À margem da História

Opinião|Brasil precisa de pacto pela floresta para não ferver de vez


No próximo dia 5, a Constituição Federal completa 35 anos. Carta avançou ao considerar a Amazônia brasileira um patrimônio nacional

Por Leonencio Nossa
Atualização:

É frase pronta dizer que há muita terra para pouco indígena no Brasil. Um percentual de 13% do território nas “mãos” de comunidades nativas parece algo fora da curva. Não é quando se tem consciência que essa área, ocupada por uma parte de 1,7 milhão de indígenas, ajuda a frear as mudanças climáticas, a alteração do regime de chuvas, o aumento da temperatura nas cidades e no campo.

As terras da União para usufruto dos indígenas podem ser extensas em regiões específicas da Amazônia. Em Mato Grosso do Sul, no entanto, milhares de guaranis vivem sem um palmo de chão, nas periferias dos municípios da fronteira.

Fotos aéreas mostram uma comunidade indígena isolada na Amazônia na terra indígena Yanomami em Roraima. Foto: Guilherme Gnipper Trevisan/Hutukara
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Uma vez demarcada, a terra indígena tem sua cobertura nativa preservada, o que é bom para quem vive mesmo fora dela. Há tempo, os pesquisadores Antônio Donato Nobre e José Marengo e o casal de ambientalistas Gérard e Margi Moss mostraram a importância dos “rios voadores”, cursos invisíveis de águas, que a floresta amazônica direciona para o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste.

Nesta semana, o País enfrentou uma onda de calor. No Sul, ocorreram enchentes. Na Amazônia, o grande rio e seus afluentes baixaram de nível, deixando ribeirinhos em situação de calamidade. Os cientistas citaram o fenômeno El Niño e outros fatores para a alteração do clima. A devastação das florestas era um deles. Foi se o tempo que discutir meio ambiente era algo deslocado na realidade já tão difícil dos brasileiros.

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A política de reconhecer territórios indígenas vem do tempo do Império, mas só nos 1960 o presidente Jânio Quadros assinou o primeiro decreto de demarcação, com a criação do Parque do Xingu.

Indígenas da tribo yawalapiti, durante a cerimônia do Quarup que homenageou o sertanista Orlando Villas Boas, no parque Xingu, Mato Grosso, em 2003 Foto: Dida Sampaio / Estadão

Em 1988, a Constituição garantiu aos indígenas o direito à vida e à terra de forma bem definida. As comunidades originárias ganharam um capítulo especial. A Carta determinou ainda que a floresta amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônios nacionais e sua utilização deve levar em conta a preservação. O Cerrado, bioma onde nascem oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras, ficou de fora, assim como a Caatinga. Nem tudo foi perfeito. Mas estava definido um modelo de país sustentável e de direitos iguais. A agricultura, a pecuária e a indústria dependem de grandes reservas de florestas para se manterem produtivas.

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Em oito anos de governo, o presidente Fernando Henrique Cardoso demarcou 145 territórios indígenas. Mas Fernando Collor foi quem mais se destacou, com o reconhecimento de 121 territórios em apenas dois anos de mandato. É de Collor a demarcação da Terra Yanomami e o início dos processos do Javari e da Raposa Serra do Sol. Na época, garimpeiros chegaram a acusar o sertanista Sydney Possuelo, braço operador dessas demarcações, de ter planos para se tornar um rei de um estado próprio na Amazônia. Mais de 30 anos depois, Possuelo leva uma vida de boletos no fim do mês como todos nós, ainda ri de tanta bobagem que ouviu e continua sua luta em defesa do País.

Sertanista Sydney Possuelo na tribo Korubo, em expedição em 2002.  Foto: Leonêncio Nossa / Estadão

A propósito, Lula demarcou 79 terras em seus oito primeiros anos de governo; José Sarney reconheceu 67 em cinco anos; Dilma Rousseff, apenas 21 em seis anos; e Itamar franco 18, em dois anos. Michel Temer e Jair Bolsonaro, que não fizeram demarcações. É uma causa sem bandeira ideológica definida.

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O Brasil tem experiência em pactos nacionais. Foi assim na derrubada da ditadura. Foi assim na consolidação da estabilidade da moeda. Foi assim também quando se decidiu que o desenvolvimento do interior se daria com contrapartidas, como a criação de um ministério e um órgão fiscalizador fortes na área do meio ambiente.

Nesse contexto, o agronegócio brasileiro se consolidou. Ao mesmo tempo que o setor ganhava grandes mercados, os governos Fernando Collor e Fernando Henrique mantinham um Ibama mais eficiente. O mundo reconheceu uma agricultura em expansão que topava um modelo de existência - ou um discurso - adaptado à necessidade de preservar fontes de água e matas.

Ainda nos primeiros governos do PT, uma parte do setor começou a desvalorizar o discurso de que era possível produzir com preservação ambiental e dar menos importância à diferença dos produtos agrícolas brasileiros em relação aos dos Estados Unidos e da Europa. Logo, o discurso ambiental virou conversa de “comunista” e “petista”, como se o País não tivesse vivido os anos de Dilma, a gerente do PAC que impôs hidrelétricas ineficientes na Amazônia.

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Mais da metade da vegetação nativa do Cerrado não existe mais. O regime das chuvas em Brasília e Goiânia se alterou. Nunca se sentiu tanto calor nas duas cidades planejadas para se viver em períodos de inverno e estiagem bem definidos. Mas foi a pequena São Romão, em Minas, que registrou, agora no final de setembro, uma temperatura de 43,5º C, um recorde do Cerrado e no País. No bioma onde vivem 25 milhões de brasileiros, os efeitos do avanço da fronteira agrícola, da pecuária e da mineração sem freios podem ser sentidos também com a queda da produção de grãos e a disputa cada vez mais acirrada entre produtores para instalar pivôs e aproveitar o que resta de água.

A decisão recente do Supremo Tribunal Federal de derrubar o marco temporal reforça a tese de que a demarcação pode ser considerada também uma política de preservação ambiental. O fim do marco não vai deixar nossas cidades mais frescas de uma hora para outra, não tornará mais célere e sem critérios o demorado e rigoroso rito de demarcação, não prejudicará um milímetro a pujança da agricultura. Mas mantém a Constituição, que completa 35 anos no próximo dia 5, como modelo possível de convivência entre Brasis desiguais e diferentes. Quando no futuro a poeira baixar, esse julgamento será tratado como um dos momentos mais relevantes da História da Corte.

A propósito, na bancada ruralista não apareceu ainda alguém com disposição de assumir o papel de interlocutor, de buscar consensos entre campo e cidades – cada vez mais calorentas. O agronegócio nunca precisou tanto de lideranças com discurso adaptado a exigências impostas pelo clima. O que não falta é “churrasqueiro” e “tocador de boiada”, gente que só quer incendiar o debate.

É frase pronta dizer que há muita terra para pouco indígena no Brasil. Um percentual de 13% do território nas “mãos” de comunidades nativas parece algo fora da curva. Não é quando se tem consciência que essa área, ocupada por uma parte de 1,7 milhão de indígenas, ajuda a frear as mudanças climáticas, a alteração do regime de chuvas, o aumento da temperatura nas cidades e no campo.

As terras da União para usufruto dos indígenas podem ser extensas em regiões específicas da Amazônia. Em Mato Grosso do Sul, no entanto, milhares de guaranis vivem sem um palmo de chão, nas periferias dos municípios da fronteira.

Fotos aéreas mostram uma comunidade indígena isolada na Amazônia na terra indígena Yanomami em Roraima. Foto: Guilherme Gnipper Trevisan/Hutukara

Uma vez demarcada, a terra indígena tem sua cobertura nativa preservada, o que é bom para quem vive mesmo fora dela. Há tempo, os pesquisadores Antônio Donato Nobre e José Marengo e o casal de ambientalistas Gérard e Margi Moss mostraram a importância dos “rios voadores”, cursos invisíveis de águas, que a floresta amazônica direciona para o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste.

Nesta semana, o País enfrentou uma onda de calor. No Sul, ocorreram enchentes. Na Amazônia, o grande rio e seus afluentes baixaram de nível, deixando ribeirinhos em situação de calamidade. Os cientistas citaram o fenômeno El Niño e outros fatores para a alteração do clima. A devastação das florestas era um deles. Foi se o tempo que discutir meio ambiente era algo deslocado na realidade já tão difícil dos brasileiros.

A política de reconhecer territórios indígenas vem do tempo do Império, mas só nos 1960 o presidente Jânio Quadros assinou o primeiro decreto de demarcação, com a criação do Parque do Xingu.

Indígenas da tribo yawalapiti, durante a cerimônia do Quarup que homenageou o sertanista Orlando Villas Boas, no parque Xingu, Mato Grosso, em 2003 Foto: Dida Sampaio / Estadão

Em 1988, a Constituição garantiu aos indígenas o direito à vida e à terra de forma bem definida. As comunidades originárias ganharam um capítulo especial. A Carta determinou ainda que a floresta amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônios nacionais e sua utilização deve levar em conta a preservação. O Cerrado, bioma onde nascem oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras, ficou de fora, assim como a Caatinga. Nem tudo foi perfeito. Mas estava definido um modelo de país sustentável e de direitos iguais. A agricultura, a pecuária e a indústria dependem de grandes reservas de florestas para se manterem produtivas.

Em oito anos de governo, o presidente Fernando Henrique Cardoso demarcou 145 territórios indígenas. Mas Fernando Collor foi quem mais se destacou, com o reconhecimento de 121 territórios em apenas dois anos de mandato. É de Collor a demarcação da Terra Yanomami e o início dos processos do Javari e da Raposa Serra do Sol. Na época, garimpeiros chegaram a acusar o sertanista Sydney Possuelo, braço operador dessas demarcações, de ter planos para se tornar um rei de um estado próprio na Amazônia. Mais de 30 anos depois, Possuelo leva uma vida de boletos no fim do mês como todos nós, ainda ri de tanta bobagem que ouviu e continua sua luta em defesa do País.

Sertanista Sydney Possuelo na tribo Korubo, em expedição em 2002.  Foto: Leonêncio Nossa / Estadão

A propósito, Lula demarcou 79 terras em seus oito primeiros anos de governo; José Sarney reconheceu 67 em cinco anos; Dilma Rousseff, apenas 21 em seis anos; e Itamar franco 18, em dois anos. Michel Temer e Jair Bolsonaro, que não fizeram demarcações. É uma causa sem bandeira ideológica definida.

O Brasil tem experiência em pactos nacionais. Foi assim na derrubada da ditadura. Foi assim na consolidação da estabilidade da moeda. Foi assim também quando se decidiu que o desenvolvimento do interior se daria com contrapartidas, como a criação de um ministério e um órgão fiscalizador fortes na área do meio ambiente.

Nesse contexto, o agronegócio brasileiro se consolidou. Ao mesmo tempo que o setor ganhava grandes mercados, os governos Fernando Collor e Fernando Henrique mantinham um Ibama mais eficiente. O mundo reconheceu uma agricultura em expansão que topava um modelo de existência - ou um discurso - adaptado à necessidade de preservar fontes de água e matas.

Ainda nos primeiros governos do PT, uma parte do setor começou a desvalorizar o discurso de que era possível produzir com preservação ambiental e dar menos importância à diferença dos produtos agrícolas brasileiros em relação aos dos Estados Unidos e da Europa. Logo, o discurso ambiental virou conversa de “comunista” e “petista”, como se o País não tivesse vivido os anos de Dilma, a gerente do PAC que impôs hidrelétricas ineficientes na Amazônia.

Mais da metade da vegetação nativa do Cerrado não existe mais. O regime das chuvas em Brasília e Goiânia se alterou. Nunca se sentiu tanto calor nas duas cidades planejadas para se viver em períodos de inverno e estiagem bem definidos. Mas foi a pequena São Romão, em Minas, que registrou, agora no final de setembro, uma temperatura de 43,5º C, um recorde do Cerrado e no País. No bioma onde vivem 25 milhões de brasileiros, os efeitos do avanço da fronteira agrícola, da pecuária e da mineração sem freios podem ser sentidos também com a queda da produção de grãos e a disputa cada vez mais acirrada entre produtores para instalar pivôs e aproveitar o que resta de água.

A decisão recente do Supremo Tribunal Federal de derrubar o marco temporal reforça a tese de que a demarcação pode ser considerada também uma política de preservação ambiental. O fim do marco não vai deixar nossas cidades mais frescas de uma hora para outra, não tornará mais célere e sem critérios o demorado e rigoroso rito de demarcação, não prejudicará um milímetro a pujança da agricultura. Mas mantém a Constituição, que completa 35 anos no próximo dia 5, como modelo possível de convivência entre Brasis desiguais e diferentes. Quando no futuro a poeira baixar, esse julgamento será tratado como um dos momentos mais relevantes da História da Corte.

A propósito, na bancada ruralista não apareceu ainda alguém com disposição de assumir o papel de interlocutor, de buscar consensos entre campo e cidades – cada vez mais calorentas. O agronegócio nunca precisou tanto de lideranças com discurso adaptado a exigências impostas pelo clima. O que não falta é “churrasqueiro” e “tocador de boiada”, gente que só quer incendiar o debate.

É frase pronta dizer que há muita terra para pouco indígena no Brasil. Um percentual de 13% do território nas “mãos” de comunidades nativas parece algo fora da curva. Não é quando se tem consciência que essa área, ocupada por uma parte de 1,7 milhão de indígenas, ajuda a frear as mudanças climáticas, a alteração do regime de chuvas, o aumento da temperatura nas cidades e no campo.

As terras da União para usufruto dos indígenas podem ser extensas em regiões específicas da Amazônia. Em Mato Grosso do Sul, no entanto, milhares de guaranis vivem sem um palmo de chão, nas periferias dos municípios da fronteira.

Fotos aéreas mostram uma comunidade indígena isolada na Amazônia na terra indígena Yanomami em Roraima. Foto: Guilherme Gnipper Trevisan/Hutukara

Uma vez demarcada, a terra indígena tem sua cobertura nativa preservada, o que é bom para quem vive mesmo fora dela. Há tempo, os pesquisadores Antônio Donato Nobre e José Marengo e o casal de ambientalistas Gérard e Margi Moss mostraram a importância dos “rios voadores”, cursos invisíveis de águas, que a floresta amazônica direciona para o Sul, o Sudeste e o Centro-Oeste.

Nesta semana, o País enfrentou uma onda de calor. No Sul, ocorreram enchentes. Na Amazônia, o grande rio e seus afluentes baixaram de nível, deixando ribeirinhos em situação de calamidade. Os cientistas citaram o fenômeno El Niño e outros fatores para a alteração do clima. A devastação das florestas era um deles. Foi se o tempo que discutir meio ambiente era algo deslocado na realidade já tão difícil dos brasileiros.

A política de reconhecer territórios indígenas vem do tempo do Império, mas só nos 1960 o presidente Jânio Quadros assinou o primeiro decreto de demarcação, com a criação do Parque do Xingu.

Indígenas da tribo yawalapiti, durante a cerimônia do Quarup que homenageou o sertanista Orlando Villas Boas, no parque Xingu, Mato Grosso, em 2003 Foto: Dida Sampaio / Estadão

Em 1988, a Constituição garantiu aos indígenas o direito à vida e à terra de forma bem definida. As comunidades originárias ganharam um capítulo especial. A Carta determinou ainda que a floresta amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônios nacionais e sua utilização deve levar em conta a preservação. O Cerrado, bioma onde nascem oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras, ficou de fora, assim como a Caatinga. Nem tudo foi perfeito. Mas estava definido um modelo de país sustentável e de direitos iguais. A agricultura, a pecuária e a indústria dependem de grandes reservas de florestas para se manterem produtivas.

Em oito anos de governo, o presidente Fernando Henrique Cardoso demarcou 145 territórios indígenas. Mas Fernando Collor foi quem mais se destacou, com o reconhecimento de 121 territórios em apenas dois anos de mandato. É de Collor a demarcação da Terra Yanomami e o início dos processos do Javari e da Raposa Serra do Sol. Na época, garimpeiros chegaram a acusar o sertanista Sydney Possuelo, braço operador dessas demarcações, de ter planos para se tornar um rei de um estado próprio na Amazônia. Mais de 30 anos depois, Possuelo leva uma vida de boletos no fim do mês como todos nós, ainda ri de tanta bobagem que ouviu e continua sua luta em defesa do País.

Sertanista Sydney Possuelo na tribo Korubo, em expedição em 2002.  Foto: Leonêncio Nossa / Estadão

A propósito, Lula demarcou 79 terras em seus oito primeiros anos de governo; José Sarney reconheceu 67 em cinco anos; Dilma Rousseff, apenas 21 em seis anos; e Itamar franco 18, em dois anos. Michel Temer e Jair Bolsonaro, que não fizeram demarcações. É uma causa sem bandeira ideológica definida.

O Brasil tem experiência em pactos nacionais. Foi assim na derrubada da ditadura. Foi assim na consolidação da estabilidade da moeda. Foi assim também quando se decidiu que o desenvolvimento do interior se daria com contrapartidas, como a criação de um ministério e um órgão fiscalizador fortes na área do meio ambiente.

Nesse contexto, o agronegócio brasileiro se consolidou. Ao mesmo tempo que o setor ganhava grandes mercados, os governos Fernando Collor e Fernando Henrique mantinham um Ibama mais eficiente. O mundo reconheceu uma agricultura em expansão que topava um modelo de existência - ou um discurso - adaptado à necessidade de preservar fontes de água e matas.

Ainda nos primeiros governos do PT, uma parte do setor começou a desvalorizar o discurso de que era possível produzir com preservação ambiental e dar menos importância à diferença dos produtos agrícolas brasileiros em relação aos dos Estados Unidos e da Europa. Logo, o discurso ambiental virou conversa de “comunista” e “petista”, como se o País não tivesse vivido os anos de Dilma, a gerente do PAC que impôs hidrelétricas ineficientes na Amazônia.

Mais da metade da vegetação nativa do Cerrado não existe mais. O regime das chuvas em Brasília e Goiânia se alterou. Nunca se sentiu tanto calor nas duas cidades planejadas para se viver em períodos de inverno e estiagem bem definidos. Mas foi a pequena São Romão, em Minas, que registrou, agora no final de setembro, uma temperatura de 43,5º C, um recorde do Cerrado e no País. No bioma onde vivem 25 milhões de brasileiros, os efeitos do avanço da fronteira agrícola, da pecuária e da mineração sem freios podem ser sentidos também com a queda da produção de grãos e a disputa cada vez mais acirrada entre produtores para instalar pivôs e aproveitar o que resta de água.

A decisão recente do Supremo Tribunal Federal de derrubar o marco temporal reforça a tese de que a demarcação pode ser considerada também uma política de preservação ambiental. O fim do marco não vai deixar nossas cidades mais frescas de uma hora para outra, não tornará mais célere e sem critérios o demorado e rigoroso rito de demarcação, não prejudicará um milímetro a pujança da agricultura. Mas mantém a Constituição, que completa 35 anos no próximo dia 5, como modelo possível de convivência entre Brasis desiguais e diferentes. Quando no futuro a poeira baixar, esse julgamento será tratado como um dos momentos mais relevantes da História da Corte.

A propósito, na bancada ruralista não apareceu ainda alguém com disposição de assumir o papel de interlocutor, de buscar consensos entre campo e cidades – cada vez mais calorentas. O agronegócio nunca precisou tanto de lideranças com discurso adaptado a exigências impostas pelo clima. O que não falta é “churrasqueiro” e “tocador de boiada”, gente que só quer incendiar o debate.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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