Aos fatos, como eles são

Opinião|STF cria doutrina do ‘controle remoto’, em que não importa o crime cometido, mas o nome no processo


Toffoli acaba de sumir de um golpe só com todas as provas e todos os processos contra o empresário Marcelo Odebrecht

Por J.R. Guzzo

O Supremo Tribunal Federal, de um desvario aqui a um disparate ali, vai oferecendo ao mundo uma doutrina até hoje desconhecida nos registros do Direito universal. É a aplicação da justiça através do controle remoto. Como nos equipamentos de televisão, o ministro encarregado de tomar esta ou aquela decisão aciona a tecla “desliga” sobre os fatos que possam estar em desacordo com a sentença que ele quer dar. O efeito é exatamente o mesmo que se observa nas telas da TV: fica tudo preto, a imagem e as vozes desaparecem e a realidade que existia na sua frente, até aquele instante, passa a não existir mais. É o que o STF tem feito com empenho cada vez mais sistemático. Sempre que querem atender aos seus desejos, acionam a caneta que o Estado brasileiro lhes dá e anulam coisas que já aconteceram na vida real – e que, pelas regras gerais da lógica, deveriam levar à uma decisão oposta a aquela que decidiram tomar.

Dias Toffoli tem se notabilizado pelas decisões que estão liquidando ações da Lava Jato Foto: Antonio Augusto/STF

O ministro Dias Toffoli, pelo que parece e pelos despachos que dá, está sendo o grande cérebro por trás desta doutrina. Por sua própria conta, ou a pedidos, é o que mais tem utilizado o controle remoto para apagar quaisquer acontecimentos materiais que obrigariam um magistrado a decidir desta ou daquela forma. Como o cidadão que desliga a TV quando não quer ver mais o programa, Toffoli acaba de sumir de um golpe só com todas as provas e todos os processos contra o empresário Marcelo Odebrecht – o condenado-estrela, pelo crime de corrupção ativa, da Operação Lava Jato. Já tinha, pouco tempo atrás, tomado a decisão de perdoar a construtora Odebrecht e o grupo industrial J&F do pagamento de multas somando por volta de R$ 15 bilhões – penalidades que os seus diretores tinham se comprometido a pagar para não serem presos por corrupção. Não deu para entender nada. O ministro, é óbvio, não forneceu até hoje uma única explicação coerente para fazer o que fez – aliás, eles nunca dão explicação nenhuma. O fato é que os magnatas nem foram para a cadeia e nem pagaram a multa.

continua após a publicidade

Agora, com a anulação de todos os processos contra Marcelo Odebrecht, o STF faz mais um avanço histórico: a justiça brasileira de 2024, através de Toffoli, considera oficialmente que crimes provados por evidências físicas, pela devolução de dinheiro roubado e pela confissão espontânea do próprio réu, assistido por todos os advogados garantistas do mundo, não existiram. Tecnicamente, com base em decisões como essa, qualquer crime cometido no território nacional pode a partir de hoje receber um certificado de “não-existência”. Não se aconselha a ninguém, naturalmente, fazer essa experiência consigo mesmo. A doutrina do controle remoto tem um outro fundamento essencial: não se aplica segundo o crime julgado, mas segundo o nome que aparece na capa do processo. O nome “Odebrecht” funciona. Outros nomes funcionam. Se o sujeito não tem um nome “validado”, sai de baixo. Se for acusado, por exemplo, de dar “golpe de Estado” com o uso de estilingues, vai pegar dezessete anos de reclusão. “Nome inválido”, dirá o STF.

O ministro Toffoli está construindo para si próprio uma biografia sem precedentes na história do Judiciário brasileiro. Arrasta, junto com ela, todo o STF. Recentemente, quando anulou as multas da Odebrecht e J&F, teve o seu nome citado nove vezes num mesmo relatório da Transparência Internacional sobre corrupção no Brasil – onde se dizia, por sinal, que o país caiu ainda mais para baixo na lista da ladroagem mundial e hoje é uma das nações mais corruptas do planeta. Foi citado oficialmente por Marcelo Odebrecht, em depoimento às autoridades do MP, como o “amigo do amigo do meu pai” – sendo seu pai o empresário Emílio Odebrecht e o amigo o atual presidente da República. No arrastão em favor da família e de sua empresa, foi declarado inexistente o que talvez tenha sido o aparelho de corrupção mais explícito da história mundial da roubalheira: o “Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht, montado para operacionalizar o pagamento de subornos e provido de diretores, funcionários, computadores, planilhas e tudo o mais.

continua após a publicidade

Neste último episódio, a presente doutrina do STF acabou beneficiando, na prática, um velho inimigo do tribunal e do presidente Lula – o senador Sérgio Moro, o juiz-chefe da operação anticorrupção mais odiada pelo tribunal. Foi uma questão de prioridades. Moro estava à beira de ter o seu mandato cassado pelo TSE, a polícia eleitoral do Supremo. Mas os ministros queriam, mais do que isso, livrar Marcelo Odebrecht de todos os seus problemas, e para sempre. Fazer as duas coisas ao mesmo tempo? Pelo jeito eles acharam que aí já seria demais. Optaram pela prioridade maior – eliminar o caso Odebrecht do mundo das realidades. É a “previsibilidade” e a “segurança jurídica” que o STF de hoje oferecem ao Brasil. Vai decidir, em todos os casos, da mesma maneira: em favor dos nomes aprovados pelo sistema. É a nossa jurisprudência.

O Supremo Tribunal Federal, de um desvario aqui a um disparate ali, vai oferecendo ao mundo uma doutrina até hoje desconhecida nos registros do Direito universal. É a aplicação da justiça através do controle remoto. Como nos equipamentos de televisão, o ministro encarregado de tomar esta ou aquela decisão aciona a tecla “desliga” sobre os fatos que possam estar em desacordo com a sentença que ele quer dar. O efeito é exatamente o mesmo que se observa nas telas da TV: fica tudo preto, a imagem e as vozes desaparecem e a realidade que existia na sua frente, até aquele instante, passa a não existir mais. É o que o STF tem feito com empenho cada vez mais sistemático. Sempre que querem atender aos seus desejos, acionam a caneta que o Estado brasileiro lhes dá e anulam coisas que já aconteceram na vida real – e que, pelas regras gerais da lógica, deveriam levar à uma decisão oposta a aquela que decidiram tomar.

Dias Toffoli tem se notabilizado pelas decisões que estão liquidando ações da Lava Jato Foto: Antonio Augusto/STF

O ministro Dias Toffoli, pelo que parece e pelos despachos que dá, está sendo o grande cérebro por trás desta doutrina. Por sua própria conta, ou a pedidos, é o que mais tem utilizado o controle remoto para apagar quaisquer acontecimentos materiais que obrigariam um magistrado a decidir desta ou daquela forma. Como o cidadão que desliga a TV quando não quer ver mais o programa, Toffoli acaba de sumir de um golpe só com todas as provas e todos os processos contra o empresário Marcelo Odebrecht – o condenado-estrela, pelo crime de corrupção ativa, da Operação Lava Jato. Já tinha, pouco tempo atrás, tomado a decisão de perdoar a construtora Odebrecht e o grupo industrial J&F do pagamento de multas somando por volta de R$ 15 bilhões – penalidades que os seus diretores tinham se comprometido a pagar para não serem presos por corrupção. Não deu para entender nada. O ministro, é óbvio, não forneceu até hoje uma única explicação coerente para fazer o que fez – aliás, eles nunca dão explicação nenhuma. O fato é que os magnatas nem foram para a cadeia e nem pagaram a multa.

Agora, com a anulação de todos os processos contra Marcelo Odebrecht, o STF faz mais um avanço histórico: a justiça brasileira de 2024, através de Toffoli, considera oficialmente que crimes provados por evidências físicas, pela devolução de dinheiro roubado e pela confissão espontânea do próprio réu, assistido por todos os advogados garantistas do mundo, não existiram. Tecnicamente, com base em decisões como essa, qualquer crime cometido no território nacional pode a partir de hoje receber um certificado de “não-existência”. Não se aconselha a ninguém, naturalmente, fazer essa experiência consigo mesmo. A doutrina do controle remoto tem um outro fundamento essencial: não se aplica segundo o crime julgado, mas segundo o nome que aparece na capa do processo. O nome “Odebrecht” funciona. Outros nomes funcionam. Se o sujeito não tem um nome “validado”, sai de baixo. Se for acusado, por exemplo, de dar “golpe de Estado” com o uso de estilingues, vai pegar dezessete anos de reclusão. “Nome inválido”, dirá o STF.

O ministro Toffoli está construindo para si próprio uma biografia sem precedentes na história do Judiciário brasileiro. Arrasta, junto com ela, todo o STF. Recentemente, quando anulou as multas da Odebrecht e J&F, teve o seu nome citado nove vezes num mesmo relatório da Transparência Internacional sobre corrupção no Brasil – onde se dizia, por sinal, que o país caiu ainda mais para baixo na lista da ladroagem mundial e hoje é uma das nações mais corruptas do planeta. Foi citado oficialmente por Marcelo Odebrecht, em depoimento às autoridades do MP, como o “amigo do amigo do meu pai” – sendo seu pai o empresário Emílio Odebrecht e o amigo o atual presidente da República. No arrastão em favor da família e de sua empresa, foi declarado inexistente o que talvez tenha sido o aparelho de corrupção mais explícito da história mundial da roubalheira: o “Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht, montado para operacionalizar o pagamento de subornos e provido de diretores, funcionários, computadores, planilhas e tudo o mais.

Neste último episódio, a presente doutrina do STF acabou beneficiando, na prática, um velho inimigo do tribunal e do presidente Lula – o senador Sérgio Moro, o juiz-chefe da operação anticorrupção mais odiada pelo tribunal. Foi uma questão de prioridades. Moro estava à beira de ter o seu mandato cassado pelo TSE, a polícia eleitoral do Supremo. Mas os ministros queriam, mais do que isso, livrar Marcelo Odebrecht de todos os seus problemas, e para sempre. Fazer as duas coisas ao mesmo tempo? Pelo jeito eles acharam que aí já seria demais. Optaram pela prioridade maior – eliminar o caso Odebrecht do mundo das realidades. É a “previsibilidade” e a “segurança jurídica” que o STF de hoje oferecem ao Brasil. Vai decidir, em todos os casos, da mesma maneira: em favor dos nomes aprovados pelo sistema. É a nossa jurisprudência.

O Supremo Tribunal Federal, de um desvario aqui a um disparate ali, vai oferecendo ao mundo uma doutrina até hoje desconhecida nos registros do Direito universal. É a aplicação da justiça através do controle remoto. Como nos equipamentos de televisão, o ministro encarregado de tomar esta ou aquela decisão aciona a tecla “desliga” sobre os fatos que possam estar em desacordo com a sentença que ele quer dar. O efeito é exatamente o mesmo que se observa nas telas da TV: fica tudo preto, a imagem e as vozes desaparecem e a realidade que existia na sua frente, até aquele instante, passa a não existir mais. É o que o STF tem feito com empenho cada vez mais sistemático. Sempre que querem atender aos seus desejos, acionam a caneta que o Estado brasileiro lhes dá e anulam coisas que já aconteceram na vida real – e que, pelas regras gerais da lógica, deveriam levar à uma decisão oposta a aquela que decidiram tomar.

Dias Toffoli tem se notabilizado pelas decisões que estão liquidando ações da Lava Jato Foto: Antonio Augusto/STF

O ministro Dias Toffoli, pelo que parece e pelos despachos que dá, está sendo o grande cérebro por trás desta doutrina. Por sua própria conta, ou a pedidos, é o que mais tem utilizado o controle remoto para apagar quaisquer acontecimentos materiais que obrigariam um magistrado a decidir desta ou daquela forma. Como o cidadão que desliga a TV quando não quer ver mais o programa, Toffoli acaba de sumir de um golpe só com todas as provas e todos os processos contra o empresário Marcelo Odebrecht – o condenado-estrela, pelo crime de corrupção ativa, da Operação Lava Jato. Já tinha, pouco tempo atrás, tomado a decisão de perdoar a construtora Odebrecht e o grupo industrial J&F do pagamento de multas somando por volta de R$ 15 bilhões – penalidades que os seus diretores tinham se comprometido a pagar para não serem presos por corrupção. Não deu para entender nada. O ministro, é óbvio, não forneceu até hoje uma única explicação coerente para fazer o que fez – aliás, eles nunca dão explicação nenhuma. O fato é que os magnatas nem foram para a cadeia e nem pagaram a multa.

Agora, com a anulação de todos os processos contra Marcelo Odebrecht, o STF faz mais um avanço histórico: a justiça brasileira de 2024, através de Toffoli, considera oficialmente que crimes provados por evidências físicas, pela devolução de dinheiro roubado e pela confissão espontânea do próprio réu, assistido por todos os advogados garantistas do mundo, não existiram. Tecnicamente, com base em decisões como essa, qualquer crime cometido no território nacional pode a partir de hoje receber um certificado de “não-existência”. Não se aconselha a ninguém, naturalmente, fazer essa experiência consigo mesmo. A doutrina do controle remoto tem um outro fundamento essencial: não se aplica segundo o crime julgado, mas segundo o nome que aparece na capa do processo. O nome “Odebrecht” funciona. Outros nomes funcionam. Se o sujeito não tem um nome “validado”, sai de baixo. Se for acusado, por exemplo, de dar “golpe de Estado” com o uso de estilingues, vai pegar dezessete anos de reclusão. “Nome inválido”, dirá o STF.

O ministro Toffoli está construindo para si próprio uma biografia sem precedentes na história do Judiciário brasileiro. Arrasta, junto com ela, todo o STF. Recentemente, quando anulou as multas da Odebrecht e J&F, teve o seu nome citado nove vezes num mesmo relatório da Transparência Internacional sobre corrupção no Brasil – onde se dizia, por sinal, que o país caiu ainda mais para baixo na lista da ladroagem mundial e hoje é uma das nações mais corruptas do planeta. Foi citado oficialmente por Marcelo Odebrecht, em depoimento às autoridades do MP, como o “amigo do amigo do meu pai” – sendo seu pai o empresário Emílio Odebrecht e o amigo o atual presidente da República. No arrastão em favor da família e de sua empresa, foi declarado inexistente o que talvez tenha sido o aparelho de corrupção mais explícito da história mundial da roubalheira: o “Departamento de Operações Estruturadas” da Odebrecht, montado para operacionalizar o pagamento de subornos e provido de diretores, funcionários, computadores, planilhas e tudo o mais.

Neste último episódio, a presente doutrina do STF acabou beneficiando, na prática, um velho inimigo do tribunal e do presidente Lula – o senador Sérgio Moro, o juiz-chefe da operação anticorrupção mais odiada pelo tribunal. Foi uma questão de prioridades. Moro estava à beira de ter o seu mandato cassado pelo TSE, a polícia eleitoral do Supremo. Mas os ministros queriam, mais do que isso, livrar Marcelo Odebrecht de todos os seus problemas, e para sempre. Fazer as duas coisas ao mesmo tempo? Pelo jeito eles acharam que aí já seria demais. Optaram pela prioridade maior – eliminar o caso Odebrecht do mundo das realidades. É a “previsibilidade” e a “segurança jurídica” que o STF de hoje oferecem ao Brasil. Vai decidir, em todos os casos, da mesma maneira: em favor dos nomes aprovados pelo sistema. É a nossa jurisprudência.

Opinião por J.R. Guzzo

Jornalista escreve semanalmente sobre o cenário político e econômico do País

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.