Idealizador da chapa que reuniu dois históricos rivais em 2022, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Geraldo Alckmin (PSB), Felipe Soutello diz que as principais marcas dos governos petistas, como o Bolsa Família e o Prouni, já foram apropriadas pela população e podem não ser suficientes para impulsionar a reeleição de Lula. Segundo ele, o nível de exigência dos eleitores aumentou, e enfrentamos uma crise internacional na qual as promessas de prosperidade não estão se concretizando.
“As pessoas não estão vislumbrando uma melhora de vida sustentável no tempo”, observa Soutello, que vê o fim da jornada 6x1 e a eliminação dos supersalários no setor público como “excelentes oportunidades” para o governo. Para ele, uma estratégia mais eficaz para a esquerda em 2026 seria abrir mão de espaços regionais em nome de uma coalizão mais forte com o centro, concentrando esforços na eleição de uma bancada mais robusta no Congresso.
Soutello começou sua trajetória em campanhas eleitorais em 1986, atuando pela candidatura de José Serra à Câmara dos Deputados – na época, tinha apenas 15 anos –, e a paixão pela política se tornou profissão. Filiado ao PSDB desde a fundação em 1989, o estrategista, como prefere ser chamado, trabalhou para figuras de peso, como Serra, Alckmin e Bruno Covas.
Na última eleição presidencial, Soutello foi responsável pela campanha de Simone Tebet (MDB) e articulou para que a senadora declarasse apoio a Lula no segundo turno, movimento considerado decisivo para a apertada vitória do petista sobre Jair Bolsonaro (PL). Dois anos após a eleição mais acirrada da história, Soutello enxerga uma “avenida enorme” para o centro democrático em 2026 e aposta no potencial de uma chapa entre MDB e PSD, que ele vê como os grandes vencedores desta eleição municipal.
Em entrevista ao Estadão, Soutello, que foi conselheiro do prefeito Ricardo Nunes (MDB) e este ano atuou na campanha de José Luiz Datena (PSDB), disse que a candidatura de Pablo Marçal (PRTB) à Prefeitura de São Paulo expôs a necessidade de uma reforma política para corrigir distorções que as redes sociais impuseram ao sistema eleitoral. Para ele, Nunes terá desafios significativos pela frente, como sustentar a grande coligação que o elegeu e lidar com as finanças do município.
“Apesar da excelente capacidade de caixa, a folga orçamentária conquistada com o acordo da dívida já teve seus efeitos diluídos e organizar o crescimento exponencial do custeio e executar o programa de metas que é bastante robusto, com volume de investimentos recorde, não será fácil.”
Muito se falou sobre a vitória do centro na eleição municipal. Esse resultado positivo para partidos como PSD e MDB reflete o cansaço da população em relação à polarização ou a força da máquina da prefeitura?
Tivemos um alto índice de reeleição. A força das administrações, sobretudo nos grandes centros, ficou clara, enquanto nas cidades menores as emendas parlamentares podem ter contribuído adicionalmente para esse volume todo de reeleição. Os grandes vencedores da eleição municipal foram o PSD e o MDB, que são forças do centro com forte presença regional. O que eles vão fazer com esse ativo é um outro problema, porque me parece que há uma avenida enorme para o centro democrático em 2026. Uma possibilidade muito real de a gente sair desse pêndulo entre Lula e Bolsonaro e construir um outro espaço.
Por que agora haveria espaço para o centro, considerando que esses mesmos partidos já saíram vitoriosos em 2020, mas a eleição presidencial de 2022 foi marcada pela polarização entre Lula e Bolsonaro?
Porque agora temos a soma de um grande volume de prefeituras, que ficou nas mãos do PSD e do MDB, com um Congresso Nacional no qual o centro ocupa um grande espaço. Além disso, temos Bolsonaro inelegível até aqui.
Se MDB e PSD pensarem em um projeto de centro, há algum nome competitivo?
O PSD e o MDB têm nomes que podem ocupar uma candidatura presidencial. Ratinho Junior e Simone Tebet para citar apenas dois exemplos. Mas o exercício de nomes não vem antes de você pensar qual é o projeto, o desejo dos partidos. E o caminho para MDB e PSD (estarem juntos em 2026) é plausível. É uma possibilidade dentro de alguns cenários. A variável Tarcísio (de Freitas) deve ser observada, ainda mais depois da vitória na capital, com Ricardo Nunes. Sempre o governador de São Paulo se coloca como possibilidade. Foi assim com Geraldo Alckmin e José Serra. Mas eleição majoritária, sobretudo presidencial, sempre é circunstância.
Quais lições a esquerda pode tirar do resultado desta eleição?
Talvez o foco da esquerda deva ser aumentar sua bancada no Legislativo, especialmente no Congresso Nacional. Talvez esse seja o segredo para a esquerda, porque é no Congresso que a pauta do País acontece. Talvez seja melhor concentrar esforços para, caso o presidente Lula seja candidato à reeleição, eleger uma bancada maior e abrir mão de espaços regionais em nome de uma coalizão mais forte com o centro. Me parece que isso seria um desenho mais inteligente para 2026.
Você foi o idealizador da chapa Lula-Alckmin. Para 2026, qual movimento Lula deverá fazer, considerando que Alckmin já não representa uma novidade?
A aliança com o PSB em 2022 foi resultado do que foi possível. Geraldo Alckmin representou uma ampliação importantíssima dentro do PSB, que é o aliado histórico mais antigo do PT junto com o PCdoB. Então, a questão é: isso será suficiente para oferecer ao presidente Lula o espaço que ele precisará? Algo a se ver. Mais uma vez é preciso reconhecer a força do MDB e do PSD.
Como você avalia o governo Lula 3 e o que as pesquisas qualitativas mostram sobre a percepção da população?
Evidente que a economia é importante. Nós estamos com condições econômicas boas, com baixo desemprego, embora os juros sejam extorsivos, o que é um grande problema. Há um esforço, sobretudo da Simone Tebet e do Fernando Haddad, de fazer um ajuste fiscal. Mas não é só sobre isso. Aumentou o nível de exigência do eleitor e nós estamos diante de uma crise, que é internacional, na qual as promessas de prosperidade não estão se concretizando. As pessoas não estão vislumbrando uma melhora de vida sustentável no tempo. Temem pelo futuro dos seus filhos. Estamos diante de um problema estrutural de difícil solução, e o eleitor agora vota com muitos outros fatores em mente. A questão do fim da jornada 6x1 e do fim dos supersalários no setor público, propostos por Erika Hilton e (Guilherme) Boulos, podem ser excelentes oportunidades para o governo.
Falta uma pauta, então?
Não é que falte uma pauta, mas o governo não está conseguindo comunicar claramente suas bandeiras e marcas. O que está entregando? As principais marcas já foram apropriadas pelas pessoas. Não são novidades. O Bolsa Família virou direito e está apropriado. O Prouni da mesma forma. São políticas maravilhosas e foram muito úteis, como memória, para o confronto com Bolsonaro, mas não necessariamente servirão para a reeleição. Fez o Pé de Meia, que é um programa inovador, mas que precisa de alguns anos para gerar efeitos importantes. Os resultados serão mais bem sentidos em um próximo governo. Se não baixar os juros, se envolver melhor com o universo e as redes do empreendedorismo e resolver a questão da casa própria, não há sonho. Importante o governo compreender bem o que as pessoas estão sonhando.
Vê Bolsonaro como vitorioso nesta eleição?
Acho que ficou do tamanho dele. Está construindo candidaturas ao Senado pelo Brasil inteiro, algo que a esquerda não está fazendo. A chance que ele tem de ter alguma sobrevida na política é fazer uma inflexão a partir do Senado.
Então, na sua opinião, Bolsonaro ainda tem relevância política ou já ficou para trás?
Estamos diante da construção de uma nova figura de direita. (Ronaldo) Caiado (governador de Goiás) não tem nada a perder e tenta se organizar para isso, mas não representa exatamente uma renovação, já que é candidato desde 1989. Nesse aspecto, Tarcísio talvez possa ser mais promissor. Ainda assim, a eleição de 2026 ainda é a expectativa sobre o que Lula fará. Como ele é o fenômeno eleitoral mais importante desde a redemocratização, as decisões em grande medida dependem de Lula. No próximo ano o cenário ficará mais claro.
Qual leitura você faz do fenômeno Marçal e que lições ele deixou sobre a eleição?
Marçal é um resquício da implementação da cláusula de barreira. A lei está em período de transição para suas condições finais e o Marçal é o fenômeno colateral da existência de partidos pequenos que não representam ninguém nem significam nada do ponto de vista ideológico. Outro aspecto tem a ver com a lógica pela qual a opinião pública, e sobretudo a imprensa, reagiu à participação dele no processo eleitoral. A imprensa caiu nessa grande armadilha. Os cliques são muito importantes para os veículos de comunicação e escrever sobre Marçal tinha repercussão.
O terceiro fenômeno é a própria lógica das redes sociais e as contradições que ela estabelece em relação à legislação. A Meta foi o maior fornecedor das eleições. É estranho terminar o processo eleitoral tendo um oligopólio de comunicação internacional sendo a única empresa de mídia em que foi possível utilizar recursos do Fundo Eleitoral. O Google saiu fora do processo, o TikTok também… E a lei veda que possamos comprar anúncios em outros veículos, fora pequenos anúncios em impressos. Isso é algo que deveria ser mais aberto para todas as mídias.
Evidente que o Instagram é importante em termos de hábitos de leitura e formação da opinião pública, mas seus critérios de distribuição dos conteúdos não são transparentes o suficiente em relação à sua potencial interferência nas eleições. A lógica do rendimento dos recursos aplicados é diferente para cada um dos candidatos. O algoritmo é individualizado. Marçal é uma empresa de comunicação, não é uma pessoa física na rede. Ele tem negócios que giram em torno da rede social. Não pode ser tratado da mesma forma que outros candidatos. Sempre é bom lembrar que o Brasil adota um modelo que veda a participação de pessoas jurídicas na eleição.
Por outro lado, a lei exige que políticos se desincompatibilizem de cargos no Executivo para serem candidatos ao Legislativo e impede que profissionais de TV e rádio trabalhem durante o processo eleitoral, justamente para impedir o favorecimento e equilibrar o jogo.
No caso da internet, das redes sociais, não há qualquer regra de restrição. Esses aspectos devem ser considerados também em uma reforma política. Por último, Marçal evidenciou que o sistema judicial brasileiro ainda não está totalmente preparado para lidar com a velocidade dos fatos. Além disso, a penalidade de multa, em razão da vantagem que esses mecanismos geram, é irrisória. Os candidatos devem ser responsabilizados de forma mais dura pela emissão que fizerem.
Marçal expôs a necessidade de reforma política?
Com certeza. É preciso uma nova reforma política para corrigir algumas distorções que as redes sociais impuseram ao sistema eleitoral. Guilherme Afif e Gilberto Kassab estão colocando corretamente a discussão sobre a reforma política para mudar o sistema de votação brasileiro e adotar o voto distrital misto. Esse modelo é uma vacina muito importante contra fenômenos individualistas e personalíssimos que têm surgido como consequência das redes sociais. O voto distrital misto divide o território em distritos menores, tornando os candidatos mais conhecidos de suas bases, e exige que os partidos escolham um representante por distrito.
Ao mesmo tempo, metade dos deputados é eleita por uma lista, o que fortalece os partidos e suas causas. Inclusive, fortalece os candidatos com base forte em redes sociais, mas eles estarão conectados a um processo político coletivo, partidário, o que ajuda com certa institucionalidade. Isso fortalece a democracia e evita os lobos solitários.
Esse sistema é adotado pela Alemanha e outros países democráticos desenvolvidos. Já há projeto do José Serra aprovado no Senado e hoje teria menos dificuldade na Câmara, pois grande parte dos parlamentares são de base territorial. É uma questão de organizar. Essa pauta deveria interessar também ao governo.
Você fez a campanha do Datena e havia uma grande expectativa de que a candidatura dele decolasse. O que aconteceu?
Me parece que Datena é autêntico demais para o ambiente de uma eleição. Virou um amigo querido. É alguém com uma visão de mundo forte, com muita sensibilidade social, mas que teve muita dificuldade de se adaptar ao desenho do que é uma candidatura. Para muita gente, a política é um espaço difícil. Requer muito desprendimento e sangue frio.
Você foi um quadro histórico do PSDB. O que falta para o partido voltar ao que era?
O resultado da eleição não foi bom em São Paulo. Acho que o PSDB ficou sem lugar nessa eleição. Eles estão tentando uma negociação para uma fusão, mas não estão tendo muito sucesso, porque os espaços estão se fechando. Agora, veja, é um partido de quadros muito importante. Estão dispersos. Eduardo Leite e Raquel Lyra são lideranças que admiro e fundamentais para a renovação no cenário nacional.
Talvez falte um projeto, um programa inovador, algo que consiga catalisar, que junte e mobilize as pessoas. Isso precisa ser de forte base digital. Um pouco do que a Tabata Amaral fez na eleição municipal. Ela catalisou excelentes cabeças do PSDB. As que não estavam na administração do Ricardo foram trabalhar com ela. Aliás, é curioso como ela, nessa eleição, e Simone, em 2022, tiveram desempenho eleitoral bastante parecido na cidade de São Paulo.
Quais são os desafios para Ricardo Nunes?
Ricardo conquistou um resultado muito significativo e a ausência de Bolsonaro não fez falta. Mérito de sua tenacidade. Ele é muito comprometido com o trabalho e faz uma boa gestão. Os desafios são grandes. Em São Paulo, sempre é assim. De um lado, sustentar a grande coligação que ele conseguiu montar para a eleição. De outro, apesar da excelente capacidade de caixa, a folga orçamentária conquistada com o acordo da dívida já teve seus efeitos diluídos e organizar o crescimento exponencial do custeio e executar o programa de metas que é bastante robusto, com volume de investimentos recorde, não será fácil. Ele gerou muitas expectativas e precisa atender. Olhar o resultado do segundo turno e se inebriar com ele pode ser um grande erro. O melhor é escutar bem as urnas do primeiro turno e ter elas como guia.
Qual caminho você vê para o Boulos?
Acho que Guilherme mostrou resiliência ao enfrentar uma campanha dura, ser muito criticado, ver seus atributos de rejeição reforçados e lidar com mentiras escabrosas. Mesmo nessa circunstância adversa, ele conseguiu manter um patamar de votos semelhante à eleição anterior. O desafio dele é definir qual caminho deseja seguir. Se seu objetivo é uma campanha majoritária, ele precisará flexibilizar alguns conceitos e demonstrar mais disposição para ser mais permeável às ideias da sociedade. Uma espécie de exercício prático da Carta à São Paulo que ele publicou. Seria importante para Boulos, assim como para Tabata, a oportunidade de uma experiência no Executivo para ampliar a percepção sobre sua capacidade de realizar políticas.