‘Indígenas vivem um dos momentos mais difíceis de sua história’, diz Sydney Possuelo


Maior sertanista da atualidade diz que não há ‘decisão profunda, forte, inabalável’ do presidente Lula para assegurar direitos indígenas e que criação do Ministério dos Povos Indígenas foi ‘jogo político’; ele cobra que petista peça de volta medalha do mérito indígena que Bolsonaro se concedeu enquanto presidente

Por Leonencio Nossa
Atualização:
Entrevista comSydney PossueloEx-presidente da Funai

Há seis décadas, o sertanista Sydney Possuelo vive intensamente o Brasil. O início da trajetória dedicada aos povos indígenas foi no auxílio aos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, no Parque do Xingu. Depois vieram intermináveis conflitos enfrentados pelas comunidades tradicionais com o avanço das obras de infraestrutura da ditadura militar. Fez primeiros contatos com grupos isolados de guajás, no Maranhão, araras e paracanãs, no Pará, e korubos, no Amazonas. Como presidente da Funai, conseguiu demarcar o Território Yanomami, o maior do País, em 1992, e avançar no reconhecimento do Vale do Javari e da Raposa Serra do Sol, nos Estados de Roraima e Amazonas.

A primeira entrevista dele ao Estadão foi ainda em 1973, quando explicou o drama de indígenas atingidos pela abertura de uma rodovia em Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso. Em 2002, o jornal o acompanhou em sua última grande expedição, uma viagem de 105 dias ao Javari, para fiscalizar a presença de pescadores e garimpeiros em áreas de isolados. Sempre manifestou repúdio e preocupação com ações do governo que afetavam a vida na mata. Numa dessas entrevistas, em 2008, criticou o então presidente do órgão indigenista de defender madeireiros. Foi demitido. No momento atual, as críticas e reclamações do sertanista são acompanhadas por uma espécie de apelo aos Três Poderes da República. “O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra”, diz.

O sertanista Sydney Possuelo em sua casa em Brasília. Foto: Leonencio Nossa
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Como o senhor avalia a atuação do Congresso na área indígena?

Este momento que vivem os povos indígenas e o meio ambiente é um dos mais difíceis na história, deles, do indigenismo.

Por quê?

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Há uma pressão para mudanças radicais nas leis. Essas mudanças não são para a defesa e a demarcação das terras indígenas, pelo contrário. No Congresso, a bancada ruralista e os mineradores querem acabar com a atual legislação. A bancada evangélica, por sua vez, tem se mostrado também, de um modo geral, mais disposta a servir às invasões das terras indígenas e à política da não demarcação. Não atua na defesa dos povos indígenas. O que espanta em tudo isso é que, nessa ação clara do Congresso contra os povos indígenas, você não vê no seio da sociedade brasileira uma manifestação contrária mais profunda. Onde estão as organizações não governamentais? As grandes não se manifestam. Você vê apenas manifestações de associações indígenas. Você não vê alguém de muita influência que se coloca contra isso que ocorre.

Os partidos mais progressistas não estão empenhados?

Quantos anos o PT está no poder? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa, agora, nove anos no poder, e tem ainda o período da Dilma Rousseff. E o que foi feito nessa época a favor do meio ambiente e dos povos indígenas? No nosso tempo de nossa presidência na Funai (julho de 1991 a maio de 1993), nós conseguimos duplicar a superfície de terras indígenas – demarcamos grandes áreas –, outros governos já deveriam ter finalizado esse trabalho e acabado com o processo de demarcações previsto na Constituição. A Carta de 1988 deu cinco anos para resolver. O Estado deveria ter demarcado todas as terras. A esquerda no poder não avançou nesse processo. Ela tem uma dívida profunda com os povos indígenas. Assim eu vejo. As esquerdas não se movimentam com a força necessária. Também não se estancou a destruição da Amazônia. A Terra Yanomami continua sendo invadida.

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Com a atual formação do Congresso, mais à direita, será ainda mais difícil assegurar direitos dos indígenas?

Sim, mas é preciso observar que quem atua diretamente na questão é o Executivo. Independentemente da postura política do Congresso, o Executivo pode ter algumas ações claras e definidas, por meio da Polícia Federal, do Ibama, dessas forças policiais, e botar invasores para fora. Você não vê uma vontade absoluta. Estive com pessoas que estiveram dentro do Território Yanomami e me disseram que é irrisória a força para expulsar os garimpeiros. Ações policiais até ocorrem por terra, mas um monte de aviões com garimpeiros entra na área indígena. O fechamento do espaço aéreo por parte da FAB poderia contribuir. A PF poderia controlar as pistas em Roraima. Outra contribuição poderia vir da Marinha, que cuida dos rios. Não há um destacamento da Marinha para coibir a navegação de barcos de garimpeiros. As Forças Armadas hoje poderiam dar uma contribuição muito grande. Elas estão no poder. O presidente da República é o comandante-em-chefe. Mas me parece que não há uma decisão profunda, forte, inabalável para fazer isso.

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E como fica a relação com o Congresso?

Existe um Congresso onde o governo tem que equilibrar algumas posturas dele ali dentro. Nós sabemos que o agro é uma questão importante para o Brasil, maior fonte de renda hoje. Nós poderíamos ter o agronegócio funcionando, com as terras do agro, as terras indígenas e as reservas ambientais. Temos terras para isso. Temos um País grande. Se não fosse a cobiça exagerada pelo que é mais fácil, não haveria tantos conflitos. É mais fácil invadir terras da União, reservadas aos indígenas, do que realmente comprar espaços novos. Não me parece que o governo se movimenta na direção de uma defesa dos povos indígenas. Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento.

“Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento”

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O País tem perdido a oportunidade de usar a questão ambiental como ativo nos fóruns comerciais?

É o que a acaba de se ver na COP28, em Dubai, agora em dezembro. Aliás, na reunião, o Brasil se postou como um dos elementos principais para coordenar o grande movimento de combate às mudanças climáticas. Entretanto, bastou terminar o encontro, para se realizar uma licitação pública de 600 pontos dentro da Amazônia brasileira para pesquisa e busca de petróleo, sendo que 192 blocos foram vendidos. São duas faces. Uma hora é cara, outra é coroa. Eu não vejo importância política do Brasil mais na área, a floresta está sendo queimada, as terras invadidas. Então, qual é a do governo realmente? Ele não pode continuar jogando assim. Temos de ser levados a sério nas discussões internacionais. Para isso, temos de ter uma postura permanente, regular: ou você é a favor ou é contra. Na questão ambiental não existem parâmetros dúbios. Na questão indígena, o artigo 231 da Constituição é muito claro ao estabelecer o direito à terra. Agora tem uma PEC para permitir que o Congresso faça as demarcações. Tudo o que está se fazendo hoje em dia, na Câmara e no Senado, tem sido contrário aos povos indígenas, e tudo o que tem sido feito pelo governo na área é ínfimo, pequeno. As organizações indígenas estão aí, gritando e pedindo auxilio. É preciso o governo decidir melhor, embora nós saibamos da situação difícil de base. Sabemos também que o Congresso faz as leis, mas temos que respeitar o que já está na Constituição.

O sertanista Sydney Possuelo entre os líderes indígenas Raoni e Davi Kopenawa. A foto foi tirada por Rosita Mascarenhas Watkins, mulher do indigenista. Ela morreu em setembro, juntamente com as filhas Karla e Michelle, de um casamento anterior, num acidente na BR-020, em Goiás. Foto: Álbum de família
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O governo Lula completa um ano. Qual é o balanço que o senhor faz da atuação do governo na área indígena?

Foram homologadas oito terras, encerrados processos que já estavam prontos desde antes da época do nefasto presidente Jair Bolsonaro. Foi isso que o atual governo implementou. Não conseguimos fechar o quadro da situação das terras indígenas. Aliás, muita coisa está na Justiça, e os juízes são brancos, que estão ali a favor dos brancos. Sentam em cima dos processos. O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso.

“O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso”

Hoje há dois órgãos que cuidam da área indígena, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas. Como o senhor analisa a atuação desses dois órgãos?

A meu ver, a Funai desapareceu há muito tempo. Os indígenas procuram não recorrer mais à Funai. O órgão não tem recursos, não tem gente, não tem dinheiro. Tem uma excelente presidente, a Joenia Wapichana, que vem de outras lutas, tem um trabalho e uma história importantes, mas o que ela pode fazer sozinha e sem estrutura? Absolutamente nada. A ação do governo para criação do ministério parece que foi um jogo político. O que esse ministério de fato vem contribuindo? Os indígenas permanecem na mesma situação. O fato de ter surgido um estágio acima da Funai não diminuiu em nada a situação dos indígenas e a questão da terra. A questão foi mais, a meu ver, um jogo político para fora, para mostrar como o País está preocupado com os povos indígenas. O ministério também não tem um quadro suficiente, recursos. Embora sejam egressas do Congresso, lutadoras, Joenia e a ministra e deputada licenciada Sônia Guajajara estão amarradas, os dois órgãos estão com as pernas e os braços amarrados. Eu reforçaria a Funai. Os funcionários da Funai eram referências para os povos indígenas, hoje isso acabou, lamentavelmente.

No governo de Jair Bolsonaro, o senhor devolveu a medalha do mérito indígena que havia recebido em 1991 pelo fato do então presidente ter ganho a mesma distinção. Agora, o senhor vai pedir de volta a medalha?

Alguns funcionários da Funai disseram que querem me devolver. O grande problema de receber a medalha de volta é que eu entreguei a minha, em 2022, porque achei que foi um tapa na cara dos povos indígenas quando puseram uma igual no peito do Bolsonaro e de outras pessoas do governo dele totalmente contrárias aos povos indígenas (o ministro da Justiça, Anderson Torres, foi quem entregou a medalha ao ex-presidente. Torres é investigado hoje no âmbito da tentativa de golpe de 8 de janeiro). Aquilo foi uma afronta grande. E para eu receber de volta tem que tirar a do Bolsonaro. A medalha com Bolsonaro conspurcou a medalha. O governo atual deveria retirar através de um ato. Aí terei o máximo interesse em receber de volta a medalha. Bolsonaro representou tudo que era de mau e retrógrado. Esse homem não pode ter uma medalha do mérito indígena. O importante não é me devolver medalha. Não preciso disso. O que quero dizer simplesmente é que o governo está demorando demais de retirar essa medalha do Bolsonaro. É um ato de justiça apenas aos povos indígenas, para que fique na história o que fizeram com eles em quatro anos de Bolsonaro.

No escritório de Sydney Possuelo, um retrato dele (terceiro da esquerda para a direita), com os irmãos sertanistas Villas Bôas — Orlando Álvaro e Cláudio. Na pintura ao fundo, outro dos irmãos, Leonardo. Foto: Leonencio Nossa

Acompanhei a última grande expedição indigenista que o senhor liderou, em 2002. Na época, o senhor manifestou forte preocupação com o futuro dos povos mesmo de territórios já demarcados, como o Javari. Mais de duas décadas depois, como analisa a situação dessas áreas?

Foi uma expedição de 110 dias ao Vale do Javari. É uma região muito interessante, é o coração da Amazônia. É a segunda maior terra do Brasil, depois da Yanomami, do tamanho de Portugal. Congrega várias etnias indígenas e etnias isoladas. Por sua extensão, esse território que percorremos tem uma importância grande na manutenção do bioma amazônico. Recentemente, teve um plano de limpeza dos marcos da demarcação. As picadas de marcos fecham, o que é um bom motivo para os invasores dizerem que não tem linha alguma de demarcação. Daí, limpá-las é algo importante. Foram 487 quilômetros limpos pelas comunidades indígenas. Orlando, meu filho, estava lá para ajudar. Ele estava naquela nossa expedição também. Eu sempre mostro para ele que nós trabalhamos com direitos humanos, somos defensores dos direitos humanos. Há quem trabalha com brancos que não têm seus direitos reconhecidos, com quilombolas. Nós trabalhamos com os povos indígenas, que são segmentos mais carentes e dependentes da ação do Estado. Existe um deputado aqui ou acolá, mas que se perde numa imensidão anti-indígena dentro do Congresso.

Não é uma causa de um campo partidário.

Isso é tocar na ferida. Nós não temos partido. Trabalhamos com o direito universal de todos os povos de terem suas terras, terem o respeito aos seus costumes. Somos a favor que os direitos humanos sejam sejam reconhecidos também quando se fala nos indígenas, povos que estão aqui há milênios.

O que o senhor falaria hoje aos jovens indigenistas, num tempo de um quadro mais complexo do que aquele em que você atuou?

Venho de um tempo, de uma visão que não existe mais, ligada a Rondon, aos Villas Bôas, de um movimento dos indígenas pela sua terra. A terra é o elemento principal para eles viverem. O que se pode fazer de fundamental é demarcar suas terras. As outras coisas são complementos, como saúde e educação. Primeiro tem que ter um espaço para viver. O lar dele não termina na maloca, vai por dentro da selva, até o próximo rio, para pegar o peixe, segue pela floresta, para pegar o fruto e a caça. O lar indígena é todo um ambiente em que ele vive. É profundamente retrógrada essa postura do Congresso de convalidar ações como o marco temporal. Os trabalhos que foram feitos na demarcação dos yanomamis falam da presença dos indígenas há três mil anos naquela região. Um desses homens brancos vai lá, compra uma terra ou diz que o pai matou uma onça e superou um perigo e se considera dono absoluto da área, mas isso que ele diz foi há 30 anos, 40 anos. Não estou falando disso, meu filho. Estou falando de milênios. Esses povos indígenas estão aqui há milênios. Por uma questão de direito, óbvio, nós temos que acatar, aceitar a existência deles, e reconhecer o direito deles à terra. Isso só engrandeceria os políticos. O presidente Lula, que tem tantas memórias boas, coisas que ele fez de bom, precisa dar uma virada no seu governo a favor da decência nacional em relação aos povos indígenas. Isso seria um ganho enorme para o governo. E se o Congresso respeitasse isso, seria um Congresso respeitado. Se o Judiciário respeitar, seria um Judiciário respeitado.

Coleção de estátuas de Dom Quixote na casa de Sydney Possuelo Foto: Leonencio Nossa

Nos anos 1980, o senhor foi chamado de ‘vice-rei de Roraima’ por políticos contrários à demarcação do Território Yanomami. Disseram que o seu interesse era criar um estado independente indígena. Mesmo com toda pressão, o senhor conseguiu tirar milhares de garimpeiros da área numa grande operação. Como avalia a volta deles agora e o transporte clandestino de ouro para o exterior?

Eu não sei se são aqueles mesmo, né? Muita daquela gente já envelheceu, tem mais de 30 anos isso. Os que tinham 20 estão com 50, os que tinham 30 estão com 60. São senhores. Mas sendo aqueles ou parentes, o dano que eles causaram é muito menor que o estrago que esse grupo de hoje causa. Agora, eles são mais organizados, têm uma frota de helicópteros que facilita a entrada e a saída. Ninguém sabe direito para onde vai o ouro retirado de lá. O Brasil só tem perdido para o garimpo. O ouro sai por caminhos desconhecidos.

Nos últimos anos, as Forças Armadas se voltaram mais contra os indígenas?

No meu tempo na Funai, o Exército foi mais quem teve embates comigo. Numa discussão com generais, no Palácio do Planalto, sobre a demarcação da terra Yanomami, o presidente da República, o Fernando Collor, foi taxativamente a meu favor. Eu nunca vi um discurso tão forte de um presidente pela demarcação. Ele (Collor) disse assim: “Tem um artigo na Constituição que determina a demarcação das terras indígenas. Não é uma questão deste ou de outros governos querer ou não demarcar. É uma imposição constitucional, que tem e deve ser cumprida.” Isso foi fortíssimo. Hoje em dia parece que querem mudar o artigo 231, inserir o marco temporal.

Na demarcação do Javari, o senhor contou com as forças militares?

Não, nunca contei. Eu tive um avião da Força Aérea, dois helicópteros, mas fiz contrato. Cada hora de voo foi paga pela Funai. Não foi um auxílio. Na época a Funai tinha ainda sete aviões, que eu levei todos para Roraima, para tomada de várias pistas. Juntamente com a Polícia Federal, tomamos algumas pistas que estavam ocupadas por garimpeiros. Havia tido um ataque deles à Polícia Federal, um sertanista da Funai morreu. Eu só saía na cidade com segurança. Eram ameaças constantes.

O sertanista Sydney Possuelo com uma peça indígena do Alto Xingu. Foto: Leonencio Nossa

No ano passado, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados no Javari. Atualmente, o senhor tem um filho que trabalha para os indígenas de lá, o Orlando Possuelo. A segurança do pessoal na área é algo que o preocupa?

Até hoje não vi medidas efetivas, mais policiais para proteger o pessoal. Negativo. Recentemente, o Orlando teve aqui a chamado de um órgão do governo. Ele veio com indígenas que estavam ameaçados também para fazer um relato, conversar sobre algum tipo de proteção. O Orlando está lá na carta (um manuscrito de invasores), é um dos ameaçados de morte. Todos estão ameaçados. Não sou um homem desesperado. Há uma ameaça corriqueira do invasor. Se você parar um barco, espere uma reação. Teve também um rapaz da Funai que foi morto em Tabatinga. São muitos os grupos que têm interesse ali, até o político. A Univaja, a entidade dos indígenas, tem conseguido muitas coisas em parcerias. O Vale do Javari conta com um sistema de vigilância permanente, com equipes treinadas com drone e outros equipamentos, barcos rápidos, um sistema de comunicação. Meu filho é empregado dos indígenas, para fazer treinamentos, ensinar a usar o GPS, o drone, atuar em expedições na área.

Como o senhor avalia o novo movimento indígena?

Muitos dessa nova geração de indígenas passou por colégios, por faculdades. Eles estão cada dia mais tomando conta de seu destino, de seu futuro. Às vezes, funcionários da Funai não fazem absolutamente nada, gente oriunda de concurso, que tem nível superior, mas quando chegam para trabalhar em campo logo saem correndo ou ficam numa rede, nada fazem. Esses homens estão efetivamente defendendo a terra e os indígenas? A propósito, faço um apelo para a Funai. Tem que colocar gente que faça as coisas. Não adianta colocar gente com PHd. Os PHd querem escrever livros, tem outras visões. Procurem homens regionais. Eu trabalhei só com regionais, pessoas que levei do Pará para o Amazonas. No Javari, quando implantamos a frente de proteção, queríamos uma equipe que atuasse como uma escola para outros. Ela ensinou os indígenas a manusear rádio, chegar às pessoas, atuar na defesa de sua terra.

Esse legado ficou.

Hoje essa equipe é quase totalmente indígena. Nada é feito lá sem a presença dos indígenas. É na parte politica, em Brasília, que as lideranças indígenas têm mais dificuldades.

Como tem sido enfrentar a perda de dona Rosita Watkins, sua mulher, morta num acidente de trânsito em setembro?

A Rosita mudou radicalmente minha vida. Eu estava me portando como um aposentado. Saía uma vez ou outra para dar uma palestra, mas muito pouco. A Rosita mudou isso. Ela tinha uma ação social em Brasília com crianças junto à Igreja Católica. É uma ação de cinco creches. Ela organizava almoços, jantares, chás, vendas de coisas, angariava recursos. Eu penso que ela está fazendo uma falta muito grande. Ela entrou também dentro do indigenismo. Eu não sabia desses acampamentos, uma terra indígena no Noroeste, aqui em Brasília. Ela me levou lá, começamos a frequentar, a levar alimentos. Eu não conheci uma pessoa mais completa como ser humano, amiga, generosa, companheira e com visão social muito grande, que tinha sentimento. Ela se emocionava em falar das pessoas. Ela saiu numa viagem com duas filhas e um neto e as três morreram estupidamente, para fazer parte da estatística terrível das mortes inconsequentes porque a estrada está ruim, o outro motorista está embriagado, os motores dão pane. As estradas brasileiras são estradas para a morte. Isso nos violenta. É um perigo para todos. É algo que precisa ser bem encaminhado pelos governos. Eu não quero entrar muito na história dela porque me emociono em falar. Foi o grande amor da minha vida.

Há seis décadas, o sertanista Sydney Possuelo vive intensamente o Brasil. O início da trajetória dedicada aos povos indígenas foi no auxílio aos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, no Parque do Xingu. Depois vieram intermináveis conflitos enfrentados pelas comunidades tradicionais com o avanço das obras de infraestrutura da ditadura militar. Fez primeiros contatos com grupos isolados de guajás, no Maranhão, araras e paracanãs, no Pará, e korubos, no Amazonas. Como presidente da Funai, conseguiu demarcar o Território Yanomami, o maior do País, em 1992, e avançar no reconhecimento do Vale do Javari e da Raposa Serra do Sol, nos Estados de Roraima e Amazonas.

A primeira entrevista dele ao Estadão foi ainda em 1973, quando explicou o drama de indígenas atingidos pela abertura de uma rodovia em Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso. Em 2002, o jornal o acompanhou em sua última grande expedição, uma viagem de 105 dias ao Javari, para fiscalizar a presença de pescadores e garimpeiros em áreas de isolados. Sempre manifestou repúdio e preocupação com ações do governo que afetavam a vida na mata. Numa dessas entrevistas, em 2008, criticou o então presidente do órgão indigenista de defender madeireiros. Foi demitido. No momento atual, as críticas e reclamações do sertanista são acompanhadas por uma espécie de apelo aos Três Poderes da República. “O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra”, diz.

O sertanista Sydney Possuelo em sua casa em Brasília. Foto: Leonencio Nossa

Como o senhor avalia a atuação do Congresso na área indígena?

Este momento que vivem os povos indígenas e o meio ambiente é um dos mais difíceis na história, deles, do indigenismo.

Por quê?

Há uma pressão para mudanças radicais nas leis. Essas mudanças não são para a defesa e a demarcação das terras indígenas, pelo contrário. No Congresso, a bancada ruralista e os mineradores querem acabar com a atual legislação. A bancada evangélica, por sua vez, tem se mostrado também, de um modo geral, mais disposta a servir às invasões das terras indígenas e à política da não demarcação. Não atua na defesa dos povos indígenas. O que espanta em tudo isso é que, nessa ação clara do Congresso contra os povos indígenas, você não vê no seio da sociedade brasileira uma manifestação contrária mais profunda. Onde estão as organizações não governamentais? As grandes não se manifestam. Você vê apenas manifestações de associações indígenas. Você não vê alguém de muita influência que se coloca contra isso que ocorre.

Os partidos mais progressistas não estão empenhados?

Quantos anos o PT está no poder? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa, agora, nove anos no poder, e tem ainda o período da Dilma Rousseff. E o que foi feito nessa época a favor do meio ambiente e dos povos indígenas? No nosso tempo de nossa presidência na Funai (julho de 1991 a maio de 1993), nós conseguimos duplicar a superfície de terras indígenas – demarcamos grandes áreas –, outros governos já deveriam ter finalizado esse trabalho e acabado com o processo de demarcações previsto na Constituição. A Carta de 1988 deu cinco anos para resolver. O Estado deveria ter demarcado todas as terras. A esquerda no poder não avançou nesse processo. Ela tem uma dívida profunda com os povos indígenas. Assim eu vejo. As esquerdas não se movimentam com a força necessária. Também não se estancou a destruição da Amazônia. A Terra Yanomami continua sendo invadida.

Com a atual formação do Congresso, mais à direita, será ainda mais difícil assegurar direitos dos indígenas?

Sim, mas é preciso observar que quem atua diretamente na questão é o Executivo. Independentemente da postura política do Congresso, o Executivo pode ter algumas ações claras e definidas, por meio da Polícia Federal, do Ibama, dessas forças policiais, e botar invasores para fora. Você não vê uma vontade absoluta. Estive com pessoas que estiveram dentro do Território Yanomami e me disseram que é irrisória a força para expulsar os garimpeiros. Ações policiais até ocorrem por terra, mas um monte de aviões com garimpeiros entra na área indígena. O fechamento do espaço aéreo por parte da FAB poderia contribuir. A PF poderia controlar as pistas em Roraima. Outra contribuição poderia vir da Marinha, que cuida dos rios. Não há um destacamento da Marinha para coibir a navegação de barcos de garimpeiros. As Forças Armadas hoje poderiam dar uma contribuição muito grande. Elas estão no poder. O presidente da República é o comandante-em-chefe. Mas me parece que não há uma decisão profunda, forte, inabalável para fazer isso.

E como fica a relação com o Congresso?

Existe um Congresso onde o governo tem que equilibrar algumas posturas dele ali dentro. Nós sabemos que o agro é uma questão importante para o Brasil, maior fonte de renda hoje. Nós poderíamos ter o agronegócio funcionando, com as terras do agro, as terras indígenas e as reservas ambientais. Temos terras para isso. Temos um País grande. Se não fosse a cobiça exagerada pelo que é mais fácil, não haveria tantos conflitos. É mais fácil invadir terras da União, reservadas aos indígenas, do que realmente comprar espaços novos. Não me parece que o governo se movimenta na direção de uma defesa dos povos indígenas. Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento.

“Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento”

O País tem perdido a oportunidade de usar a questão ambiental como ativo nos fóruns comerciais?

É o que a acaba de se ver na COP28, em Dubai, agora em dezembro. Aliás, na reunião, o Brasil se postou como um dos elementos principais para coordenar o grande movimento de combate às mudanças climáticas. Entretanto, bastou terminar o encontro, para se realizar uma licitação pública de 600 pontos dentro da Amazônia brasileira para pesquisa e busca de petróleo, sendo que 192 blocos foram vendidos. São duas faces. Uma hora é cara, outra é coroa. Eu não vejo importância política do Brasil mais na área, a floresta está sendo queimada, as terras invadidas. Então, qual é a do governo realmente? Ele não pode continuar jogando assim. Temos de ser levados a sério nas discussões internacionais. Para isso, temos de ter uma postura permanente, regular: ou você é a favor ou é contra. Na questão ambiental não existem parâmetros dúbios. Na questão indígena, o artigo 231 da Constituição é muito claro ao estabelecer o direito à terra. Agora tem uma PEC para permitir que o Congresso faça as demarcações. Tudo o que está se fazendo hoje em dia, na Câmara e no Senado, tem sido contrário aos povos indígenas, e tudo o que tem sido feito pelo governo na área é ínfimo, pequeno. As organizações indígenas estão aí, gritando e pedindo auxilio. É preciso o governo decidir melhor, embora nós saibamos da situação difícil de base. Sabemos também que o Congresso faz as leis, mas temos que respeitar o que já está na Constituição.

O sertanista Sydney Possuelo entre os líderes indígenas Raoni e Davi Kopenawa. A foto foi tirada por Rosita Mascarenhas Watkins, mulher do indigenista. Ela morreu em setembro, juntamente com as filhas Karla e Michelle, de um casamento anterior, num acidente na BR-020, em Goiás. Foto: Álbum de família

O governo Lula completa um ano. Qual é o balanço que o senhor faz da atuação do governo na área indígena?

Foram homologadas oito terras, encerrados processos que já estavam prontos desde antes da época do nefasto presidente Jair Bolsonaro. Foi isso que o atual governo implementou. Não conseguimos fechar o quadro da situação das terras indígenas. Aliás, muita coisa está na Justiça, e os juízes são brancos, que estão ali a favor dos brancos. Sentam em cima dos processos. O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso.

“O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso”

Hoje há dois órgãos que cuidam da área indígena, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas. Como o senhor analisa a atuação desses dois órgãos?

A meu ver, a Funai desapareceu há muito tempo. Os indígenas procuram não recorrer mais à Funai. O órgão não tem recursos, não tem gente, não tem dinheiro. Tem uma excelente presidente, a Joenia Wapichana, que vem de outras lutas, tem um trabalho e uma história importantes, mas o que ela pode fazer sozinha e sem estrutura? Absolutamente nada. A ação do governo para criação do ministério parece que foi um jogo político. O que esse ministério de fato vem contribuindo? Os indígenas permanecem na mesma situação. O fato de ter surgido um estágio acima da Funai não diminuiu em nada a situação dos indígenas e a questão da terra. A questão foi mais, a meu ver, um jogo político para fora, para mostrar como o País está preocupado com os povos indígenas. O ministério também não tem um quadro suficiente, recursos. Embora sejam egressas do Congresso, lutadoras, Joenia e a ministra e deputada licenciada Sônia Guajajara estão amarradas, os dois órgãos estão com as pernas e os braços amarrados. Eu reforçaria a Funai. Os funcionários da Funai eram referências para os povos indígenas, hoje isso acabou, lamentavelmente.

No governo de Jair Bolsonaro, o senhor devolveu a medalha do mérito indígena que havia recebido em 1991 pelo fato do então presidente ter ganho a mesma distinção. Agora, o senhor vai pedir de volta a medalha?

Alguns funcionários da Funai disseram que querem me devolver. O grande problema de receber a medalha de volta é que eu entreguei a minha, em 2022, porque achei que foi um tapa na cara dos povos indígenas quando puseram uma igual no peito do Bolsonaro e de outras pessoas do governo dele totalmente contrárias aos povos indígenas (o ministro da Justiça, Anderson Torres, foi quem entregou a medalha ao ex-presidente. Torres é investigado hoje no âmbito da tentativa de golpe de 8 de janeiro). Aquilo foi uma afronta grande. E para eu receber de volta tem que tirar a do Bolsonaro. A medalha com Bolsonaro conspurcou a medalha. O governo atual deveria retirar através de um ato. Aí terei o máximo interesse em receber de volta a medalha. Bolsonaro representou tudo que era de mau e retrógrado. Esse homem não pode ter uma medalha do mérito indígena. O importante não é me devolver medalha. Não preciso disso. O que quero dizer simplesmente é que o governo está demorando demais de retirar essa medalha do Bolsonaro. É um ato de justiça apenas aos povos indígenas, para que fique na história o que fizeram com eles em quatro anos de Bolsonaro.

No escritório de Sydney Possuelo, um retrato dele (terceiro da esquerda para a direita), com os irmãos sertanistas Villas Bôas — Orlando Álvaro e Cláudio. Na pintura ao fundo, outro dos irmãos, Leonardo. Foto: Leonencio Nossa

Acompanhei a última grande expedição indigenista que o senhor liderou, em 2002. Na época, o senhor manifestou forte preocupação com o futuro dos povos mesmo de territórios já demarcados, como o Javari. Mais de duas décadas depois, como analisa a situação dessas áreas?

Foi uma expedição de 110 dias ao Vale do Javari. É uma região muito interessante, é o coração da Amazônia. É a segunda maior terra do Brasil, depois da Yanomami, do tamanho de Portugal. Congrega várias etnias indígenas e etnias isoladas. Por sua extensão, esse território que percorremos tem uma importância grande na manutenção do bioma amazônico. Recentemente, teve um plano de limpeza dos marcos da demarcação. As picadas de marcos fecham, o que é um bom motivo para os invasores dizerem que não tem linha alguma de demarcação. Daí, limpá-las é algo importante. Foram 487 quilômetros limpos pelas comunidades indígenas. Orlando, meu filho, estava lá para ajudar. Ele estava naquela nossa expedição também. Eu sempre mostro para ele que nós trabalhamos com direitos humanos, somos defensores dos direitos humanos. Há quem trabalha com brancos que não têm seus direitos reconhecidos, com quilombolas. Nós trabalhamos com os povos indígenas, que são segmentos mais carentes e dependentes da ação do Estado. Existe um deputado aqui ou acolá, mas que se perde numa imensidão anti-indígena dentro do Congresso.

Não é uma causa de um campo partidário.

Isso é tocar na ferida. Nós não temos partido. Trabalhamos com o direito universal de todos os povos de terem suas terras, terem o respeito aos seus costumes. Somos a favor que os direitos humanos sejam sejam reconhecidos também quando se fala nos indígenas, povos que estão aqui há milênios.

O que o senhor falaria hoje aos jovens indigenistas, num tempo de um quadro mais complexo do que aquele em que você atuou?

Venho de um tempo, de uma visão que não existe mais, ligada a Rondon, aos Villas Bôas, de um movimento dos indígenas pela sua terra. A terra é o elemento principal para eles viverem. O que se pode fazer de fundamental é demarcar suas terras. As outras coisas são complementos, como saúde e educação. Primeiro tem que ter um espaço para viver. O lar dele não termina na maloca, vai por dentro da selva, até o próximo rio, para pegar o peixe, segue pela floresta, para pegar o fruto e a caça. O lar indígena é todo um ambiente em que ele vive. É profundamente retrógrada essa postura do Congresso de convalidar ações como o marco temporal. Os trabalhos que foram feitos na demarcação dos yanomamis falam da presença dos indígenas há três mil anos naquela região. Um desses homens brancos vai lá, compra uma terra ou diz que o pai matou uma onça e superou um perigo e se considera dono absoluto da área, mas isso que ele diz foi há 30 anos, 40 anos. Não estou falando disso, meu filho. Estou falando de milênios. Esses povos indígenas estão aqui há milênios. Por uma questão de direito, óbvio, nós temos que acatar, aceitar a existência deles, e reconhecer o direito deles à terra. Isso só engrandeceria os políticos. O presidente Lula, que tem tantas memórias boas, coisas que ele fez de bom, precisa dar uma virada no seu governo a favor da decência nacional em relação aos povos indígenas. Isso seria um ganho enorme para o governo. E se o Congresso respeitasse isso, seria um Congresso respeitado. Se o Judiciário respeitar, seria um Judiciário respeitado.

Coleção de estátuas de Dom Quixote na casa de Sydney Possuelo Foto: Leonencio Nossa

Nos anos 1980, o senhor foi chamado de ‘vice-rei de Roraima’ por políticos contrários à demarcação do Território Yanomami. Disseram que o seu interesse era criar um estado independente indígena. Mesmo com toda pressão, o senhor conseguiu tirar milhares de garimpeiros da área numa grande operação. Como avalia a volta deles agora e o transporte clandestino de ouro para o exterior?

Eu não sei se são aqueles mesmo, né? Muita daquela gente já envelheceu, tem mais de 30 anos isso. Os que tinham 20 estão com 50, os que tinham 30 estão com 60. São senhores. Mas sendo aqueles ou parentes, o dano que eles causaram é muito menor que o estrago que esse grupo de hoje causa. Agora, eles são mais organizados, têm uma frota de helicópteros que facilita a entrada e a saída. Ninguém sabe direito para onde vai o ouro retirado de lá. O Brasil só tem perdido para o garimpo. O ouro sai por caminhos desconhecidos.

Nos últimos anos, as Forças Armadas se voltaram mais contra os indígenas?

No meu tempo na Funai, o Exército foi mais quem teve embates comigo. Numa discussão com generais, no Palácio do Planalto, sobre a demarcação da terra Yanomami, o presidente da República, o Fernando Collor, foi taxativamente a meu favor. Eu nunca vi um discurso tão forte de um presidente pela demarcação. Ele (Collor) disse assim: “Tem um artigo na Constituição que determina a demarcação das terras indígenas. Não é uma questão deste ou de outros governos querer ou não demarcar. É uma imposição constitucional, que tem e deve ser cumprida.” Isso foi fortíssimo. Hoje em dia parece que querem mudar o artigo 231, inserir o marco temporal.

Na demarcação do Javari, o senhor contou com as forças militares?

Não, nunca contei. Eu tive um avião da Força Aérea, dois helicópteros, mas fiz contrato. Cada hora de voo foi paga pela Funai. Não foi um auxílio. Na época a Funai tinha ainda sete aviões, que eu levei todos para Roraima, para tomada de várias pistas. Juntamente com a Polícia Federal, tomamos algumas pistas que estavam ocupadas por garimpeiros. Havia tido um ataque deles à Polícia Federal, um sertanista da Funai morreu. Eu só saía na cidade com segurança. Eram ameaças constantes.

O sertanista Sydney Possuelo com uma peça indígena do Alto Xingu. Foto: Leonencio Nossa

No ano passado, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados no Javari. Atualmente, o senhor tem um filho que trabalha para os indígenas de lá, o Orlando Possuelo. A segurança do pessoal na área é algo que o preocupa?

Até hoje não vi medidas efetivas, mais policiais para proteger o pessoal. Negativo. Recentemente, o Orlando teve aqui a chamado de um órgão do governo. Ele veio com indígenas que estavam ameaçados também para fazer um relato, conversar sobre algum tipo de proteção. O Orlando está lá na carta (um manuscrito de invasores), é um dos ameaçados de morte. Todos estão ameaçados. Não sou um homem desesperado. Há uma ameaça corriqueira do invasor. Se você parar um barco, espere uma reação. Teve também um rapaz da Funai que foi morto em Tabatinga. São muitos os grupos que têm interesse ali, até o político. A Univaja, a entidade dos indígenas, tem conseguido muitas coisas em parcerias. O Vale do Javari conta com um sistema de vigilância permanente, com equipes treinadas com drone e outros equipamentos, barcos rápidos, um sistema de comunicação. Meu filho é empregado dos indígenas, para fazer treinamentos, ensinar a usar o GPS, o drone, atuar em expedições na área.

Como o senhor avalia o novo movimento indígena?

Muitos dessa nova geração de indígenas passou por colégios, por faculdades. Eles estão cada dia mais tomando conta de seu destino, de seu futuro. Às vezes, funcionários da Funai não fazem absolutamente nada, gente oriunda de concurso, que tem nível superior, mas quando chegam para trabalhar em campo logo saem correndo ou ficam numa rede, nada fazem. Esses homens estão efetivamente defendendo a terra e os indígenas? A propósito, faço um apelo para a Funai. Tem que colocar gente que faça as coisas. Não adianta colocar gente com PHd. Os PHd querem escrever livros, tem outras visões. Procurem homens regionais. Eu trabalhei só com regionais, pessoas que levei do Pará para o Amazonas. No Javari, quando implantamos a frente de proteção, queríamos uma equipe que atuasse como uma escola para outros. Ela ensinou os indígenas a manusear rádio, chegar às pessoas, atuar na defesa de sua terra.

Esse legado ficou.

Hoje essa equipe é quase totalmente indígena. Nada é feito lá sem a presença dos indígenas. É na parte politica, em Brasília, que as lideranças indígenas têm mais dificuldades.

Como tem sido enfrentar a perda de dona Rosita Watkins, sua mulher, morta num acidente de trânsito em setembro?

A Rosita mudou radicalmente minha vida. Eu estava me portando como um aposentado. Saía uma vez ou outra para dar uma palestra, mas muito pouco. A Rosita mudou isso. Ela tinha uma ação social em Brasília com crianças junto à Igreja Católica. É uma ação de cinco creches. Ela organizava almoços, jantares, chás, vendas de coisas, angariava recursos. Eu penso que ela está fazendo uma falta muito grande. Ela entrou também dentro do indigenismo. Eu não sabia desses acampamentos, uma terra indígena no Noroeste, aqui em Brasília. Ela me levou lá, começamos a frequentar, a levar alimentos. Eu não conheci uma pessoa mais completa como ser humano, amiga, generosa, companheira e com visão social muito grande, que tinha sentimento. Ela se emocionava em falar das pessoas. Ela saiu numa viagem com duas filhas e um neto e as três morreram estupidamente, para fazer parte da estatística terrível das mortes inconsequentes porque a estrada está ruim, o outro motorista está embriagado, os motores dão pane. As estradas brasileiras são estradas para a morte. Isso nos violenta. É um perigo para todos. É algo que precisa ser bem encaminhado pelos governos. Eu não quero entrar muito na história dela porque me emociono em falar. Foi o grande amor da minha vida.

Há seis décadas, o sertanista Sydney Possuelo vive intensamente o Brasil. O início da trajetória dedicada aos povos indígenas foi no auxílio aos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, no Parque do Xingu. Depois vieram intermináveis conflitos enfrentados pelas comunidades tradicionais com o avanço das obras de infraestrutura da ditadura militar. Fez primeiros contatos com grupos isolados de guajás, no Maranhão, araras e paracanãs, no Pará, e korubos, no Amazonas. Como presidente da Funai, conseguiu demarcar o Território Yanomami, o maior do País, em 1992, e avançar no reconhecimento do Vale do Javari e da Raposa Serra do Sol, nos Estados de Roraima e Amazonas.

A primeira entrevista dele ao Estadão foi ainda em 1973, quando explicou o drama de indígenas atingidos pela abertura de uma rodovia em Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso. Em 2002, o jornal o acompanhou em sua última grande expedição, uma viagem de 105 dias ao Javari, para fiscalizar a presença de pescadores e garimpeiros em áreas de isolados. Sempre manifestou repúdio e preocupação com ações do governo que afetavam a vida na mata. Numa dessas entrevistas, em 2008, criticou o então presidente do órgão indigenista de defender madeireiros. Foi demitido. No momento atual, as críticas e reclamações do sertanista são acompanhadas por uma espécie de apelo aos Três Poderes da República. “O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra”, diz.

O sertanista Sydney Possuelo em sua casa em Brasília. Foto: Leonencio Nossa

Como o senhor avalia a atuação do Congresso na área indígena?

Este momento que vivem os povos indígenas e o meio ambiente é um dos mais difíceis na história, deles, do indigenismo.

Por quê?

Há uma pressão para mudanças radicais nas leis. Essas mudanças não são para a defesa e a demarcação das terras indígenas, pelo contrário. No Congresso, a bancada ruralista e os mineradores querem acabar com a atual legislação. A bancada evangélica, por sua vez, tem se mostrado também, de um modo geral, mais disposta a servir às invasões das terras indígenas e à política da não demarcação. Não atua na defesa dos povos indígenas. O que espanta em tudo isso é que, nessa ação clara do Congresso contra os povos indígenas, você não vê no seio da sociedade brasileira uma manifestação contrária mais profunda. Onde estão as organizações não governamentais? As grandes não se manifestam. Você vê apenas manifestações de associações indígenas. Você não vê alguém de muita influência que se coloca contra isso que ocorre.

Os partidos mais progressistas não estão empenhados?

Quantos anos o PT está no poder? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa, agora, nove anos no poder, e tem ainda o período da Dilma Rousseff. E o que foi feito nessa época a favor do meio ambiente e dos povos indígenas? No nosso tempo de nossa presidência na Funai (julho de 1991 a maio de 1993), nós conseguimos duplicar a superfície de terras indígenas – demarcamos grandes áreas –, outros governos já deveriam ter finalizado esse trabalho e acabado com o processo de demarcações previsto na Constituição. A Carta de 1988 deu cinco anos para resolver. O Estado deveria ter demarcado todas as terras. A esquerda no poder não avançou nesse processo. Ela tem uma dívida profunda com os povos indígenas. Assim eu vejo. As esquerdas não se movimentam com a força necessária. Também não se estancou a destruição da Amazônia. A Terra Yanomami continua sendo invadida.

Com a atual formação do Congresso, mais à direita, será ainda mais difícil assegurar direitos dos indígenas?

Sim, mas é preciso observar que quem atua diretamente na questão é o Executivo. Independentemente da postura política do Congresso, o Executivo pode ter algumas ações claras e definidas, por meio da Polícia Federal, do Ibama, dessas forças policiais, e botar invasores para fora. Você não vê uma vontade absoluta. Estive com pessoas que estiveram dentro do Território Yanomami e me disseram que é irrisória a força para expulsar os garimpeiros. Ações policiais até ocorrem por terra, mas um monte de aviões com garimpeiros entra na área indígena. O fechamento do espaço aéreo por parte da FAB poderia contribuir. A PF poderia controlar as pistas em Roraima. Outra contribuição poderia vir da Marinha, que cuida dos rios. Não há um destacamento da Marinha para coibir a navegação de barcos de garimpeiros. As Forças Armadas hoje poderiam dar uma contribuição muito grande. Elas estão no poder. O presidente da República é o comandante-em-chefe. Mas me parece que não há uma decisão profunda, forte, inabalável para fazer isso.

E como fica a relação com o Congresso?

Existe um Congresso onde o governo tem que equilibrar algumas posturas dele ali dentro. Nós sabemos que o agro é uma questão importante para o Brasil, maior fonte de renda hoje. Nós poderíamos ter o agronegócio funcionando, com as terras do agro, as terras indígenas e as reservas ambientais. Temos terras para isso. Temos um País grande. Se não fosse a cobiça exagerada pelo que é mais fácil, não haveria tantos conflitos. É mais fácil invadir terras da União, reservadas aos indígenas, do que realmente comprar espaços novos. Não me parece que o governo se movimenta na direção de uma defesa dos povos indígenas. Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento.

“Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento”

O País tem perdido a oportunidade de usar a questão ambiental como ativo nos fóruns comerciais?

É o que a acaba de se ver na COP28, em Dubai, agora em dezembro. Aliás, na reunião, o Brasil se postou como um dos elementos principais para coordenar o grande movimento de combate às mudanças climáticas. Entretanto, bastou terminar o encontro, para se realizar uma licitação pública de 600 pontos dentro da Amazônia brasileira para pesquisa e busca de petróleo, sendo que 192 blocos foram vendidos. São duas faces. Uma hora é cara, outra é coroa. Eu não vejo importância política do Brasil mais na área, a floresta está sendo queimada, as terras invadidas. Então, qual é a do governo realmente? Ele não pode continuar jogando assim. Temos de ser levados a sério nas discussões internacionais. Para isso, temos de ter uma postura permanente, regular: ou você é a favor ou é contra. Na questão ambiental não existem parâmetros dúbios. Na questão indígena, o artigo 231 da Constituição é muito claro ao estabelecer o direito à terra. Agora tem uma PEC para permitir que o Congresso faça as demarcações. Tudo o que está se fazendo hoje em dia, na Câmara e no Senado, tem sido contrário aos povos indígenas, e tudo o que tem sido feito pelo governo na área é ínfimo, pequeno. As organizações indígenas estão aí, gritando e pedindo auxilio. É preciso o governo decidir melhor, embora nós saibamos da situação difícil de base. Sabemos também que o Congresso faz as leis, mas temos que respeitar o que já está na Constituição.

O sertanista Sydney Possuelo entre os líderes indígenas Raoni e Davi Kopenawa. A foto foi tirada por Rosita Mascarenhas Watkins, mulher do indigenista. Ela morreu em setembro, juntamente com as filhas Karla e Michelle, de um casamento anterior, num acidente na BR-020, em Goiás. Foto: Álbum de família

O governo Lula completa um ano. Qual é o balanço que o senhor faz da atuação do governo na área indígena?

Foram homologadas oito terras, encerrados processos que já estavam prontos desde antes da época do nefasto presidente Jair Bolsonaro. Foi isso que o atual governo implementou. Não conseguimos fechar o quadro da situação das terras indígenas. Aliás, muita coisa está na Justiça, e os juízes são brancos, que estão ali a favor dos brancos. Sentam em cima dos processos. O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso.

“O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso”

Hoje há dois órgãos que cuidam da área indígena, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas. Como o senhor analisa a atuação desses dois órgãos?

A meu ver, a Funai desapareceu há muito tempo. Os indígenas procuram não recorrer mais à Funai. O órgão não tem recursos, não tem gente, não tem dinheiro. Tem uma excelente presidente, a Joenia Wapichana, que vem de outras lutas, tem um trabalho e uma história importantes, mas o que ela pode fazer sozinha e sem estrutura? Absolutamente nada. A ação do governo para criação do ministério parece que foi um jogo político. O que esse ministério de fato vem contribuindo? Os indígenas permanecem na mesma situação. O fato de ter surgido um estágio acima da Funai não diminuiu em nada a situação dos indígenas e a questão da terra. A questão foi mais, a meu ver, um jogo político para fora, para mostrar como o País está preocupado com os povos indígenas. O ministério também não tem um quadro suficiente, recursos. Embora sejam egressas do Congresso, lutadoras, Joenia e a ministra e deputada licenciada Sônia Guajajara estão amarradas, os dois órgãos estão com as pernas e os braços amarrados. Eu reforçaria a Funai. Os funcionários da Funai eram referências para os povos indígenas, hoje isso acabou, lamentavelmente.

No governo de Jair Bolsonaro, o senhor devolveu a medalha do mérito indígena que havia recebido em 1991 pelo fato do então presidente ter ganho a mesma distinção. Agora, o senhor vai pedir de volta a medalha?

Alguns funcionários da Funai disseram que querem me devolver. O grande problema de receber a medalha de volta é que eu entreguei a minha, em 2022, porque achei que foi um tapa na cara dos povos indígenas quando puseram uma igual no peito do Bolsonaro e de outras pessoas do governo dele totalmente contrárias aos povos indígenas (o ministro da Justiça, Anderson Torres, foi quem entregou a medalha ao ex-presidente. Torres é investigado hoje no âmbito da tentativa de golpe de 8 de janeiro). Aquilo foi uma afronta grande. E para eu receber de volta tem que tirar a do Bolsonaro. A medalha com Bolsonaro conspurcou a medalha. O governo atual deveria retirar através de um ato. Aí terei o máximo interesse em receber de volta a medalha. Bolsonaro representou tudo que era de mau e retrógrado. Esse homem não pode ter uma medalha do mérito indígena. O importante não é me devolver medalha. Não preciso disso. O que quero dizer simplesmente é que o governo está demorando demais de retirar essa medalha do Bolsonaro. É um ato de justiça apenas aos povos indígenas, para que fique na história o que fizeram com eles em quatro anos de Bolsonaro.

No escritório de Sydney Possuelo, um retrato dele (terceiro da esquerda para a direita), com os irmãos sertanistas Villas Bôas — Orlando Álvaro e Cláudio. Na pintura ao fundo, outro dos irmãos, Leonardo. Foto: Leonencio Nossa

Acompanhei a última grande expedição indigenista que o senhor liderou, em 2002. Na época, o senhor manifestou forte preocupação com o futuro dos povos mesmo de territórios já demarcados, como o Javari. Mais de duas décadas depois, como analisa a situação dessas áreas?

Foi uma expedição de 110 dias ao Vale do Javari. É uma região muito interessante, é o coração da Amazônia. É a segunda maior terra do Brasil, depois da Yanomami, do tamanho de Portugal. Congrega várias etnias indígenas e etnias isoladas. Por sua extensão, esse território que percorremos tem uma importância grande na manutenção do bioma amazônico. Recentemente, teve um plano de limpeza dos marcos da demarcação. As picadas de marcos fecham, o que é um bom motivo para os invasores dizerem que não tem linha alguma de demarcação. Daí, limpá-las é algo importante. Foram 487 quilômetros limpos pelas comunidades indígenas. Orlando, meu filho, estava lá para ajudar. Ele estava naquela nossa expedição também. Eu sempre mostro para ele que nós trabalhamos com direitos humanos, somos defensores dos direitos humanos. Há quem trabalha com brancos que não têm seus direitos reconhecidos, com quilombolas. Nós trabalhamos com os povos indígenas, que são segmentos mais carentes e dependentes da ação do Estado. Existe um deputado aqui ou acolá, mas que se perde numa imensidão anti-indígena dentro do Congresso.

Não é uma causa de um campo partidário.

Isso é tocar na ferida. Nós não temos partido. Trabalhamos com o direito universal de todos os povos de terem suas terras, terem o respeito aos seus costumes. Somos a favor que os direitos humanos sejam sejam reconhecidos também quando se fala nos indígenas, povos que estão aqui há milênios.

O que o senhor falaria hoje aos jovens indigenistas, num tempo de um quadro mais complexo do que aquele em que você atuou?

Venho de um tempo, de uma visão que não existe mais, ligada a Rondon, aos Villas Bôas, de um movimento dos indígenas pela sua terra. A terra é o elemento principal para eles viverem. O que se pode fazer de fundamental é demarcar suas terras. As outras coisas são complementos, como saúde e educação. Primeiro tem que ter um espaço para viver. O lar dele não termina na maloca, vai por dentro da selva, até o próximo rio, para pegar o peixe, segue pela floresta, para pegar o fruto e a caça. O lar indígena é todo um ambiente em que ele vive. É profundamente retrógrada essa postura do Congresso de convalidar ações como o marco temporal. Os trabalhos que foram feitos na demarcação dos yanomamis falam da presença dos indígenas há três mil anos naquela região. Um desses homens brancos vai lá, compra uma terra ou diz que o pai matou uma onça e superou um perigo e se considera dono absoluto da área, mas isso que ele diz foi há 30 anos, 40 anos. Não estou falando disso, meu filho. Estou falando de milênios. Esses povos indígenas estão aqui há milênios. Por uma questão de direito, óbvio, nós temos que acatar, aceitar a existência deles, e reconhecer o direito deles à terra. Isso só engrandeceria os políticos. O presidente Lula, que tem tantas memórias boas, coisas que ele fez de bom, precisa dar uma virada no seu governo a favor da decência nacional em relação aos povos indígenas. Isso seria um ganho enorme para o governo. E se o Congresso respeitasse isso, seria um Congresso respeitado. Se o Judiciário respeitar, seria um Judiciário respeitado.

Coleção de estátuas de Dom Quixote na casa de Sydney Possuelo Foto: Leonencio Nossa

Nos anos 1980, o senhor foi chamado de ‘vice-rei de Roraima’ por políticos contrários à demarcação do Território Yanomami. Disseram que o seu interesse era criar um estado independente indígena. Mesmo com toda pressão, o senhor conseguiu tirar milhares de garimpeiros da área numa grande operação. Como avalia a volta deles agora e o transporte clandestino de ouro para o exterior?

Eu não sei se são aqueles mesmo, né? Muita daquela gente já envelheceu, tem mais de 30 anos isso. Os que tinham 20 estão com 50, os que tinham 30 estão com 60. São senhores. Mas sendo aqueles ou parentes, o dano que eles causaram é muito menor que o estrago que esse grupo de hoje causa. Agora, eles são mais organizados, têm uma frota de helicópteros que facilita a entrada e a saída. Ninguém sabe direito para onde vai o ouro retirado de lá. O Brasil só tem perdido para o garimpo. O ouro sai por caminhos desconhecidos.

Nos últimos anos, as Forças Armadas se voltaram mais contra os indígenas?

No meu tempo na Funai, o Exército foi mais quem teve embates comigo. Numa discussão com generais, no Palácio do Planalto, sobre a demarcação da terra Yanomami, o presidente da República, o Fernando Collor, foi taxativamente a meu favor. Eu nunca vi um discurso tão forte de um presidente pela demarcação. Ele (Collor) disse assim: “Tem um artigo na Constituição que determina a demarcação das terras indígenas. Não é uma questão deste ou de outros governos querer ou não demarcar. É uma imposição constitucional, que tem e deve ser cumprida.” Isso foi fortíssimo. Hoje em dia parece que querem mudar o artigo 231, inserir o marco temporal.

Na demarcação do Javari, o senhor contou com as forças militares?

Não, nunca contei. Eu tive um avião da Força Aérea, dois helicópteros, mas fiz contrato. Cada hora de voo foi paga pela Funai. Não foi um auxílio. Na época a Funai tinha ainda sete aviões, que eu levei todos para Roraima, para tomada de várias pistas. Juntamente com a Polícia Federal, tomamos algumas pistas que estavam ocupadas por garimpeiros. Havia tido um ataque deles à Polícia Federal, um sertanista da Funai morreu. Eu só saía na cidade com segurança. Eram ameaças constantes.

O sertanista Sydney Possuelo com uma peça indígena do Alto Xingu. Foto: Leonencio Nossa

No ano passado, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados no Javari. Atualmente, o senhor tem um filho que trabalha para os indígenas de lá, o Orlando Possuelo. A segurança do pessoal na área é algo que o preocupa?

Até hoje não vi medidas efetivas, mais policiais para proteger o pessoal. Negativo. Recentemente, o Orlando teve aqui a chamado de um órgão do governo. Ele veio com indígenas que estavam ameaçados também para fazer um relato, conversar sobre algum tipo de proteção. O Orlando está lá na carta (um manuscrito de invasores), é um dos ameaçados de morte. Todos estão ameaçados. Não sou um homem desesperado. Há uma ameaça corriqueira do invasor. Se você parar um barco, espere uma reação. Teve também um rapaz da Funai que foi morto em Tabatinga. São muitos os grupos que têm interesse ali, até o político. A Univaja, a entidade dos indígenas, tem conseguido muitas coisas em parcerias. O Vale do Javari conta com um sistema de vigilância permanente, com equipes treinadas com drone e outros equipamentos, barcos rápidos, um sistema de comunicação. Meu filho é empregado dos indígenas, para fazer treinamentos, ensinar a usar o GPS, o drone, atuar em expedições na área.

Como o senhor avalia o novo movimento indígena?

Muitos dessa nova geração de indígenas passou por colégios, por faculdades. Eles estão cada dia mais tomando conta de seu destino, de seu futuro. Às vezes, funcionários da Funai não fazem absolutamente nada, gente oriunda de concurso, que tem nível superior, mas quando chegam para trabalhar em campo logo saem correndo ou ficam numa rede, nada fazem. Esses homens estão efetivamente defendendo a terra e os indígenas? A propósito, faço um apelo para a Funai. Tem que colocar gente que faça as coisas. Não adianta colocar gente com PHd. Os PHd querem escrever livros, tem outras visões. Procurem homens regionais. Eu trabalhei só com regionais, pessoas que levei do Pará para o Amazonas. No Javari, quando implantamos a frente de proteção, queríamos uma equipe que atuasse como uma escola para outros. Ela ensinou os indígenas a manusear rádio, chegar às pessoas, atuar na defesa de sua terra.

Esse legado ficou.

Hoje essa equipe é quase totalmente indígena. Nada é feito lá sem a presença dos indígenas. É na parte politica, em Brasília, que as lideranças indígenas têm mais dificuldades.

Como tem sido enfrentar a perda de dona Rosita Watkins, sua mulher, morta num acidente de trânsito em setembro?

A Rosita mudou radicalmente minha vida. Eu estava me portando como um aposentado. Saía uma vez ou outra para dar uma palestra, mas muito pouco. A Rosita mudou isso. Ela tinha uma ação social em Brasília com crianças junto à Igreja Católica. É uma ação de cinco creches. Ela organizava almoços, jantares, chás, vendas de coisas, angariava recursos. Eu penso que ela está fazendo uma falta muito grande. Ela entrou também dentro do indigenismo. Eu não sabia desses acampamentos, uma terra indígena no Noroeste, aqui em Brasília. Ela me levou lá, começamos a frequentar, a levar alimentos. Eu não conheci uma pessoa mais completa como ser humano, amiga, generosa, companheira e com visão social muito grande, que tinha sentimento. Ela se emocionava em falar das pessoas. Ela saiu numa viagem com duas filhas e um neto e as três morreram estupidamente, para fazer parte da estatística terrível das mortes inconsequentes porque a estrada está ruim, o outro motorista está embriagado, os motores dão pane. As estradas brasileiras são estradas para a morte. Isso nos violenta. É um perigo para todos. É algo que precisa ser bem encaminhado pelos governos. Eu não quero entrar muito na história dela porque me emociono em falar. Foi o grande amor da minha vida.

Há seis décadas, o sertanista Sydney Possuelo vive intensamente o Brasil. O início da trajetória dedicada aos povos indígenas foi no auxílio aos irmãos Orlando e Cláudio Villas Bôas, no Parque do Xingu. Depois vieram intermináveis conflitos enfrentados pelas comunidades tradicionais com o avanço das obras de infraestrutura da ditadura militar. Fez primeiros contatos com grupos isolados de guajás, no Maranhão, araras e paracanãs, no Pará, e korubos, no Amazonas. Como presidente da Funai, conseguiu demarcar o Território Yanomami, o maior do País, em 1992, e avançar no reconhecimento do Vale do Javari e da Raposa Serra do Sol, nos Estados de Roraima e Amazonas.

A primeira entrevista dele ao Estadão foi ainda em 1973, quando explicou o drama de indígenas atingidos pela abertura de uma rodovia em Peixoto de Azevedo, em Mato Grosso. Em 2002, o jornal o acompanhou em sua última grande expedição, uma viagem de 105 dias ao Javari, para fiscalizar a presença de pescadores e garimpeiros em áreas de isolados. Sempre manifestou repúdio e preocupação com ações do governo que afetavam a vida na mata. Numa dessas entrevistas, em 2008, criticou o então presidente do órgão indigenista de defender madeireiros. Foi demitido. No momento atual, as críticas e reclamações do sertanista são acompanhadas por uma espécie de apelo aos Três Poderes da República. “O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra”, diz.

O sertanista Sydney Possuelo em sua casa em Brasília. Foto: Leonencio Nossa

Como o senhor avalia a atuação do Congresso na área indígena?

Este momento que vivem os povos indígenas e o meio ambiente é um dos mais difíceis na história, deles, do indigenismo.

Por quê?

Há uma pressão para mudanças radicais nas leis. Essas mudanças não são para a defesa e a demarcação das terras indígenas, pelo contrário. No Congresso, a bancada ruralista e os mineradores querem acabar com a atual legislação. A bancada evangélica, por sua vez, tem se mostrado também, de um modo geral, mais disposta a servir às invasões das terras indígenas e à política da não demarcação. Não atua na defesa dos povos indígenas. O que espanta em tudo isso é que, nessa ação clara do Congresso contra os povos indígenas, você não vê no seio da sociedade brasileira uma manifestação contrária mais profunda. Onde estão as organizações não governamentais? As grandes não se manifestam. Você vê apenas manifestações de associações indígenas. Você não vê alguém de muita influência que se coloca contra isso que ocorre.

Os partidos mais progressistas não estão empenhados?

Quantos anos o PT está no poder? O presidente Luiz Inácio Lula da Silva completa, agora, nove anos no poder, e tem ainda o período da Dilma Rousseff. E o que foi feito nessa época a favor do meio ambiente e dos povos indígenas? No nosso tempo de nossa presidência na Funai (julho de 1991 a maio de 1993), nós conseguimos duplicar a superfície de terras indígenas – demarcamos grandes áreas –, outros governos já deveriam ter finalizado esse trabalho e acabado com o processo de demarcações previsto na Constituição. A Carta de 1988 deu cinco anos para resolver. O Estado deveria ter demarcado todas as terras. A esquerda no poder não avançou nesse processo. Ela tem uma dívida profunda com os povos indígenas. Assim eu vejo. As esquerdas não se movimentam com a força necessária. Também não se estancou a destruição da Amazônia. A Terra Yanomami continua sendo invadida.

Com a atual formação do Congresso, mais à direita, será ainda mais difícil assegurar direitos dos indígenas?

Sim, mas é preciso observar que quem atua diretamente na questão é o Executivo. Independentemente da postura política do Congresso, o Executivo pode ter algumas ações claras e definidas, por meio da Polícia Federal, do Ibama, dessas forças policiais, e botar invasores para fora. Você não vê uma vontade absoluta. Estive com pessoas que estiveram dentro do Território Yanomami e me disseram que é irrisória a força para expulsar os garimpeiros. Ações policiais até ocorrem por terra, mas um monte de aviões com garimpeiros entra na área indígena. O fechamento do espaço aéreo por parte da FAB poderia contribuir. A PF poderia controlar as pistas em Roraima. Outra contribuição poderia vir da Marinha, que cuida dos rios. Não há um destacamento da Marinha para coibir a navegação de barcos de garimpeiros. As Forças Armadas hoje poderiam dar uma contribuição muito grande. Elas estão no poder. O presidente da República é o comandante-em-chefe. Mas me parece que não há uma decisão profunda, forte, inabalável para fazer isso.

E como fica a relação com o Congresso?

Existe um Congresso onde o governo tem que equilibrar algumas posturas dele ali dentro. Nós sabemos que o agro é uma questão importante para o Brasil, maior fonte de renda hoje. Nós poderíamos ter o agronegócio funcionando, com as terras do agro, as terras indígenas e as reservas ambientais. Temos terras para isso. Temos um País grande. Se não fosse a cobiça exagerada pelo que é mais fácil, não haveria tantos conflitos. É mais fácil invadir terras da União, reservadas aos indígenas, do que realmente comprar espaços novos. Não me parece que o governo se movimenta na direção de uma defesa dos povos indígenas. Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento.

“Teve um momento em que nós éramos a fonte no mundo de defesa de povos indígenas. Fomos reconhecidos por ter uma legislação sem par. Isto foi colocado de lado hoje. Não somos mais referência de nada, a não ser do desmatamento”

O País tem perdido a oportunidade de usar a questão ambiental como ativo nos fóruns comerciais?

É o que a acaba de se ver na COP28, em Dubai, agora em dezembro. Aliás, na reunião, o Brasil se postou como um dos elementos principais para coordenar o grande movimento de combate às mudanças climáticas. Entretanto, bastou terminar o encontro, para se realizar uma licitação pública de 600 pontos dentro da Amazônia brasileira para pesquisa e busca de petróleo, sendo que 192 blocos foram vendidos. São duas faces. Uma hora é cara, outra é coroa. Eu não vejo importância política do Brasil mais na área, a floresta está sendo queimada, as terras invadidas. Então, qual é a do governo realmente? Ele não pode continuar jogando assim. Temos de ser levados a sério nas discussões internacionais. Para isso, temos de ter uma postura permanente, regular: ou você é a favor ou é contra. Na questão ambiental não existem parâmetros dúbios. Na questão indígena, o artigo 231 da Constituição é muito claro ao estabelecer o direito à terra. Agora tem uma PEC para permitir que o Congresso faça as demarcações. Tudo o que está se fazendo hoje em dia, na Câmara e no Senado, tem sido contrário aos povos indígenas, e tudo o que tem sido feito pelo governo na área é ínfimo, pequeno. As organizações indígenas estão aí, gritando e pedindo auxilio. É preciso o governo decidir melhor, embora nós saibamos da situação difícil de base. Sabemos também que o Congresso faz as leis, mas temos que respeitar o que já está na Constituição.

O sertanista Sydney Possuelo entre os líderes indígenas Raoni e Davi Kopenawa. A foto foi tirada por Rosita Mascarenhas Watkins, mulher do indigenista. Ela morreu em setembro, juntamente com as filhas Karla e Michelle, de um casamento anterior, num acidente na BR-020, em Goiás. Foto: Álbum de família

O governo Lula completa um ano. Qual é o balanço que o senhor faz da atuação do governo na área indígena?

Foram homologadas oito terras, encerrados processos que já estavam prontos desde antes da época do nefasto presidente Jair Bolsonaro. Foi isso que o atual governo implementou. Não conseguimos fechar o quadro da situação das terras indígenas. Aliás, muita coisa está na Justiça, e os juízes são brancos, que estão ali a favor dos brancos. Sentam em cima dos processos. O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso.

“O indígena não tem para onde correr. Todo mundo está contra. Nós estamos alterando as leis e a visão que tínhamos de proteção. Tudo é retrocesso”

Hoje há dois órgãos que cuidam da área indígena, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas. Como o senhor analisa a atuação desses dois órgãos?

A meu ver, a Funai desapareceu há muito tempo. Os indígenas procuram não recorrer mais à Funai. O órgão não tem recursos, não tem gente, não tem dinheiro. Tem uma excelente presidente, a Joenia Wapichana, que vem de outras lutas, tem um trabalho e uma história importantes, mas o que ela pode fazer sozinha e sem estrutura? Absolutamente nada. A ação do governo para criação do ministério parece que foi um jogo político. O que esse ministério de fato vem contribuindo? Os indígenas permanecem na mesma situação. O fato de ter surgido um estágio acima da Funai não diminuiu em nada a situação dos indígenas e a questão da terra. A questão foi mais, a meu ver, um jogo político para fora, para mostrar como o País está preocupado com os povos indígenas. O ministério também não tem um quadro suficiente, recursos. Embora sejam egressas do Congresso, lutadoras, Joenia e a ministra e deputada licenciada Sônia Guajajara estão amarradas, os dois órgãos estão com as pernas e os braços amarrados. Eu reforçaria a Funai. Os funcionários da Funai eram referências para os povos indígenas, hoje isso acabou, lamentavelmente.

No governo de Jair Bolsonaro, o senhor devolveu a medalha do mérito indígena que havia recebido em 1991 pelo fato do então presidente ter ganho a mesma distinção. Agora, o senhor vai pedir de volta a medalha?

Alguns funcionários da Funai disseram que querem me devolver. O grande problema de receber a medalha de volta é que eu entreguei a minha, em 2022, porque achei que foi um tapa na cara dos povos indígenas quando puseram uma igual no peito do Bolsonaro e de outras pessoas do governo dele totalmente contrárias aos povos indígenas (o ministro da Justiça, Anderson Torres, foi quem entregou a medalha ao ex-presidente. Torres é investigado hoje no âmbito da tentativa de golpe de 8 de janeiro). Aquilo foi uma afronta grande. E para eu receber de volta tem que tirar a do Bolsonaro. A medalha com Bolsonaro conspurcou a medalha. O governo atual deveria retirar através de um ato. Aí terei o máximo interesse em receber de volta a medalha. Bolsonaro representou tudo que era de mau e retrógrado. Esse homem não pode ter uma medalha do mérito indígena. O importante não é me devolver medalha. Não preciso disso. O que quero dizer simplesmente é que o governo está demorando demais de retirar essa medalha do Bolsonaro. É um ato de justiça apenas aos povos indígenas, para que fique na história o que fizeram com eles em quatro anos de Bolsonaro.

No escritório de Sydney Possuelo, um retrato dele (terceiro da esquerda para a direita), com os irmãos sertanistas Villas Bôas — Orlando Álvaro e Cláudio. Na pintura ao fundo, outro dos irmãos, Leonardo. Foto: Leonencio Nossa

Acompanhei a última grande expedição indigenista que o senhor liderou, em 2002. Na época, o senhor manifestou forte preocupação com o futuro dos povos mesmo de territórios já demarcados, como o Javari. Mais de duas décadas depois, como analisa a situação dessas áreas?

Foi uma expedição de 110 dias ao Vale do Javari. É uma região muito interessante, é o coração da Amazônia. É a segunda maior terra do Brasil, depois da Yanomami, do tamanho de Portugal. Congrega várias etnias indígenas e etnias isoladas. Por sua extensão, esse território que percorremos tem uma importância grande na manutenção do bioma amazônico. Recentemente, teve um plano de limpeza dos marcos da demarcação. As picadas de marcos fecham, o que é um bom motivo para os invasores dizerem que não tem linha alguma de demarcação. Daí, limpá-las é algo importante. Foram 487 quilômetros limpos pelas comunidades indígenas. Orlando, meu filho, estava lá para ajudar. Ele estava naquela nossa expedição também. Eu sempre mostro para ele que nós trabalhamos com direitos humanos, somos defensores dos direitos humanos. Há quem trabalha com brancos que não têm seus direitos reconhecidos, com quilombolas. Nós trabalhamos com os povos indígenas, que são segmentos mais carentes e dependentes da ação do Estado. Existe um deputado aqui ou acolá, mas que se perde numa imensidão anti-indígena dentro do Congresso.

Não é uma causa de um campo partidário.

Isso é tocar na ferida. Nós não temos partido. Trabalhamos com o direito universal de todos os povos de terem suas terras, terem o respeito aos seus costumes. Somos a favor que os direitos humanos sejam sejam reconhecidos também quando se fala nos indígenas, povos que estão aqui há milênios.

O que o senhor falaria hoje aos jovens indigenistas, num tempo de um quadro mais complexo do que aquele em que você atuou?

Venho de um tempo, de uma visão que não existe mais, ligada a Rondon, aos Villas Bôas, de um movimento dos indígenas pela sua terra. A terra é o elemento principal para eles viverem. O que se pode fazer de fundamental é demarcar suas terras. As outras coisas são complementos, como saúde e educação. Primeiro tem que ter um espaço para viver. O lar dele não termina na maloca, vai por dentro da selva, até o próximo rio, para pegar o peixe, segue pela floresta, para pegar o fruto e a caça. O lar indígena é todo um ambiente em que ele vive. É profundamente retrógrada essa postura do Congresso de convalidar ações como o marco temporal. Os trabalhos que foram feitos na demarcação dos yanomamis falam da presença dos indígenas há três mil anos naquela região. Um desses homens brancos vai lá, compra uma terra ou diz que o pai matou uma onça e superou um perigo e se considera dono absoluto da área, mas isso que ele diz foi há 30 anos, 40 anos. Não estou falando disso, meu filho. Estou falando de milênios. Esses povos indígenas estão aqui há milênios. Por uma questão de direito, óbvio, nós temos que acatar, aceitar a existência deles, e reconhecer o direito deles à terra. Isso só engrandeceria os políticos. O presidente Lula, que tem tantas memórias boas, coisas que ele fez de bom, precisa dar uma virada no seu governo a favor da decência nacional em relação aos povos indígenas. Isso seria um ganho enorme para o governo. E se o Congresso respeitasse isso, seria um Congresso respeitado. Se o Judiciário respeitar, seria um Judiciário respeitado.

Coleção de estátuas de Dom Quixote na casa de Sydney Possuelo Foto: Leonencio Nossa

Nos anos 1980, o senhor foi chamado de ‘vice-rei de Roraima’ por políticos contrários à demarcação do Território Yanomami. Disseram que o seu interesse era criar um estado independente indígena. Mesmo com toda pressão, o senhor conseguiu tirar milhares de garimpeiros da área numa grande operação. Como avalia a volta deles agora e o transporte clandestino de ouro para o exterior?

Eu não sei se são aqueles mesmo, né? Muita daquela gente já envelheceu, tem mais de 30 anos isso. Os que tinham 20 estão com 50, os que tinham 30 estão com 60. São senhores. Mas sendo aqueles ou parentes, o dano que eles causaram é muito menor que o estrago que esse grupo de hoje causa. Agora, eles são mais organizados, têm uma frota de helicópteros que facilita a entrada e a saída. Ninguém sabe direito para onde vai o ouro retirado de lá. O Brasil só tem perdido para o garimpo. O ouro sai por caminhos desconhecidos.

Nos últimos anos, as Forças Armadas se voltaram mais contra os indígenas?

No meu tempo na Funai, o Exército foi mais quem teve embates comigo. Numa discussão com generais, no Palácio do Planalto, sobre a demarcação da terra Yanomami, o presidente da República, o Fernando Collor, foi taxativamente a meu favor. Eu nunca vi um discurso tão forte de um presidente pela demarcação. Ele (Collor) disse assim: “Tem um artigo na Constituição que determina a demarcação das terras indígenas. Não é uma questão deste ou de outros governos querer ou não demarcar. É uma imposição constitucional, que tem e deve ser cumprida.” Isso foi fortíssimo. Hoje em dia parece que querem mudar o artigo 231, inserir o marco temporal.

Na demarcação do Javari, o senhor contou com as forças militares?

Não, nunca contei. Eu tive um avião da Força Aérea, dois helicópteros, mas fiz contrato. Cada hora de voo foi paga pela Funai. Não foi um auxílio. Na época a Funai tinha ainda sete aviões, que eu levei todos para Roraima, para tomada de várias pistas. Juntamente com a Polícia Federal, tomamos algumas pistas que estavam ocupadas por garimpeiros. Havia tido um ataque deles à Polícia Federal, um sertanista da Funai morreu. Eu só saía na cidade com segurança. Eram ameaças constantes.

O sertanista Sydney Possuelo com uma peça indígena do Alto Xingu. Foto: Leonencio Nossa

No ano passado, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram assassinados no Javari. Atualmente, o senhor tem um filho que trabalha para os indígenas de lá, o Orlando Possuelo. A segurança do pessoal na área é algo que o preocupa?

Até hoje não vi medidas efetivas, mais policiais para proteger o pessoal. Negativo. Recentemente, o Orlando teve aqui a chamado de um órgão do governo. Ele veio com indígenas que estavam ameaçados também para fazer um relato, conversar sobre algum tipo de proteção. O Orlando está lá na carta (um manuscrito de invasores), é um dos ameaçados de morte. Todos estão ameaçados. Não sou um homem desesperado. Há uma ameaça corriqueira do invasor. Se você parar um barco, espere uma reação. Teve também um rapaz da Funai que foi morto em Tabatinga. São muitos os grupos que têm interesse ali, até o político. A Univaja, a entidade dos indígenas, tem conseguido muitas coisas em parcerias. O Vale do Javari conta com um sistema de vigilância permanente, com equipes treinadas com drone e outros equipamentos, barcos rápidos, um sistema de comunicação. Meu filho é empregado dos indígenas, para fazer treinamentos, ensinar a usar o GPS, o drone, atuar em expedições na área.

Como o senhor avalia o novo movimento indígena?

Muitos dessa nova geração de indígenas passou por colégios, por faculdades. Eles estão cada dia mais tomando conta de seu destino, de seu futuro. Às vezes, funcionários da Funai não fazem absolutamente nada, gente oriunda de concurso, que tem nível superior, mas quando chegam para trabalhar em campo logo saem correndo ou ficam numa rede, nada fazem. Esses homens estão efetivamente defendendo a terra e os indígenas? A propósito, faço um apelo para a Funai. Tem que colocar gente que faça as coisas. Não adianta colocar gente com PHd. Os PHd querem escrever livros, tem outras visões. Procurem homens regionais. Eu trabalhei só com regionais, pessoas que levei do Pará para o Amazonas. No Javari, quando implantamos a frente de proteção, queríamos uma equipe que atuasse como uma escola para outros. Ela ensinou os indígenas a manusear rádio, chegar às pessoas, atuar na defesa de sua terra.

Esse legado ficou.

Hoje essa equipe é quase totalmente indígena. Nada é feito lá sem a presença dos indígenas. É na parte politica, em Brasília, que as lideranças indígenas têm mais dificuldades.

Como tem sido enfrentar a perda de dona Rosita Watkins, sua mulher, morta num acidente de trânsito em setembro?

A Rosita mudou radicalmente minha vida. Eu estava me portando como um aposentado. Saía uma vez ou outra para dar uma palestra, mas muito pouco. A Rosita mudou isso. Ela tinha uma ação social em Brasília com crianças junto à Igreja Católica. É uma ação de cinco creches. Ela organizava almoços, jantares, chás, vendas de coisas, angariava recursos. Eu penso que ela está fazendo uma falta muito grande. Ela entrou também dentro do indigenismo. Eu não sabia desses acampamentos, uma terra indígena no Noroeste, aqui em Brasília. Ela me levou lá, começamos a frequentar, a levar alimentos. Eu não conheci uma pessoa mais completa como ser humano, amiga, generosa, companheira e com visão social muito grande, que tinha sentimento. Ela se emocionava em falar das pessoas. Ela saiu numa viagem com duas filhas e um neto e as três morreram estupidamente, para fazer parte da estatística terrível das mortes inconsequentes porque a estrada está ruim, o outro motorista está embriagado, os motores dão pane. As estradas brasileiras são estradas para a morte. Isso nos violenta. É um perigo para todos. É algo que precisa ser bem encaminhado pelos governos. Eu não quero entrar muito na história dela porque me emociono em falar. Foi o grande amor da minha vida.

Entrevista por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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