BRASÍLIA – A distribuição das vacinas contra a covid-19 é hoje feita pelo Ministério da Saúde a partir dos serviços de uma empresa já investigada por suspeitas de superfaturamento de R$ 16 milhões na própria pasta. O valor foi apontado pela área técnica do Tribunal de Contas da União em contrato anterior firmado na pasta pelo grupo Voetur, proprietário da VTCLog, atual encarregada da logística para a entrega de vacinas.
Criado nos anos 1990, o grupo Voetur pertence ao empresário Carlos Alberto de Sá. Com histórico de investigações por órgãos de controle, a empresa que faz a distribuição das vacinas entra agora na mira da CPI da Covid: os senadores aprovaram um requerimento do vice-presidente do colegiado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), para convocar a dirigente da empresa, Andreia Lima, por causa de novas suspeitas de irregularidades.
“A suspeita é por ela (VTCLog) ter contratos com o Ministério. (Pode haver) contrato superfaturado para distribuição de vacinas. Vamos ver, estamos investigando”, disse o relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), ao Estadão.
No requerimento de convocação da executiva, Randolfe Rodrigues cita o fato de a empresa ter “contratos de grande monta com o Ministério da Saúde e importante papel na imunização dos brasileiros”’. Só neste ano, o Ministério da Saúde empenhou R$ 258,14 milhões em favor da VTCLog, dos quais R$ 137,5 milhões já foram pagos.
Os técnicos do TCU se manifestaram numa tomada de contas especial (TCE), instaurada no ano passado, em relação a contratos anteriores já firmados com a companhia. O processo faz referência a supostas irregularidades em dois contratos antigos da Voetur com o Ministério, assinados em 1997 e em 2003. Nos dois casos, a auditoria do TCU encontrou suspeitas de irregularidades.
No caso de 2003, uma auditoria do TCU feita em 2005 analisou uma parte (22%) dos pagamentos feitos pelo Ministério à empresa, e encontrou irregularidades que somavam R$ 2,095 milhões à época. Já no contrato de 1997 foram analisados quase um terço dos pagamentos.
Segundo o TCU, “ficou comprovado que os pagamentos à empresa ficaram 1.825% acima do valor contratado; (que houve) descumprimento de cláusulas contratuais pela VOETUR; ausência de documentos fiscais legais para a cobrança dos serviços, bem como prejuízos financeiros ao Erário em razão das distorções e irregularidades financeiras aqui relatadas”. O prejuízo somou R$ 852 mil, em valores da época. Segundo o TCU, o valor desses débitos corrigido para os dias atuais é de R$ 16,169 milhões.
Procurada, a VTCLog disse não ter sido notificada da tomada de contas. A companhia informou que não recebeu nenhuma notificação do TCU para se manifestar nesses casos — embora já tenha apresentado defesa nas auditorias originais. A empresa também enviou uma certidão emitida pelo TCU atestando que não há, neste momento, condenações contra a companhia, isto é, a VTCLog está fora da lista de empresas inidôneas e está apta a participar de licitações.
Trata-se de casos que, agora, somam-se a novas denúncias contra a empresa e serviços prestados durante a pandemia da covid-19. A companhia está envolvida em suspeitas que envolvem um aditivo de R$ 18 milhões em um contrato atual da VTCLog com o Ministério da Saúde. Neste caso, o valor teria sido 1.800% superior ao recomendado pela área técnica da pasta, de acordo com reportagem do Jornal Nacional, da TV Globo. A VTCLog nega irregularidades, também, neste caso.
O relatório do TCU sobre os casos mencionados nesta reportagem traz uma tabela que explica a origem dos supostos prejuízos. Em alguns casos teria havido “pagamento a maior em função da utilização do frete terrestre em vez do aéreo”. Em outras situações, o peso da mercadoria considerado teria sido calculado a maior. Há também a cobrança de tarifas indevidas e acima da tabela vigente à época, segundo a auditoria.
Por fim, os técnicos concluem que a empresa deve responder por um dano aos cofres públicos no valor atualizado de R$ 16,1 milhões.
Em nota ao Estadão, a empresa também disse prestar serviços “tanto para a iniciativa privada quanto pública e, hoje, pode afirmar ser o maior operador logístico de fármacos da América Latina, com destaque tanto na armazenagem quanto na distribuição da cadeia de frios”. “Além disso, é importante ressaltar que procedimentos do Tribunal de Contas da União (TCU) de análise de contratos da Administração Pública são rotineiros. É natural que uma empresa com 36 anos de existência tenha passado pelo escrutínio do tribunal algumas vezes, e, em todas as ocasiões, prestou os devidos esclarecimentos, sempre aceitos pela Corte de Contas”.
O Ministério da Saúde foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos enviados pela reportagem.
Empresa ganhou espaço na gestão de Ricardo Barros
Até 2018, a logística de materiais como vacinas e medicamentos era feita no Ministério da Saúde por um órgão da própria pasta, a Central Nacional de Armazenagem e Distribuição de Imunobiológicos (Cenadi), que tinha contratos com várias empresas terceirizadas, entre elas a própria VTCLog. O galpão principal ficava no Rio de Janeiro.
Com o discurso de diminuir gastos, o então ministro, o deputado Ricardo Barros (PP-PR), decidiu desmobilizar a Cenadi e promover uma licitação para concentrar em uma única empresa a logística do Ministério da Saúde. A licitação começou em novembro de 2017 e foi concluída em 2018. De início, a VTCLog tinha ficado em segundo lugar no certame. A primeira colocada acabou inabilitada, e a VTCLog assumiu o contrato com o Ministério da Saúde em março de 2018, no valor de R$ 97 milhões. O contrato é válido até 2023.
Procurado pelo Estadão, Barros defendeu a decisão de contratar uma única empresa. “A medida fez parte de um amplo processo de gestão que reviu contratos em todas as áreas do Ministério. Esta e outras ações geraram R$ 5 bilhões em economias que foram reinvestidos diretamente em benefício da população brasileira”, disse ele.
Já a VTCLog disse não ter qualquer relação com o ex-ministro. “Informamos que os contratos da empresa com o poder público são e sempre foram objetos de processos licitatórios devidamente fiscalizados pelos órgãos de controle. Portanto, inexiste qualquer relação ou benefício advindo de qualquer membro da Administração Pública”, disse a empresa, em nota.