Karina dos Reis, uma dona de casa de Araxá, de 44 anos, tem um câncer. Os médicos atestam que ela vive em estado de metástase hepática e precisa, o mais depressa possível, fazer exames de tomografia do tórax e ressonância magnética do abdômen para ter chances de vencer a doença. Mas, além do câncer, Karina tem o ministro Alexandre de Moraes na sua vida. Ela é considerada pelo ministro como uma inimiga do “estado democrático de direito” e está obrigada por ele a usar uma tornozeleira eletrônica – que teria de ser retirada para que os exames possam ser feitos dentro das condições requeridas pela medicina.
A defesa, com o aval dos médicos, pediu a remoção temporária do aparelho, só pelos instantes que durassem a tomo e a ressonância. Alexandre de Moraes negou. Karina continua com o seu câncer e com a tornozeleira do STF.
Isso é tortura, um crime previsto em lei e que não poderia ser cometido pelo mais alto tribunal de justiça do Brasil. É claro que se pode passar o resto da vida escrevendo tratados para se argumentar que não há nada de errado com essa e dezenas de outras decisões do mesmo tipo. Moraes e seus sistemas de apoio dizem que impedir os exames médicos de uma senhora com câncer é essencial para defender a democracia; usam a sua interpretação pessoal da letra da lei para acabar com os direitos mais básicos do ser humano. Mas o fato é que proibir uma pessoa de lutar pela própria vida, como Moraes e o STF estão fazendo com Karina, é a pura e simples negação da lei. Se for assim, para que serviriam as leis? O que existe aqui não tem nada a ver com o “rigor da Justiça”. É apenas crueldade, vingança e abuso do forte contra o fraco.
Hoje, diferente do que acontecia nos porões da ditadura militar, os carcereiros não se importam em esconder a tortura; fazem questão, ao contrário, de colocar suas decisões no papel, selar e assinar embaixo. O ministro Moraes, no caso, se compraz oficialmente em prolongar a agonia de Karina.
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Um dia, talvez, quem sabe, é até possível que a licença para a remoção provisória da tornozeleira seja dada, diz ele em seu despacho – mas não agora. No seu veredito sobre os laudos médicos, o ministro decidiu que não está demonstrada “a necessidade imediata de flexibilização da cautelar, de maneira que não há motivos para a suspensão da monitoração eletrônica.” (É assim que ele chama a tornozeleira que não deixa as pessoas saírem de casa – “monitoração eletrônica”.) Karina está com câncer, foi operada e precisa de exames. Moraes e o STF acham que “não há motivos” para tirar a algema que não lhe permite ir ao hospital.
Nossa suprema corte constitucional exige, para que essa permissão seja dada algum dia, que a vítima volte ao STF. De acordo com Moraes, de “posse da data do exame, cirurgia, internação ou de relatório médico circunstanciado” (o português é esse mesmo, letra por letra), ela poderá então apresentar seu pedido de novo.
Que nome se pode dar a isso tudo? O ministro já chamou prisão preventiva de “flexibilização da liberdade de ir e vir”; toda a plateia de Moraes no governo morre de rir e fica batendo palmas para a sua espirituosidade. É claro que vai continuar assim. Já houve um preso que morreu no pátio da penitenciária porque Moraes não deu a permissão para que fosse levado ao hospital e recebesse tratamento de urgência. Já houve uma professora com mais de 60 anos que viu a polícia, a mando do ministro, invadir o quarto de hospital onde estava internada após uma cirurgia para lhe colocar de novo a tornozeleira. Pessoas como ela, que não podem oferecer o mínimo perigo para o Brasil e os 200 milhões de brasileiros, são condenadas a até 17 anos de prisão.
Karina dos Reis, que não tem um tostão no bolso, não conhece nenhuma pessoa importante e nunca cometeu uma infração na vida, não apenas está sendo submetida a tratamento desumano por parte do STF. Está sendo punida por um crime que não cometeu: no dia 8 de janeiro de 2023 estava diante do quartel-general do Exército em Brasília, participando de um protesto pacífico e absolutamente legal até aquele momento. Nunca entrou num dos prédios dos Três Poderes que estavam sendo invadidos por baderneiros armados de estilingue. Nunca depredou nada, nem encostou a mão em ninguém.
Como é possível entrar na cabeça de alguém que ela é uma golpista culpada de “abolição violenta” do Estado de direito? Mas mesmo que tivesse feito isso; mesmo, aliás, se fosse acusada de crime hediondo em primeiro grau. Como aceitar o que o STF está fazendo com ela, e que fez com tantos outros? Karina é um ser humano – antes de ser “de direita”, ou qualquer coisa. Não perdeu seus direitos constitucionais por ter opiniões políticas que o STF não admite. Deveria, no mínimo, receber o tratamento previsto na Lei de Proteção aos Animais. Uma nação que convive com a sordidez dos campos de concentração, abertos ou fechados, e vira a cabeça para não ver nada quanto passa à sua frente, está em colapso moral.