A cientista política Flávia Pellegrino, diretora do Pacto pela Democracia, estava no Institut des Hautes Études de L’Amérique Latine, da Sorbonne, em Paris, quando os protestos de 2013 estouraram no Brasil. O movimento que mudou a política nacional se tornou então o objeto de sua tese. De volta ao Brasil em 2016, Flávia se engajou no Pacto pela Democracia, uma entidade da sociedade civil empenhada em promover a renovação da política. É lá que ela estava quando Jair Bolsonaro ascendeu à Presidência e o pacto passou a reunir mais de 200 entidades em defesa do estado democrático de direito. Hoje, ela voltou à ideia da renovação da política. A seguir, trechos de sua entrevista:
A senhora acha que em alguma medida o que ficou conhecido como Primavera Árabe e outros movimentos de indignação fora do Brasil chegaram ao País em junho de 2013 ou estávamos diante de um fenômeno nacional?
Embora sejam contextos distintos, há um elemento comum, que é a mudança estrutural da sociabilidade no Brasil e em outros países tem como motor da transformação profunda: a era digital. A sociabilidade digital gera uma transformação da maneira de as pessoas se relacionarem na sociedade e, evidentemente, isso afeta não só o cotidiano e a vida de todos, mas também a forma de se fazer política, de construir a participação política no Brasil e no mundo. Esse é um dos elementos, além dos contextos políticos que emergem em cada País, em comum entre esse movimentos.
De que maneira um novo modo de vida organizado em redes implica um novo modelo de relacionamento entre as pessoas e o sistema político? O ano de 2013 trouxe o esgotamento da geração da luta pela redemocratização?
Ambas questões caminham juntas. Essa nova geração desenvolve um novo fazer político por meio das conexões digitais. As conexões permitiram o encontro de cidadãos de forma efêmera, pontual, unidos pelo amálgama de insatisfação e também pela negação da classe política e de suas instituições. Essa insatisfação abarcava também a negação do fazer político tradicional e de suas instituições, o que fica claro na segunda fase das jornadas de junho de 2013, quando há o rechaço das formas tradicionais da representação e mobilização social, dos partidos políticos e dos movimentos sociais institucionalizados. A legitimidade estava apenas no encontro dos que estavam indignados e abraçavam o amplo leque de contestações que estavam sendo feitas. Essa nova sociabilidade digital foi a forma por meio da qual a indignação se sentiu legítima.
Indignação ou ressentimento?
Naquela época, eu diria indignação, uma indignação legítima. E esse é um ponto importante. Dez anos depois, muito se passou e vivemos um período de erosão democrática, que também é um fenômeno global. Fiz minha tese há dez anos e o Pacto pela Democracia nasceu desse processo. Mas uma premissa essencial quando falamos das jornadas de junho, é tentar evitar demonizar o seu desenvolvimento e os seus efeitos. Ou simplificar o que aconteceu e ignorar sua relevância e a legitimidade desse processo de contestação que as jornadas inauguraram lá atrás.
Você enxerga as jornadas de junho como um evento inédito em nossa história?
Eu enxergo até hoje as jornadas de junho como um movimento inédito em nossa história. Não só pela dimensão, mas pela forma como isso aconteceu. As jornadas de junho são a maior onda de contestações sociais de nossa história democrática. Não é o momento em que os desafios da democracia brasileira começam, evidentemente, mas são o grande marco desse ciclo político democrático que a gente vive atualmente, que é de contestações amplas e bastante explícitas da própria democracia, do sistema político brasileiro e de sua classe política. É um período em que vemos transformações profundas da forma como a sociedade se relaciona e participa da vida política do País. Por isso, acho importante no olhar retrospectivo ter em mente a legitimidade. Hoje sabemos que os efeitos de lá para cá foram bastante perversos para a democracia.
Essas explosões aconteceram nos elos fracos da globalização? Como o movimento de 2013 poderia acontecer sem que ele levasse a expressões de ressentimento e à antipolítica?
Há traços particulares das jornadas de junho que levam a esse caminho. Não acho que estava predestinado. Eu vejo 2013 como uma perda gigante de oportunidade de transformar e reformar o sistema político brasileiro, embora não fosse uma demanda vocalizada pelos manifestantes. Mas era evidente que essa era a raiz da questão. A demanda local, a da tarifa, foi atendida. os poderes locais baixaram a tarifa em uma centena de cidades. A segunda fase, a da indignação generalizada, há também uma reposta do poder público que não havia tido em outros países, como na Espanha e na Primavera Árabe. Dilma Rousseff fez dois pronunciamentos nacionais legitimando os protestos. Ela se reuniu com o MPL. Naquele momento, a reforma política podia ter enfrentado a crise da representação. Mas era difícil fazer isso pelas mãos de quem as massas estavam contestando. Mesmo que o Poder Público desse a resposta mais eficiente às contestações, ela não seria aceita, pois o que havia era o rechaço à classe política.
Por que essa contestação não se refletiu na eleição de 2014? Dilma foi reeleita sem o surgimento de novos partidos, como na Espanha.
A rejeição era à classe política e ao sistema político. Evidentemente houve reflexo importante na reeleição da Dilma contra Aécio, com um resultado apertado. E foi a primeira vez que tivemos um resultado eleitoral contestado. Depois, em 2018 e em 2022 nós veríamos o agravamento desse processo. Esse resultado eleitoral reflete a amplitude da indignação e da contestação.
Os protestos trazem também a luta anticorrupção e sua resposta aos problemas: o salvacionismo. A antipolítica é condição necessária para o que foi conhecido depois como lavajatismo?
São duas coisas que se ligaram ao longo desses dez anos. Não há uma relação de causalidade, embora estejam próximas. A Lava Jato foi o único caminho, a única maneira institucional de se canalizar o sentimento antipolítico, a contestação do sistema político. A Lava Jato foi o processo que manteve o sistema político brasileiro acusado em todo esse período. A nova direita encontra em 2013 o espaço para se colocar e contestar o sistema político nas redes digitais. É assim que chegamos a 2018. Em 2018, com esse processo amadurecido, a nova direita tem uma única alternativa eleitoral que incorporava o projeto de implosão do sistema democrático brasileiro.
Organizar manifestações como em 2013 não é mais possível. Há limitações eleitorais e das redes para impulsionar material político nas redes. A senhora acha que hoje em dia é possível repetir um processo como aquele, mobilizando indignação e ressentimento por meio das redes?
Eu acredito que sim. Lá atrás era por meio do Facebook, mas hoje temos uma ferramenta que se mostra muito mais potente que é o WhatsApp e o Telegram: o aplicativo de mensagem instantânea. É o que assistimos no final do ano com a contestação dos resultados eleitorais e nos acampamento em frente aos quartéis. Eles tiveram caráter de convocação geral. A mesma lógica pode acontecer hoje. A gente vê uma efervescência por parte da sociedade e da participação social na política. Isso veio para ficar e é um ponto muito relevante de 2013. O ano marca a politização de uma parcela importante da sociedade e o surgimento de novos espaços de participação social. Um dos feitos de 2013 foi evidenciar a potência da pressão social.
O novo político que surge daí é o que tenta se comunicar com a multidão?
O que acontece na política é reflexo da sociabilidade da vida comum. Se na vida ela se dá por meio de redes sociais e nesse tipo de interação, a vida política também vai acontecer nesses canais. A sociedade civil construiu também caminhos para transformar a política tradicional. E um deles, que ficou bastante evidente em 2018, foi os movimentos de renovação política, que buscam transformar a política tradicional por dentro, já que não houve uma reforma política. Mas a renovação por si só não aprimora a vida institucional. É preciso qualificar essa renovação.
Qual o papel do Pacto pela Democracia nesse contexto?
O pacto tem origem em 2016 em um grupo que se intitulava Nova Democracia, que se inspirava na onda de contestações e no reconhecimento de que era preciso renovar o sistema político brasileiro em razão da crise de representatividade. Alguns atores da sociedade começaram a se reunir na época do impeachment de Dilma com a ideia de que, independentemente do que saísse daquele processo, o fato era que estávamos diante de fissuras muito profundas da democracia brasileira, seja da perspectiva institucional seja da perspectiva do tecido social. Era necessário encontrar formas de pensar, caminhar e construir essa nova democracia para reformas políticas. Esse era o grande foco em 2016. Alguns desses grupos se tornaram os movimentos de renovação política. A gente chega em 2018 e temos acontecimento graves, com a dificuldade do diálogo, com a intolerância grande. Então, esse grupo decidiu que não adiantava falar de uma nova democracia se ela estava ameaçada. Era preciso reforçar os pilares da sociedade democrática e fazer uma pacto pela democracia, muito mais do que uma nova democracia. O Pacto nasce ali, naquele contexto. A partir de 2019, com a vitória de Jair Bolsonaro, a gente passa a ser uma coalizão de defesa da democracia e de contenção da escalada autoritária. A coalizão hoje é composta por mais de 220 entidades da sociedade civil. O Pacto desde a origem se propõe a ser um espaço tão diverso quanto deve ser a democracia.