BRASÍLIA – O corte de verbas do Ministério da Saúde, promovido pelo governo Jair Bolsonaro (PL) para reservar dinheiro ao orçamento secreto, em 2023, atingiu 12 programas da pasta, entre eles o que distribui medicamentos para tratamento de aids, infecções sexualmente transmissíveis e hepatites virais. Somente nesta frente o ministério perdeu R$ 407 milhões, quando comparados os orçamentos propostos para 2022 e o ano que vem. Se somadas, as perdas de recursos nos 12 programas chegam a R$ 3,3 bilhões (veja lista abaixo).
O tamanho da tesourada varia, como indica o Boletim de Monitoramento do Orçamento da Saúde. O documento é preparado pela equipe do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e da associação filantrópica Umane. No custeio de bolsas para residentes em medicina “Pró-Residência Médica e em Área Multiprofissional”, por exemplo, o impacto foi de R$ 922 milhões.
Os pesquisadores analisaram essas 12 rubricas, comparando os projetos de Lei Orçamentária Anual enviados pelo governo para o corrente ano de 2022 e para 2023, com correção da inflação por meio do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), acumulado até julho.
Por não ter vetado um dispositivo na Lei de Diretrizes Orçamentárias, que obrigava a reserva de R$ 19,4 bilhões a emendas do orçamento secreto – usadas pelo governo em negociação política com deputados e senadores –, o governo promoveu um corte linear de 60% nas despesas da Saúde.
Toma lá, dá cá
A prática do orçamento secreto foi revelada pelo Estadão em uma série de reportagens. Com verbas distribuídas a redutos eleitorais de parlamentares, Bolsonaro espera agora o apoio de deputados e senadores na disputa do segundo turno contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O “Atendimento à População para Prevenção, Controle e Tratamento de HIV/AIDS, outras Infecções Sexualmente Transmissíveis e Hepatites Virais Total” faz parte da assistência farmacêutica no SUS. O dinheiro banca a compra, a produção e distribuição de medicamentos voltados para o tratamento de pessoas com HIV, como antirretrovirais, e demais doenças.
Desde os anos 1980, o País nunca conseguiu acabar com a epidemia causada pelo HIV. Houve registro de 1.045.355 casos de aids, sendo 13.501 no ano passado. Em 2020, 10.417 pessoas morreram da doença e o número total de vítimas chegou a 291.695. Os dados são do Boletim Epidemiológico Especial HIV/Aids de 2021, do governo federal.
Segundo o documento, especialistas do ministério afirmam que há uma diminuição de casos nos últimos anos. Suspeitam, porém, que exista subnotificação, ligada ao direcionamento de profissionais da saúde para atuar no combate à pandemia de covid-19.
O “Pró-Residência” é um programa de financiamento de bolsas de residência médica, etapa em que profissionais recém-formados passam por especialização. Os recursos auxiliam a interiorizar a formação de especialistas e a atuação destes profissionais em áreas remotas ou com baixo provimento de médicos. A verba permite o custeio e a abertura de novas vagas, em parceria com secretarias de Saúde municipais, estaduais e entidades filantrópicas. A redução orçamentária, portanto, implica na diminuição de bolsas e da formação de médicos e profissionais de saúde especialistas.
Farmácia Popular
O estudo incluiu alguns cortes já revelados pelo Estadão, como as verbas do Médicos Pelo Brasil, sucessor do Mais Médicos; da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e da Atenção à Saúde de Populações Ribeirinhas e de Áreas Remotas na Amazônia, uma parceria com o Exército e a Marinha. A reportagem também identificou cortes no Farmácia Popular e nas verbas para equipar e reformar hospitais especializados no tratamento de câncer, entre outros.
Para Victor Nobre, responsável pelo levantamento no Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, a tesourada nas verbas destinadas a indígenas e ribeirinhos na região amazônica “pode deteriorar ainda mais a situação dessas populações, que já se encontram fragilizadas”.
O pesquisador também criticou a retirada de dinheiro público para pesquisa e desenvolvimento de tecnologia. “Tendo em vista o aumento da incidência de doenças crônicas não-transmissíveis e o envelhecimento da população brasileira, desenvolvimento tecnológico e inovação em saúde são condicionantes imprescindíveis para gerarmos eficiência e equidade no SUS”, argumentou Nobre. “O corte, somado a uma conjuntura em que cada vez menos recursos são investidos em pesquisa e desenvolvimento, torna o cenário cada vez mais desafiador e de maiores dificuldades na resolutividade dos indicadores epidemiológicos do País, especialmente em um contexto pós-pandemia.”
O boletim afirma que, se os cortes não forem revertidos, “poderão gerar agravos a ações fundamentais do Sistema Único de Saúde (SUS)”. De acordo com as entidades, houve cortes em outras áreas do ministério, mas o foco da pesquisa foi naqueles que apresentaram as maiores reduções, com impacto nas políticas públicas de saúde.
Questionado pelo Estadão sobre as rubricas prejudicadas, o Ministério da Saúde informou que está “atento às necessidades orçamentárias e buscará, em diálogo com o Congresso Nacional, as adequações necessárias na proposta orçamentária para 2023″. A votação da Lei Orçamentária Anual de 2023 deve ocorrer até dezembro, quando o próximo presidente da República já estará eleito.
Veja a lista de perdas motivada pelo corte:
Implementação de Políticas de Promoção à Saúde e Atenção a Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT) - R$ 3,8 milhões
Programa Médicos pelo Brasil - R$ 366 milhões
Pesquisa, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação em Saúde - R$ 297 milhões
Alimentação e Nutrição para a Saúde - R$ 43 milhões
Educação e Formação em Saúde - R$ 76 milhões
Pró-Residência Médica e em Área Multiprofissional - R$ 922 milhões
Sistemas de Tecnologia de Informação e Comunicação para a Saúde (e-Saúde) - R$ 206 milhões
Implantação e Funcionamento da Saúde Digital e Telessaúde no SUS - R$ 26 milhões
Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena e Estruturação de Unidades de Saúde e Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) para Atendimento à População Indígena - R$ 910 milhões
Atenção à Saúde de Populações Ribeirinhas e de Áreas Remotas da Região Amazônica - R$ 10 milhões
Atendimento à População para Prevenção, Controle e Tratamento de HIV/AIDS, outras Infecções Sexualmente Transmissíveis e Hepatites Virais Total - R$ 407 milhões
Implementação de Políticas para a Rede Cegonha e Implementação de Políticas para Rede de Atenção Materno Infantil - R$ 18 milhões
Fonte: Boletim de Monitoramento do Orçamento da Saúde, produzido pela equipe do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e da associação filantrópica Umane
Correção: O IEPS divulgou uma errata ao boletim, em 13/10/2022, corrigindo o valor da redução de verbas da Rede Cegonha. A perda foi de R$ 18 milhões, e não de R$ 28 milhões como reportado antes.