À margem da História

Opinião|Brasil recua ao tempo da República Velha com fechamento de alto-forno e incerteza em terra indígena


A valorização da indústria e a preservação da floresta parecem temas fora da agenda política e econômica

Por Leonencio Nossa
Atualização:

Na semana que está para terminar, houve a sensação de que o Brasil voltou ao tempo da pré-modernização. A siderúrgica Usiminas, um símbolo do tempo de Juscelino Kubitschek e da História da indústria, anunciou o desligamento temporário de um alto-forno em Ipatinga. Depois foi a vez do Congresso derrubar um veto presidencial e ressuscitar o marco temporal das demarcações que impede o reconhecimento de territórios indígenas.

Ao longo da República Velha, a economia brasileira se sustentou com as commodities da borracha e do café. A monocultura cafeeira tornou-se um pesadelo com a queda da Bolsa em 1929. A indústria respondia por menos de 15% do PIB. A partir do início da Segunda Guerra, o País começou a se urbanizar e se industrializar. Os saltos ocorreriam nos governos de Getúlio Vargas, de JK e da ditadura militar. Mas o campo e a floresta continuavam violentos, com matanças de aldeias inteiras por invasores de terra, madeireiros e garimpeiros, rotineiras nos ciclos extrativistas do passado mais remoto.

Nos anos 1980, a indústria chegou a representar 34% da economia, recuando para atuais 26%. Depois, as commodities de grãos voltaram a dar protagonismo à agricultura. Também veio a pecuária extensiva. Há mais de 50 anos, o número de brasileiros nas áreas urbanas ultrapassou o de moradores do campo. No decorrer do tempo, o parque industrial não se atualizou e, aos trancos e barrancos, direitos sociais e humanos foram fixados em leis.

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Altos-fornos da Usiminas em Ipatinga, Minas Gerais Foto: Sergio Roberto Oliveira/Estadão

Ao anunciar o desligamento do alto-forno, o presidente da Usiminas, Marcelo Chiara, fez um apelo à “defesa da produção brasileira” contra produtos estrangeiros. Não está sendo fácil concorrer com o aço da China – a propósito, o minério de ferro que abastece a competitiva indústria chinesa sai das montanhas mineiras e das serras paraenses - Itabira está distante 129 quilômetros por estrada da siderúrgica de Chiara. Há muitas nuances e explicações sobre o desligamento de um alto-forno. A empresa está para ligar um terceiro e não tem demanda para manter todos acesos. Porém, fica a dúvida se Ipatinga também vai virar um retrato na parede.

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Quando em seu segundo mandato o presidente Luiz Inácio Lula da Silva forçou a Vale a iniciar, em agosto de 2008, a construção de uma siderúrgica em Marabá, bem perto do Complexo de Carajás, os chineses ameaçaram um boicote à companhia. Foi uma pressão com requintes colonialistas, de uma “metrópole” que não permite uma colônia agregar valor aos seus bens.

Num discurso em Barcarena, Lula estimou que a Usina Aços Laminados do Pará, a Alpa, iria gerar 5.300 empregos diretos. A ideia da siderúrgica teve o efeito de aumentar a população da antiga Marabala em 50 mil pessoas quase de um dia para o outro, mas não saiu do papel.

O presidente avaliou que o Brasil não podia se dar ao “luxo” de virar um importador de aço. Ao falar sobre a siderúrgica que viraria lenda, ele fez referências a Juscelino e ao salto da indústria nos anos 1950 e 1960. “Eis que um dia surgiu um presidente da República chamado Juscelino Kubitschek”, disse, “na perspectiva de permitir que o desenvolvimento chegasse ao Norte do País”, acrescentou. Na sequência, o petista falou do crescimento chinês. “Aqui no Brasil, nós ficávamos olhando a China crescer e não investíamos. Vinte anos sem criar um alto-forno no Brasil. Vinte anos é uma geração.”

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O presidente Lula discursa ao lado do então presidente da Vale, Roger Agnelli e da então governadora Ana Julia Carepa, na cerimônia da terraplanagem da usina siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa), em Marabá (PA), em 2010 Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em 2010, o presidente foi a Marabá para o início da terraplenagem do lugar onde a siderúrgica seria construída. “Aos poucos, a Vale e o Estado do Pará não estão numa relação apenas de exportar minério para o chinês produzir brinquedo para vender para nós”, afirmou, empolgado. “Agora a gente quer produzir material de valor agregado aqui no Estado do Pará, ao invés de exportar apenas minério.”

A propósito, o presidente termina, neste mês de dezembro, o primeiro ano de seu terceiro mandato com a marca ilustrativa do desligamento de um alto-forno em Minas.

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Uma década depois de Lula visitar Marabá, um certo deputado federal com planos de sentar na cadeira de presidente esteve no sudeste do Pará, em 2018, para criticar a política de mineração, avisar que, se eleito, a Vale teria que se comprometer em gerar empregos e propor o fim dos órgãos ambiental e indígena. Em quatro anos de governo, Jair Bolsonaro só se esforçou para cumprir a última promessa.

Faz tempo que o Brasil entrou num processo de desindustrialização. Mas, aqui, a derrocada do parque produtivo não teve como causas apenas as mudanças de plataforma e tecnologia. O problema é complexo e profundo: o País deixou de apostar na indústria. Por consequência, o setor viu esvaziar sua força política. Basta ler o noticiário. Se fala apenas da bancada evangélica, das armas e do agronegócio.

A agonia do parque industrial brasileiro está visível a olho nu no interior e nas cidades. Quem faz o percurso de carro entre as duas maiores metrópoles brasileiras pode conferir, de um lado e outro da Avenida Brasil e da Via Dutra, chaminés sem fumaça, galpões fechados.

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Manifestação de indígenas na Praça dos Três Poderes a espera de julgamento do marco temporal no STF Foto: Wilton Junior/ Estadão

O Brasil rural parece que está de volta. Com o novo e velho tempo vem uma espécie de apartheid social que trata de forma diferente cidadãos dos centros urbanos e do campo e da floresta. Nos seus primórdios, a CLT, por exemplo, só valia para quem vivia na cidade. O trabalhador rural não era assistido pela legislação criada ainda no governo de Getúlio Vargas.

Na última quinta-feira, o País voltou a viver a experiência de que a lei não serve para todos. Numa votação esmagadora, deputados e senadores derrubaram o veto de Lula a um projeto que implantava a regra do marco temporal das demarcações de terras indígenas. Pela tese, comunidades indígenas só podem ter o reconhecimento de seu território se estavam nelas quando a Carta foi promulgada a 5 de outubro de 1988. Quem foi expulso da terra não tem direito de voltar.

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É a primeira situação desde que a Constituição entrou em vigor, há 35 anos, que se estabelece dois tipos de cidadãos. O bom senso e a civilização vão aguardar o Supremo Tribunal Federal manter a decisão tomada em setembro de que o marco temporal é inconstitucional.

O discurso de que há muita terra para pouco indígena é incorreto quando se sabe que o País precisa de mais florestas preservadas para se suportar tanto calor e mananciais de água para humanos e máquinas. E o discurso de que a causa indígena atravanca o progresso muito menos parte de uma premissa correta. O agronegócio sempre teve curva de crescimento no longo processo de demarcações feitas pelos governos democráticos, com o pleno funcionamento da Funai e do Ibama e a existência de um Ministério do Meio Ambiente sem as amarras e a asfixia que sofre hoje até mesmo de outras pastas. A grande mineração, por sua vez, também não perdeu espaço com as normas ambientais e de garantia de direitos indígenas.

A derrubada do veto do marco temporal no Congresso mostrou, mais uma vez, que as eleições legislativas de 2022 foram vencidas por uma direita que está longe de ser aquela que, em 1988, ajudou a aprovar um dos documentos mais inclusivos da História brasileira e que contribuiu para a consolidação de um arcabouço de garantias preservacionistas. Era o Brasil da preservação ambiental que vendia seus produtos lá fora - algo que não é mais.

O PL de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro votou em peso para derrubar o veto. Foram 90 votos pela volta do marco temporal. Mas estava lá o senador Romário, do mesmo partido, para fazer uma jogada isolada e votar pelo direito indígena à terra.

Embora em menor número, a direita moderada existe quando se percebe parlamentares que foram exceções nos partidos que votaram maciçamente para derrubar o veto. O União Brasil, que despejou 47 votos para derrubar o veto, teve quatro parlamentares que votaram pelos indígenas. No caso do PP, que deu 43 votos a favor do marco temporal, teve quatro que se posicionaram contra essa tese que o Supremo julgou inconstitucional.

Um diagnóstico da votação do marco temporal no plenário mostra também que 12 parlamentares do PT não apareceram no Congresso num momento decisivo para os povos indígenas. Quatro dos petistas são de regiões do agronegócio. E os demais talvez não foram incentivados pela liderança do governo e do partido a ir votar.

A agenda anti-indígena e a antiambiental no Congresso, com projetos para alargar o uso de venenos e engessar ainda mais a preservação, indica que vai ser preciso um esforço de diferentes setores e correntes políticas para colocar o País novamente no eixo do desenvolvimento mais humano, na dimensão do que foi a ofensiva pela democracia, nos anos 1970, e pela estabilidade da moeda, nos anos 1990. Talvez nem todos os setores produtivos e sociais avaliam que o caminho é mesmo derrubar a floresta e a indústria.

Na semana que está para terminar, houve a sensação de que o Brasil voltou ao tempo da pré-modernização. A siderúrgica Usiminas, um símbolo do tempo de Juscelino Kubitschek e da História da indústria, anunciou o desligamento temporário de um alto-forno em Ipatinga. Depois foi a vez do Congresso derrubar um veto presidencial e ressuscitar o marco temporal das demarcações que impede o reconhecimento de territórios indígenas.

Ao longo da República Velha, a economia brasileira se sustentou com as commodities da borracha e do café. A monocultura cafeeira tornou-se um pesadelo com a queda da Bolsa em 1929. A indústria respondia por menos de 15% do PIB. A partir do início da Segunda Guerra, o País começou a se urbanizar e se industrializar. Os saltos ocorreriam nos governos de Getúlio Vargas, de JK e da ditadura militar. Mas o campo e a floresta continuavam violentos, com matanças de aldeias inteiras por invasores de terra, madeireiros e garimpeiros, rotineiras nos ciclos extrativistas do passado mais remoto.

Nos anos 1980, a indústria chegou a representar 34% da economia, recuando para atuais 26%. Depois, as commodities de grãos voltaram a dar protagonismo à agricultura. Também veio a pecuária extensiva. Há mais de 50 anos, o número de brasileiros nas áreas urbanas ultrapassou o de moradores do campo. No decorrer do tempo, o parque industrial não se atualizou e, aos trancos e barrancos, direitos sociais e humanos foram fixados em leis.

Altos-fornos da Usiminas em Ipatinga, Minas Gerais Foto: Sergio Roberto Oliveira/Estadão

Ao anunciar o desligamento do alto-forno, o presidente da Usiminas, Marcelo Chiara, fez um apelo à “defesa da produção brasileira” contra produtos estrangeiros. Não está sendo fácil concorrer com o aço da China – a propósito, o minério de ferro que abastece a competitiva indústria chinesa sai das montanhas mineiras e das serras paraenses - Itabira está distante 129 quilômetros por estrada da siderúrgica de Chiara. Há muitas nuances e explicações sobre o desligamento de um alto-forno. A empresa está para ligar um terceiro e não tem demanda para manter todos acesos. Porém, fica a dúvida se Ipatinga também vai virar um retrato na parede.

Quando em seu segundo mandato o presidente Luiz Inácio Lula da Silva forçou a Vale a iniciar, em agosto de 2008, a construção de uma siderúrgica em Marabá, bem perto do Complexo de Carajás, os chineses ameaçaram um boicote à companhia. Foi uma pressão com requintes colonialistas, de uma “metrópole” que não permite uma colônia agregar valor aos seus bens.

Num discurso em Barcarena, Lula estimou que a Usina Aços Laminados do Pará, a Alpa, iria gerar 5.300 empregos diretos. A ideia da siderúrgica teve o efeito de aumentar a população da antiga Marabala em 50 mil pessoas quase de um dia para o outro, mas não saiu do papel.

O presidente avaliou que o Brasil não podia se dar ao “luxo” de virar um importador de aço. Ao falar sobre a siderúrgica que viraria lenda, ele fez referências a Juscelino e ao salto da indústria nos anos 1950 e 1960. “Eis que um dia surgiu um presidente da República chamado Juscelino Kubitschek”, disse, “na perspectiva de permitir que o desenvolvimento chegasse ao Norte do País”, acrescentou. Na sequência, o petista falou do crescimento chinês. “Aqui no Brasil, nós ficávamos olhando a China crescer e não investíamos. Vinte anos sem criar um alto-forno no Brasil. Vinte anos é uma geração.”

O presidente Lula discursa ao lado do então presidente da Vale, Roger Agnelli e da então governadora Ana Julia Carepa, na cerimônia da terraplanagem da usina siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa), em Marabá (PA), em 2010 Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em 2010, o presidente foi a Marabá para o início da terraplenagem do lugar onde a siderúrgica seria construída. “Aos poucos, a Vale e o Estado do Pará não estão numa relação apenas de exportar minério para o chinês produzir brinquedo para vender para nós”, afirmou, empolgado. “Agora a gente quer produzir material de valor agregado aqui no Estado do Pará, ao invés de exportar apenas minério.”

A propósito, o presidente termina, neste mês de dezembro, o primeiro ano de seu terceiro mandato com a marca ilustrativa do desligamento de um alto-forno em Minas.

Uma década depois de Lula visitar Marabá, um certo deputado federal com planos de sentar na cadeira de presidente esteve no sudeste do Pará, em 2018, para criticar a política de mineração, avisar que, se eleito, a Vale teria que se comprometer em gerar empregos e propor o fim dos órgãos ambiental e indígena. Em quatro anos de governo, Jair Bolsonaro só se esforçou para cumprir a última promessa.

Faz tempo que o Brasil entrou num processo de desindustrialização. Mas, aqui, a derrocada do parque produtivo não teve como causas apenas as mudanças de plataforma e tecnologia. O problema é complexo e profundo: o País deixou de apostar na indústria. Por consequência, o setor viu esvaziar sua força política. Basta ler o noticiário. Se fala apenas da bancada evangélica, das armas e do agronegócio.

A agonia do parque industrial brasileiro está visível a olho nu no interior e nas cidades. Quem faz o percurso de carro entre as duas maiores metrópoles brasileiras pode conferir, de um lado e outro da Avenida Brasil e da Via Dutra, chaminés sem fumaça, galpões fechados.

Manifestação de indígenas na Praça dos Três Poderes a espera de julgamento do marco temporal no STF Foto: Wilton Junior/ Estadão

O Brasil rural parece que está de volta. Com o novo e velho tempo vem uma espécie de apartheid social que trata de forma diferente cidadãos dos centros urbanos e do campo e da floresta. Nos seus primórdios, a CLT, por exemplo, só valia para quem vivia na cidade. O trabalhador rural não era assistido pela legislação criada ainda no governo de Getúlio Vargas.

Na última quinta-feira, o País voltou a viver a experiência de que a lei não serve para todos. Numa votação esmagadora, deputados e senadores derrubaram o veto de Lula a um projeto que implantava a regra do marco temporal das demarcações de terras indígenas. Pela tese, comunidades indígenas só podem ter o reconhecimento de seu território se estavam nelas quando a Carta foi promulgada a 5 de outubro de 1988. Quem foi expulso da terra não tem direito de voltar.

É a primeira situação desde que a Constituição entrou em vigor, há 35 anos, que se estabelece dois tipos de cidadãos. O bom senso e a civilização vão aguardar o Supremo Tribunal Federal manter a decisão tomada em setembro de que o marco temporal é inconstitucional.

O discurso de que há muita terra para pouco indígena é incorreto quando se sabe que o País precisa de mais florestas preservadas para se suportar tanto calor e mananciais de água para humanos e máquinas. E o discurso de que a causa indígena atravanca o progresso muito menos parte de uma premissa correta. O agronegócio sempre teve curva de crescimento no longo processo de demarcações feitas pelos governos democráticos, com o pleno funcionamento da Funai e do Ibama e a existência de um Ministério do Meio Ambiente sem as amarras e a asfixia que sofre hoje até mesmo de outras pastas. A grande mineração, por sua vez, também não perdeu espaço com as normas ambientais e de garantia de direitos indígenas.

A derrubada do veto do marco temporal no Congresso mostrou, mais uma vez, que as eleições legislativas de 2022 foram vencidas por uma direita que está longe de ser aquela que, em 1988, ajudou a aprovar um dos documentos mais inclusivos da História brasileira e que contribuiu para a consolidação de um arcabouço de garantias preservacionistas. Era o Brasil da preservação ambiental que vendia seus produtos lá fora - algo que não é mais.

O PL de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro votou em peso para derrubar o veto. Foram 90 votos pela volta do marco temporal. Mas estava lá o senador Romário, do mesmo partido, para fazer uma jogada isolada e votar pelo direito indígena à terra.

Embora em menor número, a direita moderada existe quando se percebe parlamentares que foram exceções nos partidos que votaram maciçamente para derrubar o veto. O União Brasil, que despejou 47 votos para derrubar o veto, teve quatro parlamentares que votaram pelos indígenas. No caso do PP, que deu 43 votos a favor do marco temporal, teve quatro que se posicionaram contra essa tese que o Supremo julgou inconstitucional.

Um diagnóstico da votação do marco temporal no plenário mostra também que 12 parlamentares do PT não apareceram no Congresso num momento decisivo para os povos indígenas. Quatro dos petistas são de regiões do agronegócio. E os demais talvez não foram incentivados pela liderança do governo e do partido a ir votar.

A agenda anti-indígena e a antiambiental no Congresso, com projetos para alargar o uso de venenos e engessar ainda mais a preservação, indica que vai ser preciso um esforço de diferentes setores e correntes políticas para colocar o País novamente no eixo do desenvolvimento mais humano, na dimensão do que foi a ofensiva pela democracia, nos anos 1970, e pela estabilidade da moeda, nos anos 1990. Talvez nem todos os setores produtivos e sociais avaliam que o caminho é mesmo derrubar a floresta e a indústria.

Na semana que está para terminar, houve a sensação de que o Brasil voltou ao tempo da pré-modernização. A siderúrgica Usiminas, um símbolo do tempo de Juscelino Kubitschek e da História da indústria, anunciou o desligamento temporário de um alto-forno em Ipatinga. Depois foi a vez do Congresso derrubar um veto presidencial e ressuscitar o marco temporal das demarcações que impede o reconhecimento de territórios indígenas.

Ao longo da República Velha, a economia brasileira se sustentou com as commodities da borracha e do café. A monocultura cafeeira tornou-se um pesadelo com a queda da Bolsa em 1929. A indústria respondia por menos de 15% do PIB. A partir do início da Segunda Guerra, o País começou a se urbanizar e se industrializar. Os saltos ocorreriam nos governos de Getúlio Vargas, de JK e da ditadura militar. Mas o campo e a floresta continuavam violentos, com matanças de aldeias inteiras por invasores de terra, madeireiros e garimpeiros, rotineiras nos ciclos extrativistas do passado mais remoto.

Nos anos 1980, a indústria chegou a representar 34% da economia, recuando para atuais 26%. Depois, as commodities de grãos voltaram a dar protagonismo à agricultura. Também veio a pecuária extensiva. Há mais de 50 anos, o número de brasileiros nas áreas urbanas ultrapassou o de moradores do campo. No decorrer do tempo, o parque industrial não se atualizou e, aos trancos e barrancos, direitos sociais e humanos foram fixados em leis.

Altos-fornos da Usiminas em Ipatinga, Minas Gerais Foto: Sergio Roberto Oliveira/Estadão

Ao anunciar o desligamento do alto-forno, o presidente da Usiminas, Marcelo Chiara, fez um apelo à “defesa da produção brasileira” contra produtos estrangeiros. Não está sendo fácil concorrer com o aço da China – a propósito, o minério de ferro que abastece a competitiva indústria chinesa sai das montanhas mineiras e das serras paraenses - Itabira está distante 129 quilômetros por estrada da siderúrgica de Chiara. Há muitas nuances e explicações sobre o desligamento de um alto-forno. A empresa está para ligar um terceiro e não tem demanda para manter todos acesos. Porém, fica a dúvida se Ipatinga também vai virar um retrato na parede.

Quando em seu segundo mandato o presidente Luiz Inácio Lula da Silva forçou a Vale a iniciar, em agosto de 2008, a construção de uma siderúrgica em Marabá, bem perto do Complexo de Carajás, os chineses ameaçaram um boicote à companhia. Foi uma pressão com requintes colonialistas, de uma “metrópole” que não permite uma colônia agregar valor aos seus bens.

Num discurso em Barcarena, Lula estimou que a Usina Aços Laminados do Pará, a Alpa, iria gerar 5.300 empregos diretos. A ideia da siderúrgica teve o efeito de aumentar a população da antiga Marabala em 50 mil pessoas quase de um dia para o outro, mas não saiu do papel.

O presidente avaliou que o Brasil não podia se dar ao “luxo” de virar um importador de aço. Ao falar sobre a siderúrgica que viraria lenda, ele fez referências a Juscelino e ao salto da indústria nos anos 1950 e 1960. “Eis que um dia surgiu um presidente da República chamado Juscelino Kubitschek”, disse, “na perspectiva de permitir que o desenvolvimento chegasse ao Norte do País”, acrescentou. Na sequência, o petista falou do crescimento chinês. “Aqui no Brasil, nós ficávamos olhando a China crescer e não investíamos. Vinte anos sem criar um alto-forno no Brasil. Vinte anos é uma geração.”

O presidente Lula discursa ao lado do então presidente da Vale, Roger Agnelli e da então governadora Ana Julia Carepa, na cerimônia da terraplanagem da usina siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa), em Marabá (PA), em 2010 Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em 2010, o presidente foi a Marabá para o início da terraplenagem do lugar onde a siderúrgica seria construída. “Aos poucos, a Vale e o Estado do Pará não estão numa relação apenas de exportar minério para o chinês produzir brinquedo para vender para nós”, afirmou, empolgado. “Agora a gente quer produzir material de valor agregado aqui no Estado do Pará, ao invés de exportar apenas minério.”

A propósito, o presidente termina, neste mês de dezembro, o primeiro ano de seu terceiro mandato com a marca ilustrativa do desligamento de um alto-forno em Minas.

Uma década depois de Lula visitar Marabá, um certo deputado federal com planos de sentar na cadeira de presidente esteve no sudeste do Pará, em 2018, para criticar a política de mineração, avisar que, se eleito, a Vale teria que se comprometer em gerar empregos e propor o fim dos órgãos ambiental e indígena. Em quatro anos de governo, Jair Bolsonaro só se esforçou para cumprir a última promessa.

Faz tempo que o Brasil entrou num processo de desindustrialização. Mas, aqui, a derrocada do parque produtivo não teve como causas apenas as mudanças de plataforma e tecnologia. O problema é complexo e profundo: o País deixou de apostar na indústria. Por consequência, o setor viu esvaziar sua força política. Basta ler o noticiário. Se fala apenas da bancada evangélica, das armas e do agronegócio.

A agonia do parque industrial brasileiro está visível a olho nu no interior e nas cidades. Quem faz o percurso de carro entre as duas maiores metrópoles brasileiras pode conferir, de um lado e outro da Avenida Brasil e da Via Dutra, chaminés sem fumaça, galpões fechados.

Manifestação de indígenas na Praça dos Três Poderes a espera de julgamento do marco temporal no STF Foto: Wilton Junior/ Estadão

O Brasil rural parece que está de volta. Com o novo e velho tempo vem uma espécie de apartheid social que trata de forma diferente cidadãos dos centros urbanos e do campo e da floresta. Nos seus primórdios, a CLT, por exemplo, só valia para quem vivia na cidade. O trabalhador rural não era assistido pela legislação criada ainda no governo de Getúlio Vargas.

Na última quinta-feira, o País voltou a viver a experiência de que a lei não serve para todos. Numa votação esmagadora, deputados e senadores derrubaram o veto de Lula a um projeto que implantava a regra do marco temporal das demarcações de terras indígenas. Pela tese, comunidades indígenas só podem ter o reconhecimento de seu território se estavam nelas quando a Carta foi promulgada a 5 de outubro de 1988. Quem foi expulso da terra não tem direito de voltar.

É a primeira situação desde que a Constituição entrou em vigor, há 35 anos, que se estabelece dois tipos de cidadãos. O bom senso e a civilização vão aguardar o Supremo Tribunal Federal manter a decisão tomada em setembro de que o marco temporal é inconstitucional.

O discurso de que há muita terra para pouco indígena é incorreto quando se sabe que o País precisa de mais florestas preservadas para se suportar tanto calor e mananciais de água para humanos e máquinas. E o discurso de que a causa indígena atravanca o progresso muito menos parte de uma premissa correta. O agronegócio sempre teve curva de crescimento no longo processo de demarcações feitas pelos governos democráticos, com o pleno funcionamento da Funai e do Ibama e a existência de um Ministério do Meio Ambiente sem as amarras e a asfixia que sofre hoje até mesmo de outras pastas. A grande mineração, por sua vez, também não perdeu espaço com as normas ambientais e de garantia de direitos indígenas.

A derrubada do veto do marco temporal no Congresso mostrou, mais uma vez, que as eleições legislativas de 2022 foram vencidas por uma direita que está longe de ser aquela que, em 1988, ajudou a aprovar um dos documentos mais inclusivos da História brasileira e que contribuiu para a consolidação de um arcabouço de garantias preservacionistas. Era o Brasil da preservação ambiental que vendia seus produtos lá fora - algo que não é mais.

O PL de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro votou em peso para derrubar o veto. Foram 90 votos pela volta do marco temporal. Mas estava lá o senador Romário, do mesmo partido, para fazer uma jogada isolada e votar pelo direito indígena à terra.

Embora em menor número, a direita moderada existe quando se percebe parlamentares que foram exceções nos partidos que votaram maciçamente para derrubar o veto. O União Brasil, que despejou 47 votos para derrubar o veto, teve quatro parlamentares que votaram pelos indígenas. No caso do PP, que deu 43 votos a favor do marco temporal, teve quatro que se posicionaram contra essa tese que o Supremo julgou inconstitucional.

Um diagnóstico da votação do marco temporal no plenário mostra também que 12 parlamentares do PT não apareceram no Congresso num momento decisivo para os povos indígenas. Quatro dos petistas são de regiões do agronegócio. E os demais talvez não foram incentivados pela liderança do governo e do partido a ir votar.

A agenda anti-indígena e a antiambiental no Congresso, com projetos para alargar o uso de venenos e engessar ainda mais a preservação, indica que vai ser preciso um esforço de diferentes setores e correntes políticas para colocar o País novamente no eixo do desenvolvimento mais humano, na dimensão do que foi a ofensiva pela democracia, nos anos 1970, e pela estabilidade da moeda, nos anos 1990. Talvez nem todos os setores produtivos e sociais avaliam que o caminho é mesmo derrubar a floresta e a indústria.

Na semana que está para terminar, houve a sensação de que o Brasil voltou ao tempo da pré-modernização. A siderúrgica Usiminas, um símbolo do tempo de Juscelino Kubitschek e da História da indústria, anunciou o desligamento temporário de um alto-forno em Ipatinga. Depois foi a vez do Congresso derrubar um veto presidencial e ressuscitar o marco temporal das demarcações que impede o reconhecimento de territórios indígenas.

Ao longo da República Velha, a economia brasileira se sustentou com as commodities da borracha e do café. A monocultura cafeeira tornou-se um pesadelo com a queda da Bolsa em 1929. A indústria respondia por menos de 15% do PIB. A partir do início da Segunda Guerra, o País começou a se urbanizar e se industrializar. Os saltos ocorreriam nos governos de Getúlio Vargas, de JK e da ditadura militar. Mas o campo e a floresta continuavam violentos, com matanças de aldeias inteiras por invasores de terra, madeireiros e garimpeiros, rotineiras nos ciclos extrativistas do passado mais remoto.

Nos anos 1980, a indústria chegou a representar 34% da economia, recuando para atuais 26%. Depois, as commodities de grãos voltaram a dar protagonismo à agricultura. Também veio a pecuária extensiva. Há mais de 50 anos, o número de brasileiros nas áreas urbanas ultrapassou o de moradores do campo. No decorrer do tempo, o parque industrial não se atualizou e, aos trancos e barrancos, direitos sociais e humanos foram fixados em leis.

Altos-fornos da Usiminas em Ipatinga, Minas Gerais Foto: Sergio Roberto Oliveira/Estadão

Ao anunciar o desligamento do alto-forno, o presidente da Usiminas, Marcelo Chiara, fez um apelo à “defesa da produção brasileira” contra produtos estrangeiros. Não está sendo fácil concorrer com o aço da China – a propósito, o minério de ferro que abastece a competitiva indústria chinesa sai das montanhas mineiras e das serras paraenses - Itabira está distante 129 quilômetros por estrada da siderúrgica de Chiara. Há muitas nuances e explicações sobre o desligamento de um alto-forno. A empresa está para ligar um terceiro e não tem demanda para manter todos acesos. Porém, fica a dúvida se Ipatinga também vai virar um retrato na parede.

Quando em seu segundo mandato o presidente Luiz Inácio Lula da Silva forçou a Vale a iniciar, em agosto de 2008, a construção de uma siderúrgica em Marabá, bem perto do Complexo de Carajás, os chineses ameaçaram um boicote à companhia. Foi uma pressão com requintes colonialistas, de uma “metrópole” que não permite uma colônia agregar valor aos seus bens.

Num discurso em Barcarena, Lula estimou que a Usina Aços Laminados do Pará, a Alpa, iria gerar 5.300 empregos diretos. A ideia da siderúrgica teve o efeito de aumentar a população da antiga Marabala em 50 mil pessoas quase de um dia para o outro, mas não saiu do papel.

O presidente avaliou que o Brasil não podia se dar ao “luxo” de virar um importador de aço. Ao falar sobre a siderúrgica que viraria lenda, ele fez referências a Juscelino e ao salto da indústria nos anos 1950 e 1960. “Eis que um dia surgiu um presidente da República chamado Juscelino Kubitschek”, disse, “na perspectiva de permitir que o desenvolvimento chegasse ao Norte do País”, acrescentou. Na sequência, o petista falou do crescimento chinês. “Aqui no Brasil, nós ficávamos olhando a China crescer e não investíamos. Vinte anos sem criar um alto-forno no Brasil. Vinte anos é uma geração.”

O presidente Lula discursa ao lado do então presidente da Vale, Roger Agnelli e da então governadora Ana Julia Carepa, na cerimônia da terraplanagem da usina siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa), em Marabá (PA), em 2010 Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em 2010, o presidente foi a Marabá para o início da terraplenagem do lugar onde a siderúrgica seria construída. “Aos poucos, a Vale e o Estado do Pará não estão numa relação apenas de exportar minério para o chinês produzir brinquedo para vender para nós”, afirmou, empolgado. “Agora a gente quer produzir material de valor agregado aqui no Estado do Pará, ao invés de exportar apenas minério.”

A propósito, o presidente termina, neste mês de dezembro, o primeiro ano de seu terceiro mandato com a marca ilustrativa do desligamento de um alto-forno em Minas.

Uma década depois de Lula visitar Marabá, um certo deputado federal com planos de sentar na cadeira de presidente esteve no sudeste do Pará, em 2018, para criticar a política de mineração, avisar que, se eleito, a Vale teria que se comprometer em gerar empregos e propor o fim dos órgãos ambiental e indígena. Em quatro anos de governo, Jair Bolsonaro só se esforçou para cumprir a última promessa.

Faz tempo que o Brasil entrou num processo de desindustrialização. Mas, aqui, a derrocada do parque produtivo não teve como causas apenas as mudanças de plataforma e tecnologia. O problema é complexo e profundo: o País deixou de apostar na indústria. Por consequência, o setor viu esvaziar sua força política. Basta ler o noticiário. Se fala apenas da bancada evangélica, das armas e do agronegócio.

A agonia do parque industrial brasileiro está visível a olho nu no interior e nas cidades. Quem faz o percurso de carro entre as duas maiores metrópoles brasileiras pode conferir, de um lado e outro da Avenida Brasil e da Via Dutra, chaminés sem fumaça, galpões fechados.

Manifestação de indígenas na Praça dos Três Poderes a espera de julgamento do marco temporal no STF Foto: Wilton Junior/ Estadão

O Brasil rural parece que está de volta. Com o novo e velho tempo vem uma espécie de apartheid social que trata de forma diferente cidadãos dos centros urbanos e do campo e da floresta. Nos seus primórdios, a CLT, por exemplo, só valia para quem vivia na cidade. O trabalhador rural não era assistido pela legislação criada ainda no governo de Getúlio Vargas.

Na última quinta-feira, o País voltou a viver a experiência de que a lei não serve para todos. Numa votação esmagadora, deputados e senadores derrubaram o veto de Lula a um projeto que implantava a regra do marco temporal das demarcações de terras indígenas. Pela tese, comunidades indígenas só podem ter o reconhecimento de seu território se estavam nelas quando a Carta foi promulgada a 5 de outubro de 1988. Quem foi expulso da terra não tem direito de voltar.

É a primeira situação desde que a Constituição entrou em vigor, há 35 anos, que se estabelece dois tipos de cidadãos. O bom senso e a civilização vão aguardar o Supremo Tribunal Federal manter a decisão tomada em setembro de que o marco temporal é inconstitucional.

O discurso de que há muita terra para pouco indígena é incorreto quando se sabe que o País precisa de mais florestas preservadas para se suportar tanto calor e mananciais de água para humanos e máquinas. E o discurso de que a causa indígena atravanca o progresso muito menos parte de uma premissa correta. O agronegócio sempre teve curva de crescimento no longo processo de demarcações feitas pelos governos democráticos, com o pleno funcionamento da Funai e do Ibama e a existência de um Ministério do Meio Ambiente sem as amarras e a asfixia que sofre hoje até mesmo de outras pastas. A grande mineração, por sua vez, também não perdeu espaço com as normas ambientais e de garantia de direitos indígenas.

A derrubada do veto do marco temporal no Congresso mostrou, mais uma vez, que as eleições legislativas de 2022 foram vencidas por uma direita que está longe de ser aquela que, em 1988, ajudou a aprovar um dos documentos mais inclusivos da História brasileira e que contribuiu para a consolidação de um arcabouço de garantias preservacionistas. Era o Brasil da preservação ambiental que vendia seus produtos lá fora - algo que não é mais.

O PL de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro votou em peso para derrubar o veto. Foram 90 votos pela volta do marco temporal. Mas estava lá o senador Romário, do mesmo partido, para fazer uma jogada isolada e votar pelo direito indígena à terra.

Embora em menor número, a direita moderada existe quando se percebe parlamentares que foram exceções nos partidos que votaram maciçamente para derrubar o veto. O União Brasil, que despejou 47 votos para derrubar o veto, teve quatro parlamentares que votaram pelos indígenas. No caso do PP, que deu 43 votos a favor do marco temporal, teve quatro que se posicionaram contra essa tese que o Supremo julgou inconstitucional.

Um diagnóstico da votação do marco temporal no plenário mostra também que 12 parlamentares do PT não apareceram no Congresso num momento decisivo para os povos indígenas. Quatro dos petistas são de regiões do agronegócio. E os demais talvez não foram incentivados pela liderança do governo e do partido a ir votar.

A agenda anti-indígena e a antiambiental no Congresso, com projetos para alargar o uso de venenos e engessar ainda mais a preservação, indica que vai ser preciso um esforço de diferentes setores e correntes políticas para colocar o País novamente no eixo do desenvolvimento mais humano, na dimensão do que foi a ofensiva pela democracia, nos anos 1970, e pela estabilidade da moeda, nos anos 1990. Talvez nem todos os setores produtivos e sociais avaliam que o caminho é mesmo derrubar a floresta e a indústria.

Na semana que está para terminar, houve a sensação de que o Brasil voltou ao tempo da pré-modernização. A siderúrgica Usiminas, um símbolo do tempo de Juscelino Kubitschek e da História da indústria, anunciou o desligamento temporário de um alto-forno em Ipatinga. Depois foi a vez do Congresso derrubar um veto presidencial e ressuscitar o marco temporal das demarcações que impede o reconhecimento de territórios indígenas.

Ao longo da República Velha, a economia brasileira se sustentou com as commodities da borracha e do café. A monocultura cafeeira tornou-se um pesadelo com a queda da Bolsa em 1929. A indústria respondia por menos de 15% do PIB. A partir do início da Segunda Guerra, o País começou a se urbanizar e se industrializar. Os saltos ocorreriam nos governos de Getúlio Vargas, de JK e da ditadura militar. Mas o campo e a floresta continuavam violentos, com matanças de aldeias inteiras por invasores de terra, madeireiros e garimpeiros, rotineiras nos ciclos extrativistas do passado mais remoto.

Nos anos 1980, a indústria chegou a representar 34% da economia, recuando para atuais 26%. Depois, as commodities de grãos voltaram a dar protagonismo à agricultura. Também veio a pecuária extensiva. Há mais de 50 anos, o número de brasileiros nas áreas urbanas ultrapassou o de moradores do campo. No decorrer do tempo, o parque industrial não se atualizou e, aos trancos e barrancos, direitos sociais e humanos foram fixados em leis.

Altos-fornos da Usiminas em Ipatinga, Minas Gerais Foto: Sergio Roberto Oliveira/Estadão

Ao anunciar o desligamento do alto-forno, o presidente da Usiminas, Marcelo Chiara, fez um apelo à “defesa da produção brasileira” contra produtos estrangeiros. Não está sendo fácil concorrer com o aço da China – a propósito, o minério de ferro que abastece a competitiva indústria chinesa sai das montanhas mineiras e das serras paraenses - Itabira está distante 129 quilômetros por estrada da siderúrgica de Chiara. Há muitas nuances e explicações sobre o desligamento de um alto-forno. A empresa está para ligar um terceiro e não tem demanda para manter todos acesos. Porém, fica a dúvida se Ipatinga também vai virar um retrato na parede.

Quando em seu segundo mandato o presidente Luiz Inácio Lula da Silva forçou a Vale a iniciar, em agosto de 2008, a construção de uma siderúrgica em Marabá, bem perto do Complexo de Carajás, os chineses ameaçaram um boicote à companhia. Foi uma pressão com requintes colonialistas, de uma “metrópole” que não permite uma colônia agregar valor aos seus bens.

Num discurso em Barcarena, Lula estimou que a Usina Aços Laminados do Pará, a Alpa, iria gerar 5.300 empregos diretos. A ideia da siderúrgica teve o efeito de aumentar a população da antiga Marabala em 50 mil pessoas quase de um dia para o outro, mas não saiu do papel.

O presidente avaliou que o Brasil não podia se dar ao “luxo” de virar um importador de aço. Ao falar sobre a siderúrgica que viraria lenda, ele fez referências a Juscelino e ao salto da indústria nos anos 1950 e 1960. “Eis que um dia surgiu um presidente da República chamado Juscelino Kubitschek”, disse, “na perspectiva de permitir que o desenvolvimento chegasse ao Norte do País”, acrescentou. Na sequência, o petista falou do crescimento chinês. “Aqui no Brasil, nós ficávamos olhando a China crescer e não investíamos. Vinte anos sem criar um alto-forno no Brasil. Vinte anos é uma geração.”

O presidente Lula discursa ao lado do então presidente da Vale, Roger Agnelli e da então governadora Ana Julia Carepa, na cerimônia da terraplanagem da usina siderúrgica Aços Laminados do Pará (Alpa), em Marabá (PA), em 2010 Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em 2010, o presidente foi a Marabá para o início da terraplenagem do lugar onde a siderúrgica seria construída. “Aos poucos, a Vale e o Estado do Pará não estão numa relação apenas de exportar minério para o chinês produzir brinquedo para vender para nós”, afirmou, empolgado. “Agora a gente quer produzir material de valor agregado aqui no Estado do Pará, ao invés de exportar apenas minério.”

A propósito, o presidente termina, neste mês de dezembro, o primeiro ano de seu terceiro mandato com a marca ilustrativa do desligamento de um alto-forno em Minas.

Uma década depois de Lula visitar Marabá, um certo deputado federal com planos de sentar na cadeira de presidente esteve no sudeste do Pará, em 2018, para criticar a política de mineração, avisar que, se eleito, a Vale teria que se comprometer em gerar empregos e propor o fim dos órgãos ambiental e indígena. Em quatro anos de governo, Jair Bolsonaro só se esforçou para cumprir a última promessa.

Faz tempo que o Brasil entrou num processo de desindustrialização. Mas, aqui, a derrocada do parque produtivo não teve como causas apenas as mudanças de plataforma e tecnologia. O problema é complexo e profundo: o País deixou de apostar na indústria. Por consequência, o setor viu esvaziar sua força política. Basta ler o noticiário. Se fala apenas da bancada evangélica, das armas e do agronegócio.

A agonia do parque industrial brasileiro está visível a olho nu no interior e nas cidades. Quem faz o percurso de carro entre as duas maiores metrópoles brasileiras pode conferir, de um lado e outro da Avenida Brasil e da Via Dutra, chaminés sem fumaça, galpões fechados.

Manifestação de indígenas na Praça dos Três Poderes a espera de julgamento do marco temporal no STF Foto: Wilton Junior/ Estadão

O Brasil rural parece que está de volta. Com o novo e velho tempo vem uma espécie de apartheid social que trata de forma diferente cidadãos dos centros urbanos e do campo e da floresta. Nos seus primórdios, a CLT, por exemplo, só valia para quem vivia na cidade. O trabalhador rural não era assistido pela legislação criada ainda no governo de Getúlio Vargas.

Na última quinta-feira, o País voltou a viver a experiência de que a lei não serve para todos. Numa votação esmagadora, deputados e senadores derrubaram o veto de Lula a um projeto que implantava a regra do marco temporal das demarcações de terras indígenas. Pela tese, comunidades indígenas só podem ter o reconhecimento de seu território se estavam nelas quando a Carta foi promulgada a 5 de outubro de 1988. Quem foi expulso da terra não tem direito de voltar.

É a primeira situação desde que a Constituição entrou em vigor, há 35 anos, que se estabelece dois tipos de cidadãos. O bom senso e a civilização vão aguardar o Supremo Tribunal Federal manter a decisão tomada em setembro de que o marco temporal é inconstitucional.

O discurso de que há muita terra para pouco indígena é incorreto quando se sabe que o País precisa de mais florestas preservadas para se suportar tanto calor e mananciais de água para humanos e máquinas. E o discurso de que a causa indígena atravanca o progresso muito menos parte de uma premissa correta. O agronegócio sempre teve curva de crescimento no longo processo de demarcações feitas pelos governos democráticos, com o pleno funcionamento da Funai e do Ibama e a existência de um Ministério do Meio Ambiente sem as amarras e a asfixia que sofre hoje até mesmo de outras pastas. A grande mineração, por sua vez, também não perdeu espaço com as normas ambientais e de garantia de direitos indígenas.

A derrubada do veto do marco temporal no Congresso mostrou, mais uma vez, que as eleições legislativas de 2022 foram vencidas por uma direita que está longe de ser aquela que, em 1988, ajudou a aprovar um dos documentos mais inclusivos da História brasileira e que contribuiu para a consolidação de um arcabouço de garantias preservacionistas. Era o Brasil da preservação ambiental que vendia seus produtos lá fora - algo que não é mais.

O PL de Valdemar Costa Neto e Jair Bolsonaro votou em peso para derrubar o veto. Foram 90 votos pela volta do marco temporal. Mas estava lá o senador Romário, do mesmo partido, para fazer uma jogada isolada e votar pelo direito indígena à terra.

Embora em menor número, a direita moderada existe quando se percebe parlamentares que foram exceções nos partidos que votaram maciçamente para derrubar o veto. O União Brasil, que despejou 47 votos para derrubar o veto, teve quatro parlamentares que votaram pelos indígenas. No caso do PP, que deu 43 votos a favor do marco temporal, teve quatro que se posicionaram contra essa tese que o Supremo julgou inconstitucional.

Um diagnóstico da votação do marco temporal no plenário mostra também que 12 parlamentares do PT não apareceram no Congresso num momento decisivo para os povos indígenas. Quatro dos petistas são de regiões do agronegócio. E os demais talvez não foram incentivados pela liderança do governo e do partido a ir votar.

A agenda anti-indígena e a antiambiental no Congresso, com projetos para alargar o uso de venenos e engessar ainda mais a preservação, indica que vai ser preciso um esforço de diferentes setores e correntes políticas para colocar o País novamente no eixo do desenvolvimento mais humano, na dimensão do que foi a ofensiva pela democracia, nos anos 1970, e pela estabilidade da moeda, nos anos 1990. Talvez nem todos os setores produtivos e sociais avaliam que o caminho é mesmo derrubar a floresta e a indústria.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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