Após sete meses de governo, o eleitorado tradicional do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não reclama de estelionato eleitoral. Nos últimos dias, o governo fez inclusive dois acenos de expressiva carga política e simbólica. Primeiro, anunciou um pacote de medidas de combate à violência e depois a Polícia Federal avançou na investigação dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes.
O interesse do governo em desmontar a política de armar a população, que tira a exclusividade das Forças Armadas e das polícias até de armas de alto calibre, e a elucidação de um crime político de repercussão internacional estava previsto nos prognósticos de uma terceira vitória de Lula em eleição presidencial. É o contraponto mínimo ao discurso contra a vida da gestão anterior.
Na semana, o que ninguém questionou é que, menos de 24 horas depois da PF fazer revelações sobre os assassinatos do Rio e quatro dias após o Ministério da Justiça anunciar ações de segurança pública, o governo enviou ao Congresso uma Medida Provisória para regularizar de vez a prática das apostas esportivas online, as bets. Não é uma liberação geral da jogatina, mas um empurrão para a abertura dos cassinos, bingos e caça-níqueis. Tanto que o lobby dos jogos na Câmara, liderada pelo presidente Arthur Lira (PP-AL), se movimenta para ampliar a abrangência da medida. Lira não precisaria mais gastar com viagens para Las Vegas.
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O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, argumenta que há um vácuo jurídico. O setor de apostas online é uma realidade e se escora em uma lei, ainda do governo Michel Temer, para atuar. Do jeito que está é uma várzea, sem juiz e regra para impedir empurrões e gols de mão.
Um argumento ainda mais atraente é que a medida aumentará a arrecadação e, por tabela, permitirá investimentos sociais. É um discurso de cem anos. No século 19, o barão de Drummond criou uma cartela com carinhas de animais para financiar o zoológico de Vila Isabel. Com o tempo, a ideia criada para melhorar a vida dos bichos se espalhou. Mas o zoológico foi fechado por falta de dinheiro. Agora, Haddad quer convencer que a mesma proposta vai resolver a vida de gente.
No passado, presidentes tomaram medidas drásticas contra jogos. Depois de derrotar o brigadeiro Eduardo Gomes na disputa presidencial, o general Eurico Gaspar Dutra pôs em prática, em 1946, projeto do adversário de tornar a jogatina ilegal. Ficou a versão de que Dona Santinha, a primeira-dama, uma senhora católica, convenceu o marido a acabar com a perversão. Os getulistas, por sua vez, disseram que Dutra só atendeu a um pedido da “vingativa” UDN e da Igreja. A História jogaria para a margem o fato de o Cassino da Urca e o Quitandinha, em Petrópolis, terem se tornado anexos do Palácio do Catete.
Os dois cassinos foram símbolos da cultura, com a apresentação de artistas, mas também das extravagâncias da elite do Estado Novo. Neles, acordos da República eram firmados, finalizados ou festejados. Alzira Vargas, a filha do presidente, era frequentadora. Bejo Vargas, o irmão, exibia sua violência nas mesas de bacará, dando socos, urinando nas pessoas e apontando a arma para quem criticava o governo.
Mais recentemente, em 2004, Lula tomou uma medida dura contra jogos para não ver seu primeiro governo se esfacelar. Após flertar com o discurso de financiamento de programas sociais, ele baixou uma MP para proibir bingos e caça-níqueis. Não quis ouvir o argumento que a área emprega muita gente. Era uma cartada numa crise política. Waldomiro Diniz, subchefe da Casa Civil, havia sido gravado pedindo propina, ainda em 2002, a um empresário do bicho. Assim como Dutra, Lula recebeu a lição que a turma da jogatina pode se ramificar fácil na estrutura de um governo.
A História ainda mais recente mostra impactos do setor das apostas na vida pública. No Rio, Estado hoje que lidera a lista dos assassinatos de lideranças e agentes públicos, as mortes na política ocorrem por conta de uma combinação que envolve milícia e jogo. A Baixada Fluminense, epicentro do crime político, com dez mortes nos últimos três anos, expõe laços visíveis entre o jogo e o assassinato.
O caso de Marielle ilustra com fatos a ligação entre o jogo e a criminalidade. Ronnie Lessa, o ex-policial acusado de ser o principal matador da vereadora, foi segurança da família Andrade, um dos principais clãs da contravenção. Ele era dono de 80 máquinas caça-níqueis na Barra da Tijuca.
A crônica política esqueceu de Adriano da Nóbrega, ex-policial que montou um escritório especializado em matar. A contravenção era seu principal cliente. Envolvido também no esquema das rachadinhas do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, recebeu homenagens do deputado federal Jair Bolsonaro na Câmara. Nóbrega foi morto pela polícia da Bahia em conjunto com a do Rio, em 2020, na época do governo de Rui Costa, hoje ministro da Casa Civil. Na versão oficial, ele morreu em combate. É mais certo dizer que a operação resultou na perda de uma vida e de um arquivo do crime de mando.
Nos quase 80 anos da ilegalidade da jogatina, o Estado não impediu a parceria do crime com o setor. Também é fato que as empresas de apostas online aproveitam a falta de uma regularização clara para não pagar imposto. Uma espiada na História, no entanto, mostra que o debate não é apenas tributário ou de pragmatismo.
A propósito, o governo não costuma escalar titulares do Esporte, da Saúde e dos Direitos Humanos em debates que vão muito além da área econômica. Ao menos em público, Ana Moser, Nísia Trindade e Sílvio de Almeida também não demonstraram interesse em discutir os impactos dos jogos em suas áreas. O foco hoje na Esplanada é não ser demitido pelo Centrão.