Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Teto de gastos: revogar para governar


Por Redação

Caio Vilella, Diretor de Projetos no Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD)

Fabiano Dalto, Professor de Economia na UFPR e Diretor de Pesquisa no IFFD

Daniel Negreiros Conceição, Professor de Gestão Pública na UFRJ e Presidente do IFFD

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David Deccache, Diretor Financeiro do IFFD

André Doneux, Diretor de Comunicação do IFFD

Samuel Braun, Diretor Executivo do IFFD

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Gláucia Campregher, Professora de Economia na UFBA e Vice-Presidente do IFFD

Depois de praticamente 10 anos seguidos de crescimento econômico generoso (entre 2004 a 2014, com interrupção apenas em 2009, quando a economia brasileira foi impactada pela crise financeira global de 2008), com ganhos reais no salário mínimo, níveis historicamente baixos de desemprego, e ampliação quantitativa e qualitativa dos serviços e investimentos públicos, a burguesia brasileira, apoiada no moralismo da classe média, reagiu politicamente aos ganhos da classe trabalhadora e ao crescimento da presença estatal na economia.

Depois de remover a chefe do Executivo por meio de um golpe parlamentar, a investida liberal/desestatizante se seguiu através da aprovação da Emenda Constitucional 95 (teto de gastos), da reforma trabalhista de novembro de 2017, e culminou no aprofundamento abrupto de políticas econômicas de cunho liberal (como subsídios ao capital, paridade do preço internacional do petróleo e cortes de gastos públicos).

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Ao constitucionalizar o congelamento dos gastos primários reais do governo, a Emenda do teto de gastos criminaliza, na prática, a política fiscal contracíclica (isto é, a política fiscal mais expansionista em períodos de contração econômica e menos em períodos de crescimento). Desde 2016, não basta mais que o povo vote em uma agenda de governo progressista. Tornou-se necessário também, a fim de cumprir a vontade das urnas, que o governo eleito obtenha autorização legal do Congresso Nacional, para que as demandas legítimas e urgentes da sociedade brasileira sejam acolhidas no Orçamento de 2023 sem infringir os limites impostos pela Emenda Constitucional 95.

Nesse contexto, a equipe de transição do governo discute, além da alteração da previsão de despesas essenciais no Projeto de Lei Orçamentária para o ano de 2023, enviado pelo governo Bolsonaro - que apresentou um conjunto de gastos muito inferior ao necessário para a execução de políticas sociais indispensáveis para o país, como a merenda escolar, políticas de saneamento, de combate a enchentes, etc. -, um Projeto de Emenda Constitucional que permita a ampliação de gastos do governo para viabilizar o cumprimento dos principais compromissos de campanha do presidente eleito Lula.

Os seis anos de vigência da EC 95 demonstram que a regra do teto de gastos fracassou em seus objetivos declarados de reduzir o déficit primário, estabilizar a dívida pública e estimular os investimentos privados, gerando mais empregos e crescimento. Face à pandemia de COVID19, o respeito inflexível ao teto de gastos teria inviabilizado o enfrentamento da crise sanitária e de seus efeitos econômicos e sociais.

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Felizmente, a sensatez prevaleceu e o Congresso acabou aprovando a PEC do Orçamento de Guerra que viabilizou o desrespeito ao teto durante o período pandêmico. Mesmo assim, o mito da crise fiscal seguiu fazendo estragos durante a pandemia, como quando o governo Bolsonaro o usou como desculpa para cortar precipitadamente o Auxílio Emergencial no início de 2021.

Finalmente, o teto de gastos foi desfeito na prática pelo Orçamento Secreto, que desnudou o falacioso argumento de que restrições fiscais tornam os gastos eficientes, transparentes, e alocados de acordo com as prioridades sociais. O fato é que o teto de gastos está desmoralizado e, diante dos desafios impostos à sociedade brasileira - que exigem enormes investimentos públicos em infraestrutura física e social -, deve ser retirado de nosso ordenamento jurídico juntamente com as demais regras fiscais disfuncionais.

Ciente da disfuncionalidade do regime fiscal vigente, Lula comprometeu-se explicitamente, em sua campanha, com o fim do teto de gastos.

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Os desafios do próximo governo Lula, eleito no domingo 30 de outubro, são grandes, mas o momento é o mais oportuno para enfrentá-los. Diante da maior ameaça fascista que o Brasil viveu desde os anos 1920, Lula conseguiu reunir até mesmo o apoio político de quem se posicionara a favor do golpe que implementou a agenda antissocial a partir de 2016.

Soma-se a isso um ambiente internacional que flui no sentido de substituir regras fiscais por princípios fiscais mais flexíveis e abertos para a discricionariedade fiscal. Na esteira desse revisionismo internacional, mesmo o FMI e o Banco Mundial vêm estabelecendo a política fiscal anticíclica e a política de afrouxamento monetário como regras do que o Financial Times chamou de "Novo Consenso de Washington".

Essas mudanças das concepções sobre regras fiscais em nível internacional não ocorreram no vácuo. A urgência de políticas de suporte aos sistemas sanitários e de renda das populações em todo o mundo levou os governos a incorrerem em déficits só experimentados em períodos de guerra. Além da emergência prática, uma nova concepção teórica, a teoria monetária moderna (MMT em inglês), forneceu a explicação analítica de como foi possível, em meio à maior queda da arrecadação dos países em mais de 70 anos, governos disporem de recursos financeiros tão elevados pela simples autorização de seus parlamentos[1].

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Infelizmente, o debate fiscal no Brasil ainda é anacrônico. Mesmo diante de uma janela de oportunidade única, em que velhas concepções sobre regras fiscais estão sendo revistas diante das evidências mais eloquentes, parece haver uma pressão muito grande para que Lula gaste seu capital político com uma medida "transitória", que visa suspender apenas temporariamente o teto de gastos.

Uma PEC transitória implica custo político elevado e perda de uma janela de oportunidade única para a resolução estrutural do problema. Isso porque, necessariamente, obrigará o governo Lula a apresentar uma nova PEC no próximo ano para reajustar ou revogar o teto de gastos definitivamente, o que obstruirá a agenda política desnecessariamente.

Além disso, de acordo com o divulgado na imprensa, a PEC transitória irá retirar dos limites do teto de gastos despesas específicas, como o novo Bolsa Família. Portanto, uma série de outros gastos fundamentais continuarão sob forte restrição, podendo gerar uma série de insatisfações sociais já no primeiro ano do governo Lula.

O ideal, do ponto de vista político e econômico, é a revogação imediata da Emenda Constitucional nº 95. Na própria PEC da revogação do teto de gastos, poderia ser inserido dispositivo com a previsão de que lei complementar, a ser debatida no próximo ano, estabelecerá as novas diretrizes orçamentárias do país.

Ao mesmo tempo, é necessário desvelar de vez a mentira de que o Brasil (na verdade, o Estado brasileiro) estaria "quebrado". Felizmente, governos centrais como o brasileiro, que realizam gastos na moeda doméstica do país, não "quebram", por mais socialmente irresponsáveis que sejam os incumbidos pela condução da política macroeconômica. A verdade é que não existe crise fiscal que precise ser combatida hoje no Brasil. Não existe escassez de recursos financeiros para que o novo governo de Lula dê conta de todas as suas promessas ao povo brasileiro.

O único impedimento para que a política fiscal seja tão generosa quanto permite a capacidade produtiva da economia brasileira é apenas a manutenção do atual arcabouço fiscal. É este arcabouço que precisará ser redesenhado para que o governo brasileiro seja capaz de responder às demandas da população brasileira, tão carente de bens e serviços públicos, evitando, assim, a volta do fascismo num futuro próximo.

Não é difícil perceber a fragilidade dos argumentos de que o Brasil atravessa uma crise fiscal e da necessidade de contenção de gastos governamentais. O Brasil acumulou déficits fiscais sucessivos desde o final de 2014, quando houve a substituição de Guido Mantega, ministro mais associado com as políticas keynesianas, por Joaquim Levy, economista mais liberal. Levy elegeu como sua prioridade máxima a promoção do equilíbrio das contas públicas. No entanto, ao invés de reverter a "deterioração" das contas do governo, o terrível ajuste fiscal promovido por Joaquim Levy resultou em aumento do déficit do governo.

O gráfico abaixo mostra que ,desde 2015, quando o governo brasileiro passou a ser comandado por defensores da austeridade fiscal, e mesmo com a implementação do Teto de Gastos (área sombreada de vermelho), o resultado primário se manteve quase sempre deficitário.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria

Nota: Os dados se referem ao acumulado dos últimos 12 meses deflacionados pelo IPCA.

O fracasso político e social da austeridade fiscal adotada no Brasil a partir de 2014 resultou do diagnóstico errôneo assumido pelo ministro Joaquim Levy e compartilhado pelos formuladores do Teto de Gastos e pelo atual ministro Paulo Guedes. Para este grupo de economistas, o déficit seria fruto de um suposto crescimento desenfreado dos gastos públicos, que, portanto, precisavam ser congelados. Não é incomum ouvir de economistas liberais que a "Constituição não cabe no orçamento", e que o crescimento de gastos desde a sua promulgação seria insustentável.

A Emenda Constitucional 95 seria, portanto, uma espécie de solução final para os problemas provocados pela Constituição de 1988, que deveria passar, com a EC 95, por um reformismo constitucional permanente. Em termos fiscais, o teto atingiu seu objetivo de contenção do crescimento dos gastos reais, e as despesas primárias totais do governo permaneceram congeladas até a pandemia.

No gráfico abaixo, é possível ver o comportamento destas despesas, bem como sua estagnação desde a aprovação do Teto de gastos (linha vertical preta). O volume em azul ajusta o total de gastos, para descontar os efeitos dos gastos no combate à pandemia da COVID-19.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria

Nota: Os dados se referem ao acumulado dos últimos 12 meses deflacionados pelo IPCA. A curva em azul sofreu ajuste para retirar os gastos transitórios e de combate à pandemia.

Mesmo atingindo seu objetivo de conter o crescimento dos gastos, o teto de gastos não foi capaz de reverter o déficit primário, pois seus proponentes haviam trabalhado a partir de um diagnóstico errado. O gráfico abaixo evidencia que o crescimento do déficit não se deu pelo aumento dos gastos do governo, mas pela frustração da receita.

Durante os governos Lula 1 e Lula 2, a taxa de crescimento do gasto público foi a maior desde o Plano Real. Esse maior gasto público se convertia em renda do setor privado, que passava a consumir mais. O consumo privado induzia novos investimentos e assim a roda da economia ia girando e gerando impostos. O que os proponentes do teto de gastos não foram capazes de compreender e antecipar foi o impacto recessivo da redução e congelamento dos gastos públicos, que fez com que caísse mais ainda a arrecadação de impostos.

Isso explica o resultado superavitário dos primeiros governos de Lula e a deterioração das contas públicas depois de 2014. Simplesmente, mesmo que o governo estivesse verdadeiramente enfrentando uma crise fiscal (não estava), a solução adotada pelos economistas do governo desde 2014 de reduzir e congelar as despesas públicas acabou piorando a situação.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria.

Nota: dados deflacionados pelo IPCA.

Apesar de os gastos agregados estarem estagnados, devido ao crescimento das despesas obrigatórias, o gasto discricionário, que inclui o investimento público, foi fortemente reduzido, deixando de atender às necessidades da população. Este cenário se torna mais drástico em um contexto de crescimento populacional, pois tal contexto implica queda de recursos disponíveis para atender cada cidadão. O gráfico abaixo retrata esta conjuntura e permite verificar as áreas mais afetadas pelo corte de gasto:

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro transparente. Elaboração própria.

Nota: dados deflacionados pelo IPCA.

É interessante notar como as despesas com saúde e educação foram fortemente afetadas em detrimento da rubrica genérica "demais despesas". Este fato vai de encontro à ideia de que o teto de gastos forçaria a melhor utilização dos recursos orçamentários. Na verdade, o teto de gastos beneficiou os gastos discricionários não planejados e em áreas não estratégicas, deteriorando a qualidade do gasto público, sob qualquer critério de avaliação dos gastos e da efetividade das políticas públicas.

Portanto, insistir em uma regra fiscal que já se provou deletéria é um erro grave, mas não maior do que insistir no diagnóstico de seus formuladores, apoiadores do golpe parlamentar de 2016, de que o Brasil estaria "quebrado", ou seja, que o governo federal estaria ameaçado de não conseguir financiar seus pagamentos.

O fato é que o Brasil não estava quebrado em 2014 e 2015, quando se usou essa mentira para justificar a emenda constitucional 95, e não estava quebrado em 2019, quando novamente o governo se utilizou da mesma mentira para justificar sua proposta de reforma administrativa que teria destruído o serviço público brasileiro caso fosse instituída. Afinal, se o Brasil realmente estivesse "quebrado", não teria sido capaz de realizar R$743 Bilhões de déficit em 2020 para combater a pandemia e seus efeitos.

E, certamente, o Brasil não está quebrado em 2022. Pelo contrário, o Estado brasileiro conta com um volumoso estoque de reservas internacionais e segue sendo o emissor soberano do Real. Alimentar o mito de que a crise fiscal no Brasil pode custar a nossa democracia, ao impedir que o governo eleito governe em acordo com as expectativas de seus eleitores, é fortalecer uma candidatura fascista em 2026. É preciso escutar a população que votou por mais salário mínimo, por mais direitos, por mais comida, por mais saúde e por mais educação.

Quando a proposta de revogação da Emenda Constitucional 95 é levantada, não é incomum que preocupações fiscalistas com a ampliação do déficit público e a elevação do nível da dívida pública em relação ao PIB sejam levantadas. No entanto, como vimos, o regime do teto de gastos não impediu nenhum desses resultados alegadamente indesejáveis, uma vez que o congelamento de gastos frustrou a arrecadação e impediu a retomada de uma taxa mais robusta de crescimento do PIB.

O momento é oportuno e o governo já se comprometeu com o esforço político de aprovar uma PEC que relaxe as restrições fiscais vigentes no país. Não há motivo para seguir no falso discurso de que o país está "quebrado" e que haverá necessidade de saneamento fiscal no futuro. A PEC ideal deveria estabelecer um Novo Consenso de Política Econômica no Brasil, trocando todas suas regras fiscais por princípios, flexíveis e adequáveis aos ciclos econômicos. Deve, ainda, prover o BCB de instrumentos legais para coordenar a política monetária com a política fiscal, substituindo a lógica do gasto discricionário descoordenado por um gasto estratégico e planejado combinado a uma política monetária crível, estável e previsível.

Não escutar o recado das urnas e seguir aumentando o déficit democrático em nome de uma suposta austeridade fiscal desnecessária, disfuncional e deletéria, na atual circunstância, é que seria a verdadeira irresponsabilidade.

Nota

[1] Veja Conceição, Daniel & Dalto, Fabiano(2022) para uma discussão dos mecanismos operacionais do processo de gasto público.

Referência

Conceição, Daniel & Dalto, Fabiano A S (2022). A Importante Lição da Coronacrise sobre os limites dos Gastos Públicos. In Rudnei Marques & José Celso Cardoso Jr(org) Dominância Financeira e Privatização das Finanças Públicas no Brasil. Fonacate. Brasília.

Caio Vilella, Diretor de Projetos no Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD)

Fabiano Dalto, Professor de Economia na UFPR e Diretor de Pesquisa no IFFD

Daniel Negreiros Conceição, Professor de Gestão Pública na UFRJ e Presidente do IFFD

David Deccache, Diretor Financeiro do IFFD

André Doneux, Diretor de Comunicação do IFFD

Samuel Braun, Diretor Executivo do IFFD

Gláucia Campregher, Professora de Economia na UFBA e Vice-Presidente do IFFD

Depois de praticamente 10 anos seguidos de crescimento econômico generoso (entre 2004 a 2014, com interrupção apenas em 2009, quando a economia brasileira foi impactada pela crise financeira global de 2008), com ganhos reais no salário mínimo, níveis historicamente baixos de desemprego, e ampliação quantitativa e qualitativa dos serviços e investimentos públicos, a burguesia brasileira, apoiada no moralismo da classe média, reagiu politicamente aos ganhos da classe trabalhadora e ao crescimento da presença estatal na economia.

Depois de remover a chefe do Executivo por meio de um golpe parlamentar, a investida liberal/desestatizante se seguiu através da aprovação da Emenda Constitucional 95 (teto de gastos), da reforma trabalhista de novembro de 2017, e culminou no aprofundamento abrupto de políticas econômicas de cunho liberal (como subsídios ao capital, paridade do preço internacional do petróleo e cortes de gastos públicos).

Ao constitucionalizar o congelamento dos gastos primários reais do governo, a Emenda do teto de gastos criminaliza, na prática, a política fiscal contracíclica (isto é, a política fiscal mais expansionista em períodos de contração econômica e menos em períodos de crescimento). Desde 2016, não basta mais que o povo vote em uma agenda de governo progressista. Tornou-se necessário também, a fim de cumprir a vontade das urnas, que o governo eleito obtenha autorização legal do Congresso Nacional, para que as demandas legítimas e urgentes da sociedade brasileira sejam acolhidas no Orçamento de 2023 sem infringir os limites impostos pela Emenda Constitucional 95.

Nesse contexto, a equipe de transição do governo discute, além da alteração da previsão de despesas essenciais no Projeto de Lei Orçamentária para o ano de 2023, enviado pelo governo Bolsonaro - que apresentou um conjunto de gastos muito inferior ao necessário para a execução de políticas sociais indispensáveis para o país, como a merenda escolar, políticas de saneamento, de combate a enchentes, etc. -, um Projeto de Emenda Constitucional que permita a ampliação de gastos do governo para viabilizar o cumprimento dos principais compromissos de campanha do presidente eleito Lula.

Os seis anos de vigência da EC 95 demonstram que a regra do teto de gastos fracassou em seus objetivos declarados de reduzir o déficit primário, estabilizar a dívida pública e estimular os investimentos privados, gerando mais empregos e crescimento. Face à pandemia de COVID19, o respeito inflexível ao teto de gastos teria inviabilizado o enfrentamento da crise sanitária e de seus efeitos econômicos e sociais.

Felizmente, a sensatez prevaleceu e o Congresso acabou aprovando a PEC do Orçamento de Guerra que viabilizou o desrespeito ao teto durante o período pandêmico. Mesmo assim, o mito da crise fiscal seguiu fazendo estragos durante a pandemia, como quando o governo Bolsonaro o usou como desculpa para cortar precipitadamente o Auxílio Emergencial no início de 2021.

Finalmente, o teto de gastos foi desfeito na prática pelo Orçamento Secreto, que desnudou o falacioso argumento de que restrições fiscais tornam os gastos eficientes, transparentes, e alocados de acordo com as prioridades sociais. O fato é que o teto de gastos está desmoralizado e, diante dos desafios impostos à sociedade brasileira - que exigem enormes investimentos públicos em infraestrutura física e social -, deve ser retirado de nosso ordenamento jurídico juntamente com as demais regras fiscais disfuncionais.

Ciente da disfuncionalidade do regime fiscal vigente, Lula comprometeu-se explicitamente, em sua campanha, com o fim do teto de gastos.

Os desafios do próximo governo Lula, eleito no domingo 30 de outubro, são grandes, mas o momento é o mais oportuno para enfrentá-los. Diante da maior ameaça fascista que o Brasil viveu desde os anos 1920, Lula conseguiu reunir até mesmo o apoio político de quem se posicionara a favor do golpe que implementou a agenda antissocial a partir de 2016.

Soma-se a isso um ambiente internacional que flui no sentido de substituir regras fiscais por princípios fiscais mais flexíveis e abertos para a discricionariedade fiscal. Na esteira desse revisionismo internacional, mesmo o FMI e o Banco Mundial vêm estabelecendo a política fiscal anticíclica e a política de afrouxamento monetário como regras do que o Financial Times chamou de "Novo Consenso de Washington".

Essas mudanças das concepções sobre regras fiscais em nível internacional não ocorreram no vácuo. A urgência de políticas de suporte aos sistemas sanitários e de renda das populações em todo o mundo levou os governos a incorrerem em déficits só experimentados em períodos de guerra. Além da emergência prática, uma nova concepção teórica, a teoria monetária moderna (MMT em inglês), forneceu a explicação analítica de como foi possível, em meio à maior queda da arrecadação dos países em mais de 70 anos, governos disporem de recursos financeiros tão elevados pela simples autorização de seus parlamentos[1].

Infelizmente, o debate fiscal no Brasil ainda é anacrônico. Mesmo diante de uma janela de oportunidade única, em que velhas concepções sobre regras fiscais estão sendo revistas diante das evidências mais eloquentes, parece haver uma pressão muito grande para que Lula gaste seu capital político com uma medida "transitória", que visa suspender apenas temporariamente o teto de gastos.

Uma PEC transitória implica custo político elevado e perda de uma janela de oportunidade única para a resolução estrutural do problema. Isso porque, necessariamente, obrigará o governo Lula a apresentar uma nova PEC no próximo ano para reajustar ou revogar o teto de gastos definitivamente, o que obstruirá a agenda política desnecessariamente.

Além disso, de acordo com o divulgado na imprensa, a PEC transitória irá retirar dos limites do teto de gastos despesas específicas, como o novo Bolsa Família. Portanto, uma série de outros gastos fundamentais continuarão sob forte restrição, podendo gerar uma série de insatisfações sociais já no primeiro ano do governo Lula.

O ideal, do ponto de vista político e econômico, é a revogação imediata da Emenda Constitucional nº 95. Na própria PEC da revogação do teto de gastos, poderia ser inserido dispositivo com a previsão de que lei complementar, a ser debatida no próximo ano, estabelecerá as novas diretrizes orçamentárias do país.

Ao mesmo tempo, é necessário desvelar de vez a mentira de que o Brasil (na verdade, o Estado brasileiro) estaria "quebrado". Felizmente, governos centrais como o brasileiro, que realizam gastos na moeda doméstica do país, não "quebram", por mais socialmente irresponsáveis que sejam os incumbidos pela condução da política macroeconômica. A verdade é que não existe crise fiscal que precise ser combatida hoje no Brasil. Não existe escassez de recursos financeiros para que o novo governo de Lula dê conta de todas as suas promessas ao povo brasileiro.

O único impedimento para que a política fiscal seja tão generosa quanto permite a capacidade produtiva da economia brasileira é apenas a manutenção do atual arcabouço fiscal. É este arcabouço que precisará ser redesenhado para que o governo brasileiro seja capaz de responder às demandas da população brasileira, tão carente de bens e serviços públicos, evitando, assim, a volta do fascismo num futuro próximo.

Não é difícil perceber a fragilidade dos argumentos de que o Brasil atravessa uma crise fiscal e da necessidade de contenção de gastos governamentais. O Brasil acumulou déficits fiscais sucessivos desde o final de 2014, quando houve a substituição de Guido Mantega, ministro mais associado com as políticas keynesianas, por Joaquim Levy, economista mais liberal. Levy elegeu como sua prioridade máxima a promoção do equilíbrio das contas públicas. No entanto, ao invés de reverter a "deterioração" das contas do governo, o terrível ajuste fiscal promovido por Joaquim Levy resultou em aumento do déficit do governo.

O gráfico abaixo mostra que ,desde 2015, quando o governo brasileiro passou a ser comandado por defensores da austeridade fiscal, e mesmo com a implementação do Teto de Gastos (área sombreada de vermelho), o resultado primário se manteve quase sempre deficitário.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria

Nota: Os dados se referem ao acumulado dos últimos 12 meses deflacionados pelo IPCA.

O fracasso político e social da austeridade fiscal adotada no Brasil a partir de 2014 resultou do diagnóstico errôneo assumido pelo ministro Joaquim Levy e compartilhado pelos formuladores do Teto de Gastos e pelo atual ministro Paulo Guedes. Para este grupo de economistas, o déficit seria fruto de um suposto crescimento desenfreado dos gastos públicos, que, portanto, precisavam ser congelados. Não é incomum ouvir de economistas liberais que a "Constituição não cabe no orçamento", e que o crescimento de gastos desde a sua promulgação seria insustentável.

A Emenda Constitucional 95 seria, portanto, uma espécie de solução final para os problemas provocados pela Constituição de 1988, que deveria passar, com a EC 95, por um reformismo constitucional permanente. Em termos fiscais, o teto atingiu seu objetivo de contenção do crescimento dos gastos reais, e as despesas primárias totais do governo permaneceram congeladas até a pandemia.

No gráfico abaixo, é possível ver o comportamento destas despesas, bem como sua estagnação desde a aprovação do Teto de gastos (linha vertical preta). O volume em azul ajusta o total de gastos, para descontar os efeitos dos gastos no combate à pandemia da COVID-19.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria

Nota: Os dados se referem ao acumulado dos últimos 12 meses deflacionados pelo IPCA. A curva em azul sofreu ajuste para retirar os gastos transitórios e de combate à pandemia.

Mesmo atingindo seu objetivo de conter o crescimento dos gastos, o teto de gastos não foi capaz de reverter o déficit primário, pois seus proponentes haviam trabalhado a partir de um diagnóstico errado. O gráfico abaixo evidencia que o crescimento do déficit não se deu pelo aumento dos gastos do governo, mas pela frustração da receita.

Durante os governos Lula 1 e Lula 2, a taxa de crescimento do gasto público foi a maior desde o Plano Real. Esse maior gasto público se convertia em renda do setor privado, que passava a consumir mais. O consumo privado induzia novos investimentos e assim a roda da economia ia girando e gerando impostos. O que os proponentes do teto de gastos não foram capazes de compreender e antecipar foi o impacto recessivo da redução e congelamento dos gastos públicos, que fez com que caísse mais ainda a arrecadação de impostos.

Isso explica o resultado superavitário dos primeiros governos de Lula e a deterioração das contas públicas depois de 2014. Simplesmente, mesmo que o governo estivesse verdadeiramente enfrentando uma crise fiscal (não estava), a solução adotada pelos economistas do governo desde 2014 de reduzir e congelar as despesas públicas acabou piorando a situação.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria.

Nota: dados deflacionados pelo IPCA.

Apesar de os gastos agregados estarem estagnados, devido ao crescimento das despesas obrigatórias, o gasto discricionário, que inclui o investimento público, foi fortemente reduzido, deixando de atender às necessidades da população. Este cenário se torna mais drástico em um contexto de crescimento populacional, pois tal contexto implica queda de recursos disponíveis para atender cada cidadão. O gráfico abaixo retrata esta conjuntura e permite verificar as áreas mais afetadas pelo corte de gasto:

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro transparente. Elaboração própria.

Nota: dados deflacionados pelo IPCA.

É interessante notar como as despesas com saúde e educação foram fortemente afetadas em detrimento da rubrica genérica "demais despesas". Este fato vai de encontro à ideia de que o teto de gastos forçaria a melhor utilização dos recursos orçamentários. Na verdade, o teto de gastos beneficiou os gastos discricionários não planejados e em áreas não estratégicas, deteriorando a qualidade do gasto público, sob qualquer critério de avaliação dos gastos e da efetividade das políticas públicas.

Portanto, insistir em uma regra fiscal que já se provou deletéria é um erro grave, mas não maior do que insistir no diagnóstico de seus formuladores, apoiadores do golpe parlamentar de 2016, de que o Brasil estaria "quebrado", ou seja, que o governo federal estaria ameaçado de não conseguir financiar seus pagamentos.

O fato é que o Brasil não estava quebrado em 2014 e 2015, quando se usou essa mentira para justificar a emenda constitucional 95, e não estava quebrado em 2019, quando novamente o governo se utilizou da mesma mentira para justificar sua proposta de reforma administrativa que teria destruído o serviço público brasileiro caso fosse instituída. Afinal, se o Brasil realmente estivesse "quebrado", não teria sido capaz de realizar R$743 Bilhões de déficit em 2020 para combater a pandemia e seus efeitos.

E, certamente, o Brasil não está quebrado em 2022. Pelo contrário, o Estado brasileiro conta com um volumoso estoque de reservas internacionais e segue sendo o emissor soberano do Real. Alimentar o mito de que a crise fiscal no Brasil pode custar a nossa democracia, ao impedir que o governo eleito governe em acordo com as expectativas de seus eleitores, é fortalecer uma candidatura fascista em 2026. É preciso escutar a população que votou por mais salário mínimo, por mais direitos, por mais comida, por mais saúde e por mais educação.

Quando a proposta de revogação da Emenda Constitucional 95 é levantada, não é incomum que preocupações fiscalistas com a ampliação do déficit público e a elevação do nível da dívida pública em relação ao PIB sejam levantadas. No entanto, como vimos, o regime do teto de gastos não impediu nenhum desses resultados alegadamente indesejáveis, uma vez que o congelamento de gastos frustrou a arrecadação e impediu a retomada de uma taxa mais robusta de crescimento do PIB.

O momento é oportuno e o governo já se comprometeu com o esforço político de aprovar uma PEC que relaxe as restrições fiscais vigentes no país. Não há motivo para seguir no falso discurso de que o país está "quebrado" e que haverá necessidade de saneamento fiscal no futuro. A PEC ideal deveria estabelecer um Novo Consenso de Política Econômica no Brasil, trocando todas suas regras fiscais por princípios, flexíveis e adequáveis aos ciclos econômicos. Deve, ainda, prover o BCB de instrumentos legais para coordenar a política monetária com a política fiscal, substituindo a lógica do gasto discricionário descoordenado por um gasto estratégico e planejado combinado a uma política monetária crível, estável e previsível.

Não escutar o recado das urnas e seguir aumentando o déficit democrático em nome de uma suposta austeridade fiscal desnecessária, disfuncional e deletéria, na atual circunstância, é que seria a verdadeira irresponsabilidade.

Nota

[1] Veja Conceição, Daniel & Dalto, Fabiano(2022) para uma discussão dos mecanismos operacionais do processo de gasto público.

Referência

Conceição, Daniel & Dalto, Fabiano A S (2022). A Importante Lição da Coronacrise sobre os limites dos Gastos Públicos. In Rudnei Marques & José Celso Cardoso Jr(org) Dominância Financeira e Privatização das Finanças Públicas no Brasil. Fonacate. Brasília.

Caio Vilella, Diretor de Projetos no Instituto de Finanças Funcionais para o Desenvolvimento (IFFD)

Fabiano Dalto, Professor de Economia na UFPR e Diretor de Pesquisa no IFFD

Daniel Negreiros Conceição, Professor de Gestão Pública na UFRJ e Presidente do IFFD

David Deccache, Diretor Financeiro do IFFD

André Doneux, Diretor de Comunicação do IFFD

Samuel Braun, Diretor Executivo do IFFD

Gláucia Campregher, Professora de Economia na UFBA e Vice-Presidente do IFFD

Depois de praticamente 10 anos seguidos de crescimento econômico generoso (entre 2004 a 2014, com interrupção apenas em 2009, quando a economia brasileira foi impactada pela crise financeira global de 2008), com ganhos reais no salário mínimo, níveis historicamente baixos de desemprego, e ampliação quantitativa e qualitativa dos serviços e investimentos públicos, a burguesia brasileira, apoiada no moralismo da classe média, reagiu politicamente aos ganhos da classe trabalhadora e ao crescimento da presença estatal na economia.

Depois de remover a chefe do Executivo por meio de um golpe parlamentar, a investida liberal/desestatizante se seguiu através da aprovação da Emenda Constitucional 95 (teto de gastos), da reforma trabalhista de novembro de 2017, e culminou no aprofundamento abrupto de políticas econômicas de cunho liberal (como subsídios ao capital, paridade do preço internacional do petróleo e cortes de gastos públicos).

Ao constitucionalizar o congelamento dos gastos primários reais do governo, a Emenda do teto de gastos criminaliza, na prática, a política fiscal contracíclica (isto é, a política fiscal mais expansionista em períodos de contração econômica e menos em períodos de crescimento). Desde 2016, não basta mais que o povo vote em uma agenda de governo progressista. Tornou-se necessário também, a fim de cumprir a vontade das urnas, que o governo eleito obtenha autorização legal do Congresso Nacional, para que as demandas legítimas e urgentes da sociedade brasileira sejam acolhidas no Orçamento de 2023 sem infringir os limites impostos pela Emenda Constitucional 95.

Nesse contexto, a equipe de transição do governo discute, além da alteração da previsão de despesas essenciais no Projeto de Lei Orçamentária para o ano de 2023, enviado pelo governo Bolsonaro - que apresentou um conjunto de gastos muito inferior ao necessário para a execução de políticas sociais indispensáveis para o país, como a merenda escolar, políticas de saneamento, de combate a enchentes, etc. -, um Projeto de Emenda Constitucional que permita a ampliação de gastos do governo para viabilizar o cumprimento dos principais compromissos de campanha do presidente eleito Lula.

Os seis anos de vigência da EC 95 demonstram que a regra do teto de gastos fracassou em seus objetivos declarados de reduzir o déficit primário, estabilizar a dívida pública e estimular os investimentos privados, gerando mais empregos e crescimento. Face à pandemia de COVID19, o respeito inflexível ao teto de gastos teria inviabilizado o enfrentamento da crise sanitária e de seus efeitos econômicos e sociais.

Felizmente, a sensatez prevaleceu e o Congresso acabou aprovando a PEC do Orçamento de Guerra que viabilizou o desrespeito ao teto durante o período pandêmico. Mesmo assim, o mito da crise fiscal seguiu fazendo estragos durante a pandemia, como quando o governo Bolsonaro o usou como desculpa para cortar precipitadamente o Auxílio Emergencial no início de 2021.

Finalmente, o teto de gastos foi desfeito na prática pelo Orçamento Secreto, que desnudou o falacioso argumento de que restrições fiscais tornam os gastos eficientes, transparentes, e alocados de acordo com as prioridades sociais. O fato é que o teto de gastos está desmoralizado e, diante dos desafios impostos à sociedade brasileira - que exigem enormes investimentos públicos em infraestrutura física e social -, deve ser retirado de nosso ordenamento jurídico juntamente com as demais regras fiscais disfuncionais.

Ciente da disfuncionalidade do regime fiscal vigente, Lula comprometeu-se explicitamente, em sua campanha, com o fim do teto de gastos.

Os desafios do próximo governo Lula, eleito no domingo 30 de outubro, são grandes, mas o momento é o mais oportuno para enfrentá-los. Diante da maior ameaça fascista que o Brasil viveu desde os anos 1920, Lula conseguiu reunir até mesmo o apoio político de quem se posicionara a favor do golpe que implementou a agenda antissocial a partir de 2016.

Soma-se a isso um ambiente internacional que flui no sentido de substituir regras fiscais por princípios fiscais mais flexíveis e abertos para a discricionariedade fiscal. Na esteira desse revisionismo internacional, mesmo o FMI e o Banco Mundial vêm estabelecendo a política fiscal anticíclica e a política de afrouxamento monetário como regras do que o Financial Times chamou de "Novo Consenso de Washington".

Essas mudanças das concepções sobre regras fiscais em nível internacional não ocorreram no vácuo. A urgência de políticas de suporte aos sistemas sanitários e de renda das populações em todo o mundo levou os governos a incorrerem em déficits só experimentados em períodos de guerra. Além da emergência prática, uma nova concepção teórica, a teoria monetária moderna (MMT em inglês), forneceu a explicação analítica de como foi possível, em meio à maior queda da arrecadação dos países em mais de 70 anos, governos disporem de recursos financeiros tão elevados pela simples autorização de seus parlamentos[1].

Infelizmente, o debate fiscal no Brasil ainda é anacrônico. Mesmo diante de uma janela de oportunidade única, em que velhas concepções sobre regras fiscais estão sendo revistas diante das evidências mais eloquentes, parece haver uma pressão muito grande para que Lula gaste seu capital político com uma medida "transitória", que visa suspender apenas temporariamente o teto de gastos.

Uma PEC transitória implica custo político elevado e perda de uma janela de oportunidade única para a resolução estrutural do problema. Isso porque, necessariamente, obrigará o governo Lula a apresentar uma nova PEC no próximo ano para reajustar ou revogar o teto de gastos definitivamente, o que obstruirá a agenda política desnecessariamente.

Além disso, de acordo com o divulgado na imprensa, a PEC transitória irá retirar dos limites do teto de gastos despesas específicas, como o novo Bolsa Família. Portanto, uma série de outros gastos fundamentais continuarão sob forte restrição, podendo gerar uma série de insatisfações sociais já no primeiro ano do governo Lula.

O ideal, do ponto de vista político e econômico, é a revogação imediata da Emenda Constitucional nº 95. Na própria PEC da revogação do teto de gastos, poderia ser inserido dispositivo com a previsão de que lei complementar, a ser debatida no próximo ano, estabelecerá as novas diretrizes orçamentárias do país.

Ao mesmo tempo, é necessário desvelar de vez a mentira de que o Brasil (na verdade, o Estado brasileiro) estaria "quebrado". Felizmente, governos centrais como o brasileiro, que realizam gastos na moeda doméstica do país, não "quebram", por mais socialmente irresponsáveis que sejam os incumbidos pela condução da política macroeconômica. A verdade é que não existe crise fiscal que precise ser combatida hoje no Brasil. Não existe escassez de recursos financeiros para que o novo governo de Lula dê conta de todas as suas promessas ao povo brasileiro.

O único impedimento para que a política fiscal seja tão generosa quanto permite a capacidade produtiva da economia brasileira é apenas a manutenção do atual arcabouço fiscal. É este arcabouço que precisará ser redesenhado para que o governo brasileiro seja capaz de responder às demandas da população brasileira, tão carente de bens e serviços públicos, evitando, assim, a volta do fascismo num futuro próximo.

Não é difícil perceber a fragilidade dos argumentos de que o Brasil atravessa uma crise fiscal e da necessidade de contenção de gastos governamentais. O Brasil acumulou déficits fiscais sucessivos desde o final de 2014, quando houve a substituição de Guido Mantega, ministro mais associado com as políticas keynesianas, por Joaquim Levy, economista mais liberal. Levy elegeu como sua prioridade máxima a promoção do equilíbrio das contas públicas. No entanto, ao invés de reverter a "deterioração" das contas do governo, o terrível ajuste fiscal promovido por Joaquim Levy resultou em aumento do déficit do governo.

O gráfico abaixo mostra que ,desde 2015, quando o governo brasileiro passou a ser comandado por defensores da austeridade fiscal, e mesmo com a implementação do Teto de Gastos (área sombreada de vermelho), o resultado primário se manteve quase sempre deficitário.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria

Nota: Os dados se referem ao acumulado dos últimos 12 meses deflacionados pelo IPCA.

O fracasso político e social da austeridade fiscal adotada no Brasil a partir de 2014 resultou do diagnóstico errôneo assumido pelo ministro Joaquim Levy e compartilhado pelos formuladores do Teto de Gastos e pelo atual ministro Paulo Guedes. Para este grupo de economistas, o déficit seria fruto de um suposto crescimento desenfreado dos gastos públicos, que, portanto, precisavam ser congelados. Não é incomum ouvir de economistas liberais que a "Constituição não cabe no orçamento", e que o crescimento de gastos desde a sua promulgação seria insustentável.

A Emenda Constitucional 95 seria, portanto, uma espécie de solução final para os problemas provocados pela Constituição de 1988, que deveria passar, com a EC 95, por um reformismo constitucional permanente. Em termos fiscais, o teto atingiu seu objetivo de contenção do crescimento dos gastos reais, e as despesas primárias totais do governo permaneceram congeladas até a pandemia.

No gráfico abaixo, é possível ver o comportamento destas despesas, bem como sua estagnação desde a aprovação do Teto de gastos (linha vertical preta). O volume em azul ajusta o total de gastos, para descontar os efeitos dos gastos no combate à pandemia da COVID-19.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria

Nota: Os dados se referem ao acumulado dos últimos 12 meses deflacionados pelo IPCA. A curva em azul sofreu ajuste para retirar os gastos transitórios e de combate à pandemia.

Mesmo atingindo seu objetivo de conter o crescimento dos gastos, o teto de gastos não foi capaz de reverter o déficit primário, pois seus proponentes haviam trabalhado a partir de um diagnóstico errado. O gráfico abaixo evidencia que o crescimento do déficit não se deu pelo aumento dos gastos do governo, mas pela frustração da receita.

Durante os governos Lula 1 e Lula 2, a taxa de crescimento do gasto público foi a maior desde o Plano Real. Esse maior gasto público se convertia em renda do setor privado, que passava a consumir mais. O consumo privado induzia novos investimentos e assim a roda da economia ia girando e gerando impostos. O que os proponentes do teto de gastos não foram capazes de compreender e antecipar foi o impacto recessivo da redução e congelamento dos gastos públicos, que fez com que caísse mais ainda a arrecadação de impostos.

Isso explica o resultado superavitário dos primeiros governos de Lula e a deterioração das contas públicas depois de 2014. Simplesmente, mesmo que o governo estivesse verdadeiramente enfrentando uma crise fiscal (não estava), a solução adotada pelos economistas do governo desde 2014 de reduzir e congelar as despesas públicas acabou piorando a situação.

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro Transparente. Elaboração própria.

Nota: dados deflacionados pelo IPCA.

Apesar de os gastos agregados estarem estagnados, devido ao crescimento das despesas obrigatórias, o gasto discricionário, que inclui o investimento público, foi fortemente reduzido, deixando de atender às necessidades da população. Este cenário se torna mais drástico em um contexto de crescimento populacional, pois tal contexto implica queda de recursos disponíveis para atender cada cidadão. O gráfico abaixo retrata esta conjuntura e permite verificar as áreas mais afetadas pelo corte de gasto:

 Foto: Estadão

Fonte: Tesouro transparente. Elaboração própria.

Nota: dados deflacionados pelo IPCA.

É interessante notar como as despesas com saúde e educação foram fortemente afetadas em detrimento da rubrica genérica "demais despesas". Este fato vai de encontro à ideia de que o teto de gastos forçaria a melhor utilização dos recursos orçamentários. Na verdade, o teto de gastos beneficiou os gastos discricionários não planejados e em áreas não estratégicas, deteriorando a qualidade do gasto público, sob qualquer critério de avaliação dos gastos e da efetividade das políticas públicas.

Portanto, insistir em uma regra fiscal que já se provou deletéria é um erro grave, mas não maior do que insistir no diagnóstico de seus formuladores, apoiadores do golpe parlamentar de 2016, de que o Brasil estaria "quebrado", ou seja, que o governo federal estaria ameaçado de não conseguir financiar seus pagamentos.

O fato é que o Brasil não estava quebrado em 2014 e 2015, quando se usou essa mentira para justificar a emenda constitucional 95, e não estava quebrado em 2019, quando novamente o governo se utilizou da mesma mentira para justificar sua proposta de reforma administrativa que teria destruído o serviço público brasileiro caso fosse instituída. Afinal, se o Brasil realmente estivesse "quebrado", não teria sido capaz de realizar R$743 Bilhões de déficit em 2020 para combater a pandemia e seus efeitos.

E, certamente, o Brasil não está quebrado em 2022. Pelo contrário, o Estado brasileiro conta com um volumoso estoque de reservas internacionais e segue sendo o emissor soberano do Real. Alimentar o mito de que a crise fiscal no Brasil pode custar a nossa democracia, ao impedir que o governo eleito governe em acordo com as expectativas de seus eleitores, é fortalecer uma candidatura fascista em 2026. É preciso escutar a população que votou por mais salário mínimo, por mais direitos, por mais comida, por mais saúde e por mais educação.

Quando a proposta de revogação da Emenda Constitucional 95 é levantada, não é incomum que preocupações fiscalistas com a ampliação do déficit público e a elevação do nível da dívida pública em relação ao PIB sejam levantadas. No entanto, como vimos, o regime do teto de gastos não impediu nenhum desses resultados alegadamente indesejáveis, uma vez que o congelamento de gastos frustrou a arrecadação e impediu a retomada de uma taxa mais robusta de crescimento do PIB.

O momento é oportuno e o governo já se comprometeu com o esforço político de aprovar uma PEC que relaxe as restrições fiscais vigentes no país. Não há motivo para seguir no falso discurso de que o país está "quebrado" e que haverá necessidade de saneamento fiscal no futuro. A PEC ideal deveria estabelecer um Novo Consenso de Política Econômica no Brasil, trocando todas suas regras fiscais por princípios, flexíveis e adequáveis aos ciclos econômicos. Deve, ainda, prover o BCB de instrumentos legais para coordenar a política monetária com a política fiscal, substituindo a lógica do gasto discricionário descoordenado por um gasto estratégico e planejado combinado a uma política monetária crível, estável e previsível.

Não escutar o recado das urnas e seguir aumentando o déficit democrático em nome de uma suposta austeridade fiscal desnecessária, disfuncional e deletéria, na atual circunstância, é que seria a verdadeira irresponsabilidade.

Nota

[1] Veja Conceição, Daniel & Dalto, Fabiano(2022) para uma discussão dos mecanismos operacionais do processo de gasto público.

Referência

Conceição, Daniel & Dalto, Fabiano A S (2022). A Importante Lição da Coronacrise sobre os limites dos Gastos Públicos. In Rudnei Marques & José Celso Cardoso Jr(org) Dominância Financeira e Privatização das Finanças Públicas no Brasil. Fonacate. Brasília.

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