O jurista Ives Gandra da Silva Martins, de 87 anos, atribui a tensão entre Executivo e Judiciário ao choque do “ativismo judicial” com a “falta de liturgia do cargo” do presidente Jair Bolsonaro (PL). Um dos mentores do pensamento conservador no Brasil, o advogado e professor diz que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem atuado para suprir derrotas da oposição no Congresso. “A meu ver, isso põe mais em risco a democracia do que propriamente manifestação em WhatsApp.”
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No caso dos empresários bolsonaristas que preferem um golpe de Estado à volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder, Gandra diz que não houve crime nenhum e critica o ministro Alexandre de Moraes. “Pode expor as ideias mais esdrúxulas possíveis. Se os atos não corresponderem em nada daquilo que eu estou dizendo, é liberdade de expressão.”
Para o jurista, os limites dessa liberdade são traçados no que a Constituição e o Código Penal entendem por abusos. Cabem, segundo ele, “indenização por danos morais e denunciação caluniosa”, jamais bloqueios de contas, prisões e outras medidas coercitivas. Leia a entrevista ao Estadão:
O que o sr. define por ativismo judicial?
A função do Poder Judiciário é ser guardião da Constituição. A função do Legislativo é legislar, do Executivo, comandar o País e, eventualmente, legislar. É isso que está na Constituição. O Supremo tem cumprido isso? Apesar da qualidade dos ministros, eles têm invadido a competência dos outros Poderes.
Por que fazem isso?
Eu não vou julgar o íntimo de cada um. Eu os considero idôneos e competentes. Sobre os atos, eu considero que há invasão de competência. No caso dos empresários, a lei: “Tentar com emprego de violência, ou grave ameaça, abolir o estado democrático de direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais” – o que representa um golpe de Estado. Como se pode dar um golpe de Estado sem as Forças Armadas? Há 33 anos eu sou professor emérito da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército. Eu conheço a mentalidade deles. Possibilidade de golpe pelas Forças Armadas é zero. E sem Forças Armadas não há golpe. Dentro dessa linha, é evidente que os empresários não teriam força nenhuma. Quando empresários falam que, se o presidente Lula for eleito, preferem um golpe, é força de expressão.
Ives Gandra, jurista
Então não houve crime algum nesse caso?
Não houve crime. Inclusive a prova é ilícita, foi obtida em uma conversa privada, particular. Quando se põe grave risco à democracia, eu tenho de dizer quais são as medidas que estou tomando (contra a democracia). Foi uma expressão isolada de uma conversa particular. Como é que eu condeno alguém por entender que o cidadão é rico e pode financiar um golpe de Estado? Além de ser uma conversa privada, como é que se atende ao pedido de um senador? É uma decisão em que se transforma o ministro em profeta, sem que haja nenhum indício, se não de uma mera conversa privada. Não se falou em pegar armas, em contratar pessoas, em formar movimentos, formar grupos capazes de dar golpe, onde haveria um grave risco.
O sr. fala do senador Randolfe, que fez os pedidos a Moraes contra os empresários, não a PF?
O senador Randolfe Rodrigues. Acho que ele já deve ter gasto seu sapato de tanto que sai do Congresso para pedir decisões no STF. Aquela praça deve ter até o caminho do senador. Eu gosto dele, evidentemente não concordo com as teses que ele defende. O que tem acontecido é que o que ele e a oposição pedem o Supremo concede. Isto, a meu ver, põe mais em risco a democracia do que propriamente manifestação em WhatsApp.
Não é uma ameaça à democracia dizer que se prefere um golpe de Estado à vitória de Lula nas urnas?
Não há crime em dizer o que penso num país em que a liberdade de expressão está garantida. O inciso V (do artigo 5.º da Constituição) declara quais são as ações, se houve abuso da liberdade de expressão: indenização por danos morais e denunciação caluniosa. É assegurada a ampla defesa. Que ampla defesa é esta em que o cidadão perde tudo e os seus advogados não têm acesso?
A liberdade de expressão é um direito absoluto?
A liberdade de expressão é direito absoluto com as limitações permitidas pela Constituição, nos abusos da liberdade de expressão, do inciso V, e do Código Penal. A liberdade de expressão foi absolutamente cerceada. Pode se expor as ideias mais esdrúxulas possíveis. Se os atos não corresponderem em nada daquilo que estou dizendo, é liberdade de expressão.
E essas previsões não se enquadram no caso dos empresários bolsonaristas?
Não caberia em nenhum momento. Há uma diferença entre liberdade de expressão ser limitada pelas duas ações do Código Penal e da Constituição e aquela outra de prender. Eu tenho um deputado (Daniel Silveira) que foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal há mais de 8 anos de prisão por mera manifestação que disse que poderia bater nos ministros. Sendo mera manifestação de liberdade de pensamento, no máximo poderia ter indenização por danos morais ou denunciação caluniosa.
E o fato de o presidente questionar o processo eleitoral? Também é liberdade de expressão?
Em uma das vezes em que nós conversamos (com Bolsonaro), eu dizia para ele o seguinte: é evidente que houve um erro de manifestação. Se ele tivesse defendido a tese: vamos para uma urna mais moderna, nós teríamos uma solução, na minha opinião de falta de resistência do TSE.
Ives Gandra, jurista
Por que o sr. acredita que hoje há ativismo judicial?
Trabalho com hipótese. A meu ver, sem julgar a intenção, sete dos ministros foram indicados pelo PT, e ainda estão na Suprema Corte. Evidente que nós tivemos uma linha de um lado (do STF), e, por outro lado, ao presidente Bolsonaro faltou sempre a liturgia do cargo. Se nós verificarmos as manifestações do presidente (Michel) Temer e do Bolsonaro, a liturgia do cargo é de um, não do outro. Muito embora a meu ver o presidente Bolsonaro não esteja fazendo um mau governo. Embora (os ministros sejam) honestos intelectualmente, apesar de uma flexibilidade na interpretação da Constituição, eles têm demonstrado uma simpatia maior pela esquerda do que pelos conservadores. Toda essa reação se deve ao resgate que se fez da candidatura do presidente Lula.
O sr. disse que o presidente não respeita a liturgia do cargo, por outro lado o senhor diz que o Supremo pratica ativismo judicial. A gente vive uma tensão constante entre os Poderes...
Essa liturgia do cargo que eu falo é na maneira de falar.
Xingar ministros de canalha, coisas ofensivas.
Eu entendo que é falha.
Ele diz em público e anima a base.
Nesse particular, falo que a comunicação dele não mostra liturgia, mas as reações dos ministros contra ele também demonstram uma tensão em que nós ficamos com a tese do ovo e da galinha. Nessa tensão entre o presidente que derrotou o partido que nomeou sete ministros, quem é que na tensão deu o pontapé inicial?
Sua interpretação do artigo 142 ficou conhecida. O que ela diz?
No que diz respeito aos instrumentos Forças Armadas e segurança pública, o artigo 142 dá três funções. Primeira, defesa da Pátria; segunda, defender as instituições democráticas. Terceiro é garantir a lei e a ordem por solicitação de qualquer Poder. Jamais para desconstituir Poder. A expressão é garantir a lei e a ordem quando um dos Poderes pedir. E o que não está escrito na Constituição e que eu sempre interpretei e que está nos meus comentários é que, se por acaso, o Poder solicitante for o Executivo, ele não poderia presidir (a intervenção), não poderia ser parte, ele é o chefe das Forças Armadas e não poderia nem um ministro de Defesa. Teriam de ser a força de Estado só para repor naquele ponto. De repente, eu vi dizendo que era a forma de um golpe, era a maneira de se desconstituir um Poder e derrubar ministros do Supremo, e é o contrário.