O indeferimento de uma candidatura e a consequente perda de mandato com base na Lei da Ficha Limpa alcançam um universo restrito de políticos. O caso mais recente de aplicação da legislação após o resultado das urnas deu-se com a cassação do cargo de deputado federal de Deltan Dallagnol (Podemos-PR). Ao longo das últimas quatro eleições, apenas sete eleitos tiveram de deixar as cadeiras conquistadas em razão de uma decisão da Justiça Eleitoral.
O número que ilustra a excepcionalidade da situação de Dallagnol deriva de levantamento feito pelo Estadão a partir do cruzamento de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com o DivulgaCand, plataforma que também pertence à Corte. Em essência, a Lei da Ficha Limpa proíbe que políticos com condenações em órgãos colegiados possam disputar uma eleição.
Ao considerar os pleitos de 2016, 2018, 2020 e 2022 – dados disponíveis –, apenas 0,0006% dos 1.113.070 pedidos de registros de candidaturas foram barrados após um pleito. O impacto da Lei da Ficha Limpa, porém, é maior antes da disputa. No período, 4.603 candidatos foram impedidos de chegar às urnas com fundamento na legislação. Em termos percentuais, pode-se dizer que as regras vetaram 0,41% dos candidatos.
A atuação profilática da Lei da Ficha Limpa, em vigor desde 2010, é elogiada por especialistas. “Hoje, em todas as campanhas eleitorais, os candidatos afirmam que são ‘ficha limpa’. A lei promoveu um debate na sociedade, no sentido de analisar a vida pregressa do candidato, para saber o que ele fez”, diz Luciano Santos, advogado e coordenador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE). Santos também participou da construção da legislação, que se originou de um projeto de lei de iniciativa popular.
Luciano Santos, advogado e coordenador do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE)
Márlon Reis, ex-juiz eleitoral, advogado e principal idealizador da Lei da Ficha Limpa, avalia que “o número de pessoas que se lançam como candidatas no Brasil é muito alto”. Para ele, a lei tem cumprido com o propósito de retirar do jogo político os chamados “fichas sujas”. “A legislação anterior era muito permeável. Esses números são maiúsculos, se comparados com o que nós tínhamos antes”, afirma.
A cassação de Dallagnol, no entanto, é um ponto fora da curva. Ele é o único deputado federal que integra a lista de políticos eleitos que perderam o mandato após assumir o posto. Além do ex-procurador que coordenou a Operação Lava Jato em Curitiba, os outros seis casos são de prefeitos e vereadores distribuídos pelos Estados do Paraná, Espírito Santo, Rio Grande do Norte, Ceará e Amazonas.
Fernando Neisser, advogado e presidente da Comissão de Direito Eleitoral do Iasp
Em 2016, dois prefeitos, do Rio de Janeiro e São Paulo, foram enquadrados na Lei da Ficha Limpa enquanto ainda eram candidatos. Os dois, no entanto, foram eleitos e conseguiram assumir o mandato por meio de decisões liminares (provisórias) concedidas pela Justiça. Nas quatro eleições, ao todo 66 candidatos foram substituídos antes mesmo da eleição e as chapas pelas quais se lançaram saíram vitoriosas das urnas.
Críticas
Os números compilados pelo Estadão também ensejam críticas. O advogado e presidente da Comissão de Direito Eleitoral do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), Fernando Neisser, diz que o levantamento mostra que o endurecimento das punições não muda a realidade político-eleitoral.
“É uma tentativa, bem intencionada, sem dúvida, da sociedade e de alguns atores sociais, de encontrar respostas para problemas da política por meio da lei. É uma visão ingênua de achar que, aumentando penas e restrições, vamos ter uma política conduzida por pessoas que vão agir bem. Essa correlação não existe na prática”, afirma Neisser, que é doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP).
A cassação de Deltan
Para Neisser, a Lei da Ficha Limpa não mudou o perfil dos candidatos. “Não me parece que temos tido políticos melhores ou piores”, diz o advogado. No entanto, ele afirma respeitar a aplicação da legislação pela Justiça Eleitoral. “O Judiciário está cumprindo a lei e não tem outra opção. A responsabilidade é do Congresso Nacional, que aprovou a legislação.”
‘Tribunal político’
O nó do caso de Dallagnol, cuja candidatura foi indeferida por decisão unânime no TSE, é o fato de que, quando ele saiu do Ministério Público, não respondia a qualquer processo administrativo disciplinar (PAD), mas a sindicâncias e reclamações que poderiam ou não se transformar, mais tarde, em um PAD. O deputado defende a legalidade do registro, enquanto o TSE entendeu que ele fez uma “manobra capciosa” para se esquivar de acusações no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
Em reação, o deputado disse que foi cassado por “vingança”. “Hoje o sistema de corrupção está em festa”, disse ele, na quarta-feira, 16, um dia depois da tomada de decisão do TSE. “Perdi o meu mandato porque combati a corrupção. Hoje é um dia de festa para os corruptos e um dia de festa para Lula”, afirmou.
Walter Maierovitch, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo
O jurista Walter Maierovitch, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo, vê uma “interpretação extensiva” da lei no caso de Dallagnol. “Reclamações e representações são uma mera expectativa de processo disciplinar, não uma situação consolidada. A lei exige um processo administrativo. Então, se fez uma interpretação extensiva, em que se rasgou a Constituição”, afirma.
Apesar de se posicionar como crítico do trabalho de Dallagnol, Maierovitch diz que a decisão do TSE teve “odor de vingança”. Para ele, o tribunal “não foi técnico, mas político”.
Casos emblemáticos
Há outros casos de aplicação da Lei da Ficha Limpa com repercussão – um deles mesmo envolve o atual presidente. Em 2018, quando estava preso e condenado em duas instâncias, Luiz Inácio Lula da Silva não pôde concorrer. Na ocasião, foi substituído por Fernando Haddad, então candidato a vice, que assumiu a cabeça de chapa do PT.
Eduardo Cunha, que presidiu a Câmara durante o impeachment de Dilma Rousseff (PT), voltou a uma disputa eleitoral no ano passado, quando concorreu a uma cadeira da Casa pelo PTB de São Paulo. Ele enfrentou empecilhos por causa da Lei da Ficha Limpa. O registro da candidatura foi indeferido na primeira instância, mas o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) permitiu que ele disputasse, em uma votação na qual Cunha venceu por 4 a 2. Contudo, o ex-deputado foi derrotado nas urnas e não conseguiu se eleger.