O ministro Alexandre de Moraes, numa de suas últimas conferências, voltou a deixar claríssimo, mais uma vez, o tamanho do abismo que está sendo aberto entre dois tipos de Brasil. O primeiro é o Brasil que funciona segundo determinam as regras da Constituição Federal. O segundo é o Brasil como o STF acha que ele tem de ser. No Brasil constitucional, as leis que afetam todos os brasileiros têm de ser aprovadas pelo Congresso Nacional – todas as leis, sobre todos e quaisquer assuntos, sem exceção. No Brasil de Alexandre de Moraes e da maioria de seus colegas, o Supremo tem o direito, e possivelmente o dever, de criar leis em áreas sobre as quais o Congresso ainda não tomou decisões. Não é assim em nenhuma democracia séria do mundo. Lá só os eleitos pelo voto livre e universal dos cidadãos têm o direito de aprovar uma lei - e só a suprema corte tem o direito de resolver se a Constituição está sendo obedecida nas questões que são levadas ao seu julgamento.
A lei que o ministro Moraes quer fazer, agora, é sobre a inteligência artificial. Não diz que se trata de lei, e sim de “regulamentação” – mas em termos práticos dá exatamente na mesma. Segundo afirmou, de duas uma: ou o Congresso aprova logo (até as próximas eleições, pelo que deu para entender) uma legislação sobre o uso da IA no Brasil, ou o STF “vai ter” de decidir a respeito. “Não é possível a justiça eleitoral dizer: ‘Como não há regulação, não podemos julgar isso.’”, afirma o ministro. “É isso que pode atrapalhar a lisura das eleições”. Na sua opinião, existe no caso até uma injustiça em relação ao STF. “Aí entramos naquele ciclo vicioso”, disse Moraes. “Se não há regulação, há necessidade da justiça regulamentar, e aí o Judiciário é acusado de usurpar o Legislativo”.
Não ocorre ao STF, nem à esquerda que lhe dá apoio automático, fazer uma pergunta muito simples: “E porque há ‘necessidade’ da justiça regular o que o Congresso ainda não regulou?” Não há necessidade nenhuma, e o texto da Constituição não permite em lugar algum, que o Judiciário (ou o Executivo) faça leis que até agora não foram feitas. E se alguém levar à justiça uma questão que não está regulamentada? É só o juiz, ou o STF, dizerem: “Não é possível julgar essa causa, pois não há lei a respeito. Quando houver, voltem aqui”. Se não existe no Brasil nenhuma lei sobre o uso da IA, é porque o Congresso ainda não quis fazer – e os parlamentares não têm absolutamente nenhuma obrigação legal de aprovar qualquer tipo de lei, sobre qualquer assunto, e dentro de qualquer prazo.
O STF, ou quem quer que seja, está achando que é preciso regulamentar isso ou aquilo? Perfeito; talvez seja preciso mesmo. Mas só o Congresso, como representante legal da população brasileira, está autorizado a fazer isso. Não tem a menor obrigação de querer as mesmas leis que o STF quer. Não tem de obedecer aos seus prazos – tal lei, sobre tal assunto, tem de ser aprovada até tal dia. Não tem, acima de tudo, de fazer o que ainda não fez. Vai fazer quando achar que deve, ou porque há pressão popular para que faça – ou então vai deixar as coisas como estão. Há alguém na frente do Congresso, em Brasília, dizendo: “Queremos a regulamentação da Inteligência Artificial, já?” Não há ninguém, e os congressistas sabem perfeitamente disso. Numa democracia de verdade, caberia ao STF esperar a decisão do Congresso. Mas isso aqui é o Brasil.