BRASÍLIA - Nesta terça-feira, a Guerrilha do Araguaia completa 50 anos. O tempo trouxe mais dúvidas que respostas sobre a execução de dezenas de integrantes do movimento armado na floresta amazônica. Esta história chegou à fase em que mães e pais das vítimas morreram ou não têm mais condições físicas de exigir os corpos dos filhos nunca devolvidos pelas Forças Armadas.
A 12 de abril de 1972, o Exército deflagrava no sudeste do Pará a primeira de três operações para sufocar o movimento armado do PCdoB, composto por cerca de 100 guerrilheiros, a maioria deles universitários das grandes cidades. Naquele dia, Geraldo, codinome do estudante cearense José Genoino, era preso numa trilha por militares que estavam na região desde o começo daquele mês. Os primeiros presos enfrentaram o inferno da tortura; os capturados da fase final não saíram vivos da selva, mesmo sem oferecer risco algum aos carcereiros.
Certa vez, ouvi um filho de um oficial do Exército que se destacou no Araguaia perguntar ao pai: “Por que vocês não botaram aqueles meninos de 20 poucos anos num ônibus e mandaram para casa?”, perguntou. O oficial não deu uma resposta imediata.
Mães morreram sem saber o que ocorreu na mata. Uma delas, moradora de Petrópolis, no Rio, recebeu um aviso de que alguém lhe daria informações sobre a filha guerrilheira num ponto de ônibus da Praia do Flamengo, sempre na tarde de um dia específico da semana. Por anos, ela desceu a serra para, no dia estipulado, encontrar o informante que jamais apareceu.
Pela força dos personagens e pela experiência trágica e ousada dos guerrilheiros, o Araguaia até pouco tempo despertava muito interesse da opinião pública. A decisão das Forças Armadas em não informar sobre o destino dos corpos dos mortos nos quartéis improvisados da selva tornou a guerrilha um capítulo em aberto da história e um debate sempre vivo.
A partir da democratização, o País conheceu testemunhos e documentos que ajudaram a entender uma história que os militares procuraram esconder desde seu início. Ainda em 1972, o Estadão divulgou pela primeira vez que havia um conflito no Araguaia. Ainda assim, o Exército manteve a versão de que era apenas uma manobra. Com o fim da ditadura, Cristina, Raul, Arildo, Áurea, Dr. Juca, Luiz Renê, Simão, Paulo Roberto, Jaime, Valdir, Dina, Osvaldo e outros não voltaram. Nos anos 1990, o Estado brasileiro reconheceu que eles tinham sido mortos. Os militares, então, disseram que as mortes ocorreram em combate.
Em 2009, o Estadão divulgou documentos do arquivo de Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, que revelaram que 41 guerrilheiros tinham sido aprisionados na Casa Azul, o QG do Exército em Marabá, e depois executados. A versão dos combates estava desmontada.
Não se pode atribuir a Jair Bolsonaro, um ex-capitão do Exército de uma geração pós-guerrilha, o esforço para tirar o Araguaia do foco do debate. Afinal, Bolsonaro sempre usou a tribuna da Câmara em seu tempo de deputado para falar da guerrilha - os discursos eram baseados em testemunhos falsos de militares da reserva.
Na eleição de 2018, falar de Araguaia já se tornara mais difícil para famílias e pesquisadores. As demandas sociais de todas as ordens se avolumavam e a Nova República vivia seu momento decisivo. Os militares voltavam à cena política. No processo eleitoral, os jornalistas que levantaram o tema dos crimes praticados pela ditadura foram desqualificados - as pessoas não querem saber de tortura e assassinato do passado, afirmavam setores da opinião pública.
Para muitos influenciadores, questionar o papel dos militares na história era uma preocupação de um “nicho”, que favorecia a campanha de Bolsonaro. Foram os mesmos que demonstrariam surpresa com os arroubos autoritários do presidente eleito e uma política de governo de desdém da ciência ao longo da pandemia que matou mais que a soma de todas as guerras no Brasil.
A violência desenfreada num país que registrou no ano passado 41 mil homicídios talvez seja um fator que dificulta o debate sobre o Araguaia. No município de Marabá, epicentro da repressão à guerrilha, em três meses morrem mais jovens assassinados que o total de guerrilheiros mortos entre 1972 e 1974, período que durou o confronto.
Quem faz pesquisa no Araguaia sempre é questionado sobre o motivo de mergulhar numa história aparentemente isolada. É estranho para muitos a insistência de alguém por um caso que, do ponto de vista frio dos números, não difere das temporadas de chacinas nos morros e periferias cada vez mais comuns mesmo nas metrópoles da Amazônia. A propósito, se no Brasil houve alguma queda em 2021 no número de homicídios, na Região Norte o que se registrou foi um aumento de 10%.
Num aparente paradoxo, a discussão sobre o Araguaia, um embate do tempo de um mundo dividido pela Guerra Fria, parece não se acomodar hoje nem mesmo no ambiente polarizado e quase sempre raso das redes sociais. É um tema complexo, que vai além das polêmicas que nascem pela manhã e acabam à tarde. Talvez seja um assunto que extrapola os limites dos campos ideológicos. Vale lembrar que, depois do Araguaia, ex-guerrilheiros sobreviventes continuaram alvo da extrema direita, que via o inimigo sem armas como inimigo. Também foram criticados pela extrema esquerda por pedirem uma reavaliação da conduta do partido. Na terra arrasada do pós-ditadura, ousaram defender o diálogo.
Há alguns motivos que tornam a história do Araguaia singular. O primeiro deles é que trata-se da última repressão do Estado a movimentos insurgentes com a prática do corte de cabeça. Em plena era da TV em cores, o País viveu um refluxo do tempo, repetindo barbáries do século 19, como os dias finais da Guerra do Paraguai, a Revolução Federalista e o massacre de Canudos. O segundo motivo é que o Araguaia envolveu uma geração de oficiais numa guerra não convencional e sua repressão foi organizada a partir do Palácio do Planalto. Outro motivo é a decisão das Forças Armadas de não entregar os corpos às famílias, uma situação incomum mesmo nos casos dos mortos do tráfico de drogas e da violência urbana.
Essa postura da cúpula militar de impedir que as famílias enterrem seus mortos e, assim, encerrem o ciclo da vida revela lacunas não apenas na história do Araguaia. Há muitas perguntas sem respostas sobre o Estado Brasileiro, que costuma estar na linha de frente da matança - a repressão à guerrilha é um caso único, pois a sua cadeia de comando ficava simplesmente dentro da Presidência da República.
A história do movimento armado e seus vazios podem explicar um país onde se mata demais, a violência se banalizou e parcela significativa da população pode ser atraída pelo discurso da morte. Talvez, por isso, falar da guerrilha parece ter perdido o sentido.