BRASÍLIA — Uma ação que questiona a recusa do Palácio do Planalto em revelar os gastos presidenciais com o chamado cartão corporativo –impondo sigilo à informação – está há um ano e meio parada no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O pedido de transparência foi apresentado pelo Estadão, que cobra o direito de os jornalistas do veículo terem acesso à descrição de como o presidente Jair Bolsonaro faz uso dos recursos públicos para fins pessoais e organizacionais. O valor dos gastos é publicizado pelo Portal da Transparência, mas a explicação sobre os produtos e serviços comprados é omitida.
Uma decisão do Supremo de novembro de 2019 derrubou o artigo do decreto militar que garantia pouca transparência às compras do presidente, mas mesmo assim o governo mantém os dados sob sigilo, ignorando a decisão judicial.
O Estadão moveu a ação contra a União em maio de 2020 após diversas recusas da Secretaria-Geral da Presidência da República a detalhar os gastos de Bolsonaro. Somente nos quatro primeiros meses do ano passado, a fatura presidencial atingiu a marca de R$ 3,76 milhões, segundo informações do Portal da Transparência. O montante representa um aumento de 98% em relação à média dos últimos cinco anos no mesmo período. Neste ano, os gastos presidenciais já somam R$ 15,26 milhões.
Apesar do interesse público em torno do caso, o desembargador federal Nery Junior, responsável pela ação, nem sequer apresentou o despacho inicial para deferir ou descartar o recurso apresentado pelo Estadão, em caráter de urgência, para ter acesso imediato aos gastos com cartão corporativo. O pedido do jornal segue, portanto, desde o dia 1º de junho de 2020 paralisado na terceira turma do TRF-3.
“Um assunto de tão óbvia urgência e de tão relevante interesse público merecia do Poder Judiciário uma resposta um pouco mais célere do que um ano e seis meses, ainda que liminar (provisória)”, afirma o advogado do Estadão Afranio Ferreira.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima que o tempo médio de tramitação dos processos nos Tribunais Regionais Federais é de 1 ano e 7 meses até a sentença, de acordo com o relatório “Justiça Em Números”, que reúne os principais dados e indicadores de produção do Poder Judiciário. No caso da ação do Estadão, o processo está parado na gaveta do desembargador Nery Junior há quase 1 ano e 6 meses.
O professor de processo civil Wallace Corbo, da Fundação Getulio Vargas, explica que recursos que tratam de decisões liminares, como o apresentado pelo Estadão, tendem a ser julgados no prazo de 3 a 10 meses, a depender do acervo de processos do órgão. Nesse caso, o relator da ação poderia expedir um despacho para atender o caráter de urgência da demanda e posteriormente submetê-lo ao colegiado para rever a decisão.
“Considerando que é um caso de ampla relevância política, e está no centro do debate da opacidade do governo Bolsonaro, seria importante que a justiça desse uma resposta ágil e compatível com a democracia”, afirma Corbo. “É problemático que diante de uma atuação equivocada, aparentemente, do governo federal, o Poder Judiciário não consiga dar uma resposta ágil a agentes importantes. A imprensa exerce uma função importante de controle social do poder público, que é essencial para a democracia. Essa demora é um entrave ao controle social e o poder público é um entrave ao funcionamento normal das instituições democráticas”.
Em setembro de 2020, o Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) encaminhou um parecer à Justiça Federal em defesa do detalhamento dos gastos com cartão corporativo pelo Palácio do Planalto. O órgão se manifestou a favor da procedência parcial da ação movida pelo Estadão, de modo que a Presidência da República levante o sigilo das informações e indique devidamente o tipo de compra, a data, o valor das transações e o CNPJ/razão social dos fornecedores. Para isso, é necessário que a descrição das movimentações comprovadamente não comprometam a segurança da Presidência da República.
“A Constituição nutriu um compromisso com a liberdade de informação, a publicização e a transparência das atividades estatais, de modo que o sigilo, quando referido no texto constitucional ou na legislação infraconstitucional, deve ser interpretado de forma restritiva, levando-se em conta a dimensão democrática do Estado brasileiro”, escreveu o procurador da República Andrey Borges de Mendonça.
A manifestação do procurador corrobora o voto de parte dos ministros do STF que, em novembro de 2019, derrubaram um artigo do decreto editado durante a ditadura militar que previa o sigilo dos gastos presidenciais. Por seis votos a cinco, a corte decidiu pela necessidade de ampla publicização das despesas públicas, novamente, desde que não afetem a segurança nacional e seja possível comprovar os riscos da divulgação, quando houver negativa às solicitações.
Procurado pela reportagem, o desembargador Nery Júnior não respondeu às perguntas encaminhadas ao seu gabinete até o momento da publicação.