a disputa pela construção de modelos que visam atingir a autonomia a longo prazo, estabilidade financeira e acesso permanente à moradia. Esse conflito transparece em cada nova proposta apresentada e nesta semana assistimos a mais um embate que teve palco no Legislativo municipal.

Na última quarta-feira (29), a prefeitura sancionou a Lei n. 17.819/2022 que institui diversas medidas para atender a população em situação de vulnerabilidade na cidade de São Paulo, sobretudo com relação a questões de segurança alimentar e acesso a produtos de higiene. Entre as propostas da Lei, encontram-se a Vila Reencontro, programa apresentado como moradia social, cuja função seria o acolhimento transitório - destoando das ofertas de moradia para outros grupos sociais, em que o atendimento habitacional é permanente - e o Auxílio Reencontro, que consiste em benefício financeiro a quem se dispuser e demonstrar condições de acolher a pessoa em situação de rua, o qual gostaríamos de abordar mais detidamente neste texto.

Antes de tratar das propostas em si, é preciso discutir a forma pela qual a Lei foi aprovada na Câmara dos Vereadores e sancionada pelo Prefeito Ricardo Nunes. A Lei é fruto do Projeto de Lei 427/2022 protocolado pelo Poder Executivo em 28 de junho e sancionado, às pressas, menos de 48h depois. Pela Lei Orgânica do Município de São Paulo, os projetos de lei serão apreciados em 2 (dois) turnos de discussão e votação. Pelo regimento interno da Câmara Municipal, deve ocorrer com intervalo mínimo de 48 (quarenta e oito) horas entre a primeira e a segunda votação de todos os projetos de lei.

Considerando a urgência da Prefeitura e o recesso da Câmara Municipal previsto para iniciar no dia 01 de julho, o texto do PL 427 foi apresentado pela base do governo como um substitutivo de um projeto de lei anterior sobre restaurantes populares (PL 528/2021), já aprovado em primeira votação. Dessa forma, os proponentes do PL conseguiram pular as etapas básicas do processo legislativo, que envolvem debate com a sociedade civil por meio de audiências públicas, violando os princípios de participação e exercício de cidadania. Ressalta-se que a Prefeitura não apresentou qualquer estudo técnico ou orçamentário, pontos essenciais quando se cria um auxílio financeiro em pleno ano eleitoral.

Também pelo regimento interno da Câmara, os projetos substitutivos devem tratar do mesmo assunto do projeto original, mas o PL 427 apresentou matéria inteiramente nova, com assuntos que tocam não só a segurança alimentar e nutricional, mas também auxílios e moradia para população em situação de rua. Ainda, as Comissões legislativas, estruturas temáticas que estudam os projetos de lei, deveriam ter 48h para emitir parecer sobre o projeto substitutivo ou emitir parecer conjunto após as discussões, mas tiveram apenas uma hora para aprovar o projeto apresentado. O resultado do atropelo foi uma colcha de retalhos de proposições confusas e sem coerência entre si, transparecendo uma péssima técnica legislativa, que terceiriza questões centrais para serem definidas posteriormente pela Prefeitura em decreto regulamentador.

No trâmite de aprovação do Projeto, também foram desrespeitadas legislações específicas a respeito das políticas públicas voltadas à segurança alimentar e nutricional, à assistência social e à população em situação de rua. As temáticas tratadas no projeto aprovado deveriam envolver previamente os conselhos de participação social que tratam do tema, como o COMUSAN (Conselho Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional), o COMAS (Conselho Municipal da Assistência Social) e o Comitê PopRua (Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua), órgãos compostos por membros do governo e sociedade civil e com atribuição para discutir e/ou definir as diretrizes das políticas públicas na temática, bem como avaliá-las e monitorá-las. No entanto, nenhum dos conselhos foi consultado a respeito das novas propostas instituídas pela Lei.

Para além de vícios formais, as políticas propostas apresentam diversos problemas em seu conteúdo, com destaque para o Auxílio Reencontro. Há, sobretudo, uma violação da autonomia e autodeterminação de pessoas em situação de rua. Ao instituir um terceiro intermediário como titular do benefício, o auxílio é o único dentro das políticas públicas municipais para adultos que não se destina diretamente para a pessoa que se encontra em situação de vulnerabilidade, demonstrando uma opção da gestão por recorrer a um acolhimento terceirizado em ambiente doméstico em detrimento de políticas que fortaleçam a independência e privacidade da população em situação de rua e sua inserção em outros serviços, como de inclusão produtiva, assistência e habitação.

A proposta vai na contramão de auxílios já existentes como o emergencial, o bolsa aluguel, o antigo bolsa-família e o auxílio municipal às mulheres vítimas de violência doméstica, entre outros, que se destinam diretamente ao público que se deseja fortalecer. Essa distinção  cria uma forma de discriminação que contraria disposições da Política Nacional e da Política Municipal da população em situação de rua, já que ambas tem como diretrizes o fomento da sua autonomia e participação direta nas políticas públicas, fruto da luta histórica dos movimentos da população de rua.

Há, ainda, a questão de que a proposta de uma política dispersa, pautada pelo acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade em espaços domésticos e privados dos quais essas pessoas não são titulares, pode produzir ainda mais riscos para pessoas em situação de rua. A Prefeitura tem sinalizado que o auxílio teria como objetivo o retorno à família, que seria a titular do benefício. No entanto, essa proposta ignora os dados do censo municipal da população em situação de rua, segundo os quais o principal motivo para se estar em situação de rua são os conflitos familiares (34,7% das pessoas em situação de rua).  Para mulheres e pessoas LGBTQIA+ a situação é ainda mais grave (37% apontam esse motivo para estar nas ruas), ainda mais quando se considera que o conflito familiar que mais leva esse público para as ruas é a violência doméstica (28,7% das ocorrências de conflito familiar). Assim, o projeto apresentado permite que possíveis agressores recebam auxílio financeiro para manter familiares que estão em situação de rua em suas casas, ignorando o fato de que muitas vezes, para essas pessoas, a casa da família pode ser um local de violência.

Também, não pode ser ignorado o risco de escravização de pessoas em situação de rua. No ambiente urbano, uma das principais formas de trabalho forçado é o trabalho escravo doméstico, atingindo principalmente mulheres negras e geralmente apresentado como se fosse uma "troca" de serviços domésticos por moradia. Com o pagamento de um auxílio financeiro para que pessoas recebam pessoas em situação de rua em suas casas dando em troca a moradia, se reforça e amplia a possibilidade de ocorrência dessa prática de escravização.

Os riscos devem ser levados em conta principalmente considerando que pouco foi dito na legislação sobre os critérios para acolhimento e as formas de fiscalização. A isso se soma a baixa capacidade que a Prefeitura de São Paulo já apresenta para realizar a fiscalização das políticas públicas de acolhimento em equipamentos estatais, serviços geridos por organizações sociais conveniadas, que possuem contratos com a Prefeitura e atribuições claras. As condições desses espaços e a capacidade de fiscalização da Prefeitura vêm sendo questionadas por estudos e visitas organizadas pelo Legislativo e entidades da sociedade civil, que diagnosticaram situações precárias de falta de higiene, alimentos estragados e condições precárias de estrutura que não haviam sido observadas pela Prefeitura. Dessa forma, é preciso questionar: quais os mecanismos de controle e proteção que serão utilizados pela Prefeitura para acompanhar os acolhimentos privados e dispersos dadas as já presentes dificuldades encontradas para fiscalizar os serviços públicos da rede conveniada?

Além das questões colocadas com relação aos riscos, cabe mencionar que a proposta não é ancorada em nenhuma experiência prévia bem-sucedida, tratando-se de um projeto apresentado sem qualquer pesquisa ou evidência empírica, fato reforçado pela ausência de estudos técnicos e orçamentários que respaldem o projeto. Cumulado com a ausência de diálogo com a sociedade civil, o projeto destoa das demandas das pessoas em situação de rua. Como têm entendido especialistas e, principalmente, movimentos sociais formados por pessoas com experiência nessa realidade, as alternativas para essa população devem envolver a construção de serviços de moradia, que permitam maior individualidade e autonomia sobre os horários e formas de uso do local. Ainda, segundo pesquisas, políticas que ofertam moradia de caráter permanente tendem a ser mais efetivas, sobretudo para grupos com histórico de rua crônico ("rough sleepers"), como é o caso da política de moradia primeiro que tem sido implementada em várias cidades no mundo todo.

A exclusão dos movimentos sociais e das entidades da sociedade civil do debate denuncia a fragilidade da lei aprovada, na medida em que se afasta das demandas da população em situação de rua. O projeto demonstra profunda desconexão com as lutas históricas dos movimentos na busca por políticas que sejam pautadas e que criem maior autonomia, reconhecendo o protagonismo das pessoas em situação de rua sobre sua própria vida. Resta perguntar se o reencontro em questão é, na verdade, com as mesmas fórmulas já superadas de intervenção nessa difícil realidade.

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