À margem da História

Opinião|Falsos brilhantes querem calar Elis Regina


Polarização une de elite uspiana a redes sociais na ofensiva de afastar maior cantora do País das novas gerações e impor o silenciamento de uma voz que nem a ditadura conseguiu

Por Leonencio Nossa
Atualização:

Tem muita gente influente disposta a convencer os brasileiros que o comercial da Kombi é uma mera publicidade predatória que não respeita nem a memória de quem partiu, nem o patrimônio musical. Há quem aposte num debate ideológico tendo como base argumentativa uma visão elitista ou única da história recente, do País ou das pessoas.

Nos últimos dias, a cantora Elis Regina voltou a esquentar a opinião pública por conta da sua aparição por meio de recursos de inteligência artificial em comercial da Volkswagen. Não se tratou de uma aparição qualquer. A artista surge ao lado da filha, Maria Rita, que a perdeu quando tinha apenas quatro anos Qualquer encontro assim causa emoção, marca. E era isso que pretendiam os diretores da campanha.

A imagem de Elis Regina foi recriada digitalmente para dueto com sua filha, Maria Rita, em comercial da Volkswagen Foto: Reprodução/Youtube/Volkswagen do Brasil
continua após a publicidade

É claro que cultura, publicidade e sentimentos imbricados tornam complicado um debate. Mas vale nesse caso da Kombi observar nuances, ter empatia, enxergar memórias encobertas. Não há apenas uma História, mas várias memórias. A Kombi pode não ser somente o passado de uma empresa e sua diretoria. Trabalhadores da fábrica de São Bernardo do Campo talvez não aceitem que os personagens mais importantes da História sejam os patrões - ainda que em papéis incômodos -, que eles, os peões, não sejam a Volks.

A memória afetiva trabalha com a mistura de fatos e situações muito antes do debate necessário, sem dúvida, sobre inteligência artificial.

Elis ensaia em São Paulo, em 1973. Ainda naquela década, ela participaria de um show para arrecadar fundos para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Foto: OSVALDO LUIZ/ESTADÃO. Foto: ESTADAO CONTEUDO / ESTADAO CONTEUDO
continua após a publicidade

O comercial pode tirar dos baús pessoais narrativas diversas. Um aposentado do ABC falará de Elis e da Volks quase como imagens indissolúveis de um épico e lembrará daquele show da cantora no estúdio da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, no distante 1º de maio de 1979, em apoio ao Sindicato dos Metalúrgicos.

Uma família irá recordar da Kombi que o pai usava para transportar verduras até a feira e, nos domingos, levar os filhos à praia.

Um homem buscará na estante o fusquinha vermelho com sirene de bombeiros que pertenceu ao menino. Os roteiros das lembranças atendem o gosto do freguês.

continua após a publicidade

Mas na academia e nas redes teve quem enxergou no comercial uma profanação da memória de Elis. Um colega na imprensa reclamou que a “alma do negócio” não respeita as demais. Eles não conseguiram ver a emoção de Maria Rita por cantar junto com a mãe, e que a Kombi torna-se um detalhe.

É preciso darmos uma volta pelo sertão do Brasil, sem pressa. Na viagem, pediremos licença para entrar na casa de um sitiante. Na sala, não será preciso solicitar um cafezinho. Com a xícara na mão e leveza, perguntaremos sobre o quadro na parede, entre estampas de santos. É o retrato de um ente querido, pintado de forma rudimentar, numa composição com imagens de vivos. Não é uma fotografia real – na visão de quem entrou pela primeira vez na residência.

Nesse país desconhecido, as famílias se acham no direito de peitar a morte, o destino, a tragédia. Insistem que o parente está nesta dimensão e não distante. Maria Rita, filha de uma celebridade, talvez também tenha o direito de fazer esse enfrentamento. O amor de uma filha não pode ser visto como algo distorcido.

continua após a publicidade

De repente, o Conar proibirá Elis de vender carros - ou voltar ao mundo dos vivos e contar sua história. Assim, nessa linha de argumento, muitos não saberão da artista fichada nos anos de chumbo e que depois cantou o hino nacional numa festividade dos militares, e surpreendeu a resistência. Nem da mulher que denunciou o sumiço do pianista Tenorinho na Argentina da ditadura. Também não se falará da voz de “O bêbado e o equilibrista” que saía das caixas de som dos aeroportos na chegada de Brizola e Arraes do exílio. Ainda será proibido contar o que Elis foi fazer no ABC.

Ciclo das greves dos metalúrgicos do ABC, em São Paulo, impulsionou redemocratização do País. FOTO REGINALDO MANENTE/AE Foto: AE / AE

Chico Buarque de Holanda escreveu a canção “Linha de Montagem” para o documentário homônimo, de 1982, sobre o ciclo de greves dos metalúrgicos na redemocratização do País. No documentário, a multinacional não aparece como protagonista. Quem aparece em destaque é o trabalhador da montadora. Daquele movimento sairia o maior líder popular da História do Brasil. No vídeo do show promovido pelo Sindicato dos Metalúrgicos, a cantora interpreta “O Rancho da Goiabada” junto com João Bosco.

continua após a publicidade

Não se trata de desqualificar o debate sobre limites da publicidade, mas levar em conta a memória afetiva. Também vale observar que clássicos da música, do cinema e da literatura costumam ser releituras.

Há tempo que a história oral e a memória coletiva afloram no debate acadêmico. A historiografia mais clássica nada perdeu.

A propósito, a elite uspiana não é de dar bola para historiadores e jornalistas que, Brasil afora, se dedicam às pesquisas sobre a ditadura no campo e na cidade – há exceções, claro. Quem é do ramo sabe disso. Muitos pesquisadores da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, nunca foram chamados para um cafezinho na universidade.

continua após a publicidade

Aliás, uma ressalva no debate é a situação das famílias dos mortos pela máquina da repressão, que nunca tiveram direito à memória. Elas e o País querem saber mais sobre a rede de apoios da ditadura.

Não faltam boas ações para esclarecer o elo de multinacionais ao regime autoritário. Em 2020, a Volkswagen teve de assinar Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal por envolvimento com a ditadura. Mais recentemente, um grupo de pesquisadores da Unifesp diagnosticou a postura de empresas no período.

Os choques entre camadas de memórias não encobrem histórias. A coexistência de variadas memórias nos ajudam a compreender o que somos. O despropósito é entrar num debate para vencer, para derrotar o olhar do outro que não é nem mesmo um contraponto.

Dogmas ideológicos, uso da cultura e macro política à parte, talvez não seja prudente deixar de observar a força da emoção provocada pela memória do outro ou da gente, individual, própria, confusa. Não é o caso de pedir respeito a uma família, mas à memória de uma família, o que é algo mais complexo.

Alguém tem dúvida que a polarização facilitará em 2026 a vida dos outsiders que têm apenas a credencial da esperteza de entender a memória afetiva do brasileiro? É hora de olharmos para a Kombi com problemas que vai, num domingo de sol, pelo acostamento, cheia de meninos dentro, pela margem da História.

Tem muita gente influente disposta a convencer os brasileiros que o comercial da Kombi é uma mera publicidade predatória que não respeita nem a memória de quem partiu, nem o patrimônio musical. Há quem aposte num debate ideológico tendo como base argumentativa uma visão elitista ou única da história recente, do País ou das pessoas.

Nos últimos dias, a cantora Elis Regina voltou a esquentar a opinião pública por conta da sua aparição por meio de recursos de inteligência artificial em comercial da Volkswagen. Não se tratou de uma aparição qualquer. A artista surge ao lado da filha, Maria Rita, que a perdeu quando tinha apenas quatro anos Qualquer encontro assim causa emoção, marca. E era isso que pretendiam os diretores da campanha.

A imagem de Elis Regina foi recriada digitalmente para dueto com sua filha, Maria Rita, em comercial da Volkswagen Foto: Reprodução/Youtube/Volkswagen do Brasil

É claro que cultura, publicidade e sentimentos imbricados tornam complicado um debate. Mas vale nesse caso da Kombi observar nuances, ter empatia, enxergar memórias encobertas. Não há apenas uma História, mas várias memórias. A Kombi pode não ser somente o passado de uma empresa e sua diretoria. Trabalhadores da fábrica de São Bernardo do Campo talvez não aceitem que os personagens mais importantes da História sejam os patrões - ainda que em papéis incômodos -, que eles, os peões, não sejam a Volks.

A memória afetiva trabalha com a mistura de fatos e situações muito antes do debate necessário, sem dúvida, sobre inteligência artificial.

Elis ensaia em São Paulo, em 1973. Ainda naquela década, ela participaria de um show para arrecadar fundos para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Foto: OSVALDO LUIZ/ESTADÃO. Foto: ESTADAO CONTEUDO / ESTADAO CONTEUDO

O comercial pode tirar dos baús pessoais narrativas diversas. Um aposentado do ABC falará de Elis e da Volks quase como imagens indissolúveis de um épico e lembrará daquele show da cantora no estúdio da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, no distante 1º de maio de 1979, em apoio ao Sindicato dos Metalúrgicos.

Uma família irá recordar da Kombi que o pai usava para transportar verduras até a feira e, nos domingos, levar os filhos à praia.

Um homem buscará na estante o fusquinha vermelho com sirene de bombeiros que pertenceu ao menino. Os roteiros das lembranças atendem o gosto do freguês.

Mas na academia e nas redes teve quem enxergou no comercial uma profanação da memória de Elis. Um colega na imprensa reclamou que a “alma do negócio” não respeita as demais. Eles não conseguiram ver a emoção de Maria Rita por cantar junto com a mãe, e que a Kombi torna-se um detalhe.

É preciso darmos uma volta pelo sertão do Brasil, sem pressa. Na viagem, pediremos licença para entrar na casa de um sitiante. Na sala, não será preciso solicitar um cafezinho. Com a xícara na mão e leveza, perguntaremos sobre o quadro na parede, entre estampas de santos. É o retrato de um ente querido, pintado de forma rudimentar, numa composição com imagens de vivos. Não é uma fotografia real – na visão de quem entrou pela primeira vez na residência.

Nesse país desconhecido, as famílias se acham no direito de peitar a morte, o destino, a tragédia. Insistem que o parente está nesta dimensão e não distante. Maria Rita, filha de uma celebridade, talvez também tenha o direito de fazer esse enfrentamento. O amor de uma filha não pode ser visto como algo distorcido.

De repente, o Conar proibirá Elis de vender carros - ou voltar ao mundo dos vivos e contar sua história. Assim, nessa linha de argumento, muitos não saberão da artista fichada nos anos de chumbo e que depois cantou o hino nacional numa festividade dos militares, e surpreendeu a resistência. Nem da mulher que denunciou o sumiço do pianista Tenorinho na Argentina da ditadura. Também não se falará da voz de “O bêbado e o equilibrista” que saía das caixas de som dos aeroportos na chegada de Brizola e Arraes do exílio. Ainda será proibido contar o que Elis foi fazer no ABC.

Ciclo das greves dos metalúrgicos do ABC, em São Paulo, impulsionou redemocratização do País. FOTO REGINALDO MANENTE/AE Foto: AE / AE

Chico Buarque de Holanda escreveu a canção “Linha de Montagem” para o documentário homônimo, de 1982, sobre o ciclo de greves dos metalúrgicos na redemocratização do País. No documentário, a multinacional não aparece como protagonista. Quem aparece em destaque é o trabalhador da montadora. Daquele movimento sairia o maior líder popular da História do Brasil. No vídeo do show promovido pelo Sindicato dos Metalúrgicos, a cantora interpreta “O Rancho da Goiabada” junto com João Bosco.

Não se trata de desqualificar o debate sobre limites da publicidade, mas levar em conta a memória afetiva. Também vale observar que clássicos da música, do cinema e da literatura costumam ser releituras.

Há tempo que a história oral e a memória coletiva afloram no debate acadêmico. A historiografia mais clássica nada perdeu.

A propósito, a elite uspiana não é de dar bola para historiadores e jornalistas que, Brasil afora, se dedicam às pesquisas sobre a ditadura no campo e na cidade – há exceções, claro. Quem é do ramo sabe disso. Muitos pesquisadores da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, nunca foram chamados para um cafezinho na universidade.

Aliás, uma ressalva no debate é a situação das famílias dos mortos pela máquina da repressão, que nunca tiveram direito à memória. Elas e o País querem saber mais sobre a rede de apoios da ditadura.

Não faltam boas ações para esclarecer o elo de multinacionais ao regime autoritário. Em 2020, a Volkswagen teve de assinar Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal por envolvimento com a ditadura. Mais recentemente, um grupo de pesquisadores da Unifesp diagnosticou a postura de empresas no período.

Os choques entre camadas de memórias não encobrem histórias. A coexistência de variadas memórias nos ajudam a compreender o que somos. O despropósito é entrar num debate para vencer, para derrotar o olhar do outro que não é nem mesmo um contraponto.

Dogmas ideológicos, uso da cultura e macro política à parte, talvez não seja prudente deixar de observar a força da emoção provocada pela memória do outro ou da gente, individual, própria, confusa. Não é o caso de pedir respeito a uma família, mas à memória de uma família, o que é algo mais complexo.

Alguém tem dúvida que a polarização facilitará em 2026 a vida dos outsiders que têm apenas a credencial da esperteza de entender a memória afetiva do brasileiro? É hora de olharmos para a Kombi com problemas que vai, num domingo de sol, pelo acostamento, cheia de meninos dentro, pela margem da História.

Tem muita gente influente disposta a convencer os brasileiros que o comercial da Kombi é uma mera publicidade predatória que não respeita nem a memória de quem partiu, nem o patrimônio musical. Há quem aposte num debate ideológico tendo como base argumentativa uma visão elitista ou única da história recente, do País ou das pessoas.

Nos últimos dias, a cantora Elis Regina voltou a esquentar a opinião pública por conta da sua aparição por meio de recursos de inteligência artificial em comercial da Volkswagen. Não se tratou de uma aparição qualquer. A artista surge ao lado da filha, Maria Rita, que a perdeu quando tinha apenas quatro anos Qualquer encontro assim causa emoção, marca. E era isso que pretendiam os diretores da campanha.

A imagem de Elis Regina foi recriada digitalmente para dueto com sua filha, Maria Rita, em comercial da Volkswagen Foto: Reprodução/Youtube/Volkswagen do Brasil

É claro que cultura, publicidade e sentimentos imbricados tornam complicado um debate. Mas vale nesse caso da Kombi observar nuances, ter empatia, enxergar memórias encobertas. Não há apenas uma História, mas várias memórias. A Kombi pode não ser somente o passado de uma empresa e sua diretoria. Trabalhadores da fábrica de São Bernardo do Campo talvez não aceitem que os personagens mais importantes da História sejam os patrões - ainda que em papéis incômodos -, que eles, os peões, não sejam a Volks.

A memória afetiva trabalha com a mistura de fatos e situações muito antes do debate necessário, sem dúvida, sobre inteligência artificial.

Elis ensaia em São Paulo, em 1973. Ainda naquela década, ela participaria de um show para arrecadar fundos para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Foto: OSVALDO LUIZ/ESTADÃO. Foto: ESTADAO CONTEUDO / ESTADAO CONTEUDO

O comercial pode tirar dos baús pessoais narrativas diversas. Um aposentado do ABC falará de Elis e da Volks quase como imagens indissolúveis de um épico e lembrará daquele show da cantora no estúdio da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, no distante 1º de maio de 1979, em apoio ao Sindicato dos Metalúrgicos.

Uma família irá recordar da Kombi que o pai usava para transportar verduras até a feira e, nos domingos, levar os filhos à praia.

Um homem buscará na estante o fusquinha vermelho com sirene de bombeiros que pertenceu ao menino. Os roteiros das lembranças atendem o gosto do freguês.

Mas na academia e nas redes teve quem enxergou no comercial uma profanação da memória de Elis. Um colega na imprensa reclamou que a “alma do negócio” não respeita as demais. Eles não conseguiram ver a emoção de Maria Rita por cantar junto com a mãe, e que a Kombi torna-se um detalhe.

É preciso darmos uma volta pelo sertão do Brasil, sem pressa. Na viagem, pediremos licença para entrar na casa de um sitiante. Na sala, não será preciso solicitar um cafezinho. Com a xícara na mão e leveza, perguntaremos sobre o quadro na parede, entre estampas de santos. É o retrato de um ente querido, pintado de forma rudimentar, numa composição com imagens de vivos. Não é uma fotografia real – na visão de quem entrou pela primeira vez na residência.

Nesse país desconhecido, as famílias se acham no direito de peitar a morte, o destino, a tragédia. Insistem que o parente está nesta dimensão e não distante. Maria Rita, filha de uma celebridade, talvez também tenha o direito de fazer esse enfrentamento. O amor de uma filha não pode ser visto como algo distorcido.

De repente, o Conar proibirá Elis de vender carros - ou voltar ao mundo dos vivos e contar sua história. Assim, nessa linha de argumento, muitos não saberão da artista fichada nos anos de chumbo e que depois cantou o hino nacional numa festividade dos militares, e surpreendeu a resistência. Nem da mulher que denunciou o sumiço do pianista Tenorinho na Argentina da ditadura. Também não se falará da voz de “O bêbado e o equilibrista” que saía das caixas de som dos aeroportos na chegada de Brizola e Arraes do exílio. Ainda será proibido contar o que Elis foi fazer no ABC.

Ciclo das greves dos metalúrgicos do ABC, em São Paulo, impulsionou redemocratização do País. FOTO REGINALDO MANENTE/AE Foto: AE / AE

Chico Buarque de Holanda escreveu a canção “Linha de Montagem” para o documentário homônimo, de 1982, sobre o ciclo de greves dos metalúrgicos na redemocratização do País. No documentário, a multinacional não aparece como protagonista. Quem aparece em destaque é o trabalhador da montadora. Daquele movimento sairia o maior líder popular da História do Brasil. No vídeo do show promovido pelo Sindicato dos Metalúrgicos, a cantora interpreta “O Rancho da Goiabada” junto com João Bosco.

Não se trata de desqualificar o debate sobre limites da publicidade, mas levar em conta a memória afetiva. Também vale observar que clássicos da música, do cinema e da literatura costumam ser releituras.

Há tempo que a história oral e a memória coletiva afloram no debate acadêmico. A historiografia mais clássica nada perdeu.

A propósito, a elite uspiana não é de dar bola para historiadores e jornalistas que, Brasil afora, se dedicam às pesquisas sobre a ditadura no campo e na cidade – há exceções, claro. Quem é do ramo sabe disso. Muitos pesquisadores da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, nunca foram chamados para um cafezinho na universidade.

Aliás, uma ressalva no debate é a situação das famílias dos mortos pela máquina da repressão, que nunca tiveram direito à memória. Elas e o País querem saber mais sobre a rede de apoios da ditadura.

Não faltam boas ações para esclarecer o elo de multinacionais ao regime autoritário. Em 2020, a Volkswagen teve de assinar Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal por envolvimento com a ditadura. Mais recentemente, um grupo de pesquisadores da Unifesp diagnosticou a postura de empresas no período.

Os choques entre camadas de memórias não encobrem histórias. A coexistência de variadas memórias nos ajudam a compreender o que somos. O despropósito é entrar num debate para vencer, para derrotar o olhar do outro que não é nem mesmo um contraponto.

Dogmas ideológicos, uso da cultura e macro política à parte, talvez não seja prudente deixar de observar a força da emoção provocada pela memória do outro ou da gente, individual, própria, confusa. Não é o caso de pedir respeito a uma família, mas à memória de uma família, o que é algo mais complexo.

Alguém tem dúvida que a polarização facilitará em 2026 a vida dos outsiders que têm apenas a credencial da esperteza de entender a memória afetiva do brasileiro? É hora de olharmos para a Kombi com problemas que vai, num domingo de sol, pelo acostamento, cheia de meninos dentro, pela margem da História.

Tem muita gente influente disposta a convencer os brasileiros que o comercial da Kombi é uma mera publicidade predatória que não respeita nem a memória de quem partiu, nem o patrimônio musical. Há quem aposte num debate ideológico tendo como base argumentativa uma visão elitista ou única da história recente, do País ou das pessoas.

Nos últimos dias, a cantora Elis Regina voltou a esquentar a opinião pública por conta da sua aparição por meio de recursos de inteligência artificial em comercial da Volkswagen. Não se tratou de uma aparição qualquer. A artista surge ao lado da filha, Maria Rita, que a perdeu quando tinha apenas quatro anos Qualquer encontro assim causa emoção, marca. E era isso que pretendiam os diretores da campanha.

A imagem de Elis Regina foi recriada digitalmente para dueto com sua filha, Maria Rita, em comercial da Volkswagen Foto: Reprodução/Youtube/Volkswagen do Brasil

É claro que cultura, publicidade e sentimentos imbricados tornam complicado um debate. Mas vale nesse caso da Kombi observar nuances, ter empatia, enxergar memórias encobertas. Não há apenas uma História, mas várias memórias. A Kombi pode não ser somente o passado de uma empresa e sua diretoria. Trabalhadores da fábrica de São Bernardo do Campo talvez não aceitem que os personagens mais importantes da História sejam os patrões - ainda que em papéis incômodos -, que eles, os peões, não sejam a Volks.

A memória afetiva trabalha com a mistura de fatos e situações muito antes do debate necessário, sem dúvida, sobre inteligência artificial.

Elis ensaia em São Paulo, em 1973. Ainda naquela década, ela participaria de um show para arrecadar fundos para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Foto: OSVALDO LUIZ/ESTADÃO. Foto: ESTADAO CONTEUDO / ESTADAO CONTEUDO

O comercial pode tirar dos baús pessoais narrativas diversas. Um aposentado do ABC falará de Elis e da Volks quase como imagens indissolúveis de um épico e lembrará daquele show da cantora no estúdio da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, no distante 1º de maio de 1979, em apoio ao Sindicato dos Metalúrgicos.

Uma família irá recordar da Kombi que o pai usava para transportar verduras até a feira e, nos domingos, levar os filhos à praia.

Um homem buscará na estante o fusquinha vermelho com sirene de bombeiros que pertenceu ao menino. Os roteiros das lembranças atendem o gosto do freguês.

Mas na academia e nas redes teve quem enxergou no comercial uma profanação da memória de Elis. Um colega na imprensa reclamou que a “alma do negócio” não respeita as demais. Eles não conseguiram ver a emoção de Maria Rita por cantar junto com a mãe, e que a Kombi torna-se um detalhe.

É preciso darmos uma volta pelo sertão do Brasil, sem pressa. Na viagem, pediremos licença para entrar na casa de um sitiante. Na sala, não será preciso solicitar um cafezinho. Com a xícara na mão e leveza, perguntaremos sobre o quadro na parede, entre estampas de santos. É o retrato de um ente querido, pintado de forma rudimentar, numa composição com imagens de vivos. Não é uma fotografia real – na visão de quem entrou pela primeira vez na residência.

Nesse país desconhecido, as famílias se acham no direito de peitar a morte, o destino, a tragédia. Insistem que o parente está nesta dimensão e não distante. Maria Rita, filha de uma celebridade, talvez também tenha o direito de fazer esse enfrentamento. O amor de uma filha não pode ser visto como algo distorcido.

De repente, o Conar proibirá Elis de vender carros - ou voltar ao mundo dos vivos e contar sua história. Assim, nessa linha de argumento, muitos não saberão da artista fichada nos anos de chumbo e que depois cantou o hino nacional numa festividade dos militares, e surpreendeu a resistência. Nem da mulher que denunciou o sumiço do pianista Tenorinho na Argentina da ditadura. Também não se falará da voz de “O bêbado e o equilibrista” que saía das caixas de som dos aeroportos na chegada de Brizola e Arraes do exílio. Ainda será proibido contar o que Elis foi fazer no ABC.

Ciclo das greves dos metalúrgicos do ABC, em São Paulo, impulsionou redemocratização do País. FOTO REGINALDO MANENTE/AE Foto: AE / AE

Chico Buarque de Holanda escreveu a canção “Linha de Montagem” para o documentário homônimo, de 1982, sobre o ciclo de greves dos metalúrgicos na redemocratização do País. No documentário, a multinacional não aparece como protagonista. Quem aparece em destaque é o trabalhador da montadora. Daquele movimento sairia o maior líder popular da História do Brasil. No vídeo do show promovido pelo Sindicato dos Metalúrgicos, a cantora interpreta “O Rancho da Goiabada” junto com João Bosco.

Não se trata de desqualificar o debate sobre limites da publicidade, mas levar em conta a memória afetiva. Também vale observar que clássicos da música, do cinema e da literatura costumam ser releituras.

Há tempo que a história oral e a memória coletiva afloram no debate acadêmico. A historiografia mais clássica nada perdeu.

A propósito, a elite uspiana não é de dar bola para historiadores e jornalistas que, Brasil afora, se dedicam às pesquisas sobre a ditadura no campo e na cidade – há exceções, claro. Quem é do ramo sabe disso. Muitos pesquisadores da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, nunca foram chamados para um cafezinho na universidade.

Aliás, uma ressalva no debate é a situação das famílias dos mortos pela máquina da repressão, que nunca tiveram direito à memória. Elas e o País querem saber mais sobre a rede de apoios da ditadura.

Não faltam boas ações para esclarecer o elo de multinacionais ao regime autoritário. Em 2020, a Volkswagen teve de assinar Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal por envolvimento com a ditadura. Mais recentemente, um grupo de pesquisadores da Unifesp diagnosticou a postura de empresas no período.

Os choques entre camadas de memórias não encobrem histórias. A coexistência de variadas memórias nos ajudam a compreender o que somos. O despropósito é entrar num debate para vencer, para derrotar o olhar do outro que não é nem mesmo um contraponto.

Dogmas ideológicos, uso da cultura e macro política à parte, talvez não seja prudente deixar de observar a força da emoção provocada pela memória do outro ou da gente, individual, própria, confusa. Não é o caso de pedir respeito a uma família, mas à memória de uma família, o que é algo mais complexo.

Alguém tem dúvida que a polarização facilitará em 2026 a vida dos outsiders que têm apenas a credencial da esperteza de entender a memória afetiva do brasileiro? É hora de olharmos para a Kombi com problemas que vai, num domingo de sol, pelo acostamento, cheia de meninos dentro, pela margem da História.

Tem muita gente influente disposta a convencer os brasileiros que o comercial da Kombi é uma mera publicidade predatória que não respeita nem a memória de quem partiu, nem o patrimônio musical. Há quem aposte num debate ideológico tendo como base argumentativa uma visão elitista ou única da história recente, do País ou das pessoas.

Nos últimos dias, a cantora Elis Regina voltou a esquentar a opinião pública por conta da sua aparição por meio de recursos de inteligência artificial em comercial da Volkswagen. Não se tratou de uma aparição qualquer. A artista surge ao lado da filha, Maria Rita, que a perdeu quando tinha apenas quatro anos Qualquer encontro assim causa emoção, marca. E era isso que pretendiam os diretores da campanha.

A imagem de Elis Regina foi recriada digitalmente para dueto com sua filha, Maria Rita, em comercial da Volkswagen Foto: Reprodução/Youtube/Volkswagen do Brasil

É claro que cultura, publicidade e sentimentos imbricados tornam complicado um debate. Mas vale nesse caso da Kombi observar nuances, ter empatia, enxergar memórias encobertas. Não há apenas uma História, mas várias memórias. A Kombi pode não ser somente o passado de uma empresa e sua diretoria. Trabalhadores da fábrica de São Bernardo do Campo talvez não aceitem que os personagens mais importantes da História sejam os patrões - ainda que em papéis incômodos -, que eles, os peões, não sejam a Volks.

A memória afetiva trabalha com a mistura de fatos e situações muito antes do debate necessário, sem dúvida, sobre inteligência artificial.

Elis ensaia em São Paulo, em 1973. Ainda naquela década, ela participaria de um show para arrecadar fundos para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Foto: OSVALDO LUIZ/ESTADÃO. Foto: ESTADAO CONTEUDO / ESTADAO CONTEUDO

O comercial pode tirar dos baús pessoais narrativas diversas. Um aposentado do ABC falará de Elis e da Volks quase como imagens indissolúveis de um épico e lembrará daquele show da cantora no estúdio da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, no distante 1º de maio de 1979, em apoio ao Sindicato dos Metalúrgicos.

Uma família irá recordar da Kombi que o pai usava para transportar verduras até a feira e, nos domingos, levar os filhos à praia.

Um homem buscará na estante o fusquinha vermelho com sirene de bombeiros que pertenceu ao menino. Os roteiros das lembranças atendem o gosto do freguês.

Mas na academia e nas redes teve quem enxergou no comercial uma profanação da memória de Elis. Um colega na imprensa reclamou que a “alma do negócio” não respeita as demais. Eles não conseguiram ver a emoção de Maria Rita por cantar junto com a mãe, e que a Kombi torna-se um detalhe.

É preciso darmos uma volta pelo sertão do Brasil, sem pressa. Na viagem, pediremos licença para entrar na casa de um sitiante. Na sala, não será preciso solicitar um cafezinho. Com a xícara na mão e leveza, perguntaremos sobre o quadro na parede, entre estampas de santos. É o retrato de um ente querido, pintado de forma rudimentar, numa composição com imagens de vivos. Não é uma fotografia real – na visão de quem entrou pela primeira vez na residência.

Nesse país desconhecido, as famílias se acham no direito de peitar a morte, o destino, a tragédia. Insistem que o parente está nesta dimensão e não distante. Maria Rita, filha de uma celebridade, talvez também tenha o direito de fazer esse enfrentamento. O amor de uma filha não pode ser visto como algo distorcido.

De repente, o Conar proibirá Elis de vender carros - ou voltar ao mundo dos vivos e contar sua história. Assim, nessa linha de argumento, muitos não saberão da artista fichada nos anos de chumbo e que depois cantou o hino nacional numa festividade dos militares, e surpreendeu a resistência. Nem da mulher que denunciou o sumiço do pianista Tenorinho na Argentina da ditadura. Também não se falará da voz de “O bêbado e o equilibrista” que saía das caixas de som dos aeroportos na chegada de Brizola e Arraes do exílio. Ainda será proibido contar o que Elis foi fazer no ABC.

Ciclo das greves dos metalúrgicos do ABC, em São Paulo, impulsionou redemocratização do País. FOTO REGINALDO MANENTE/AE Foto: AE / AE

Chico Buarque de Holanda escreveu a canção “Linha de Montagem” para o documentário homônimo, de 1982, sobre o ciclo de greves dos metalúrgicos na redemocratização do País. No documentário, a multinacional não aparece como protagonista. Quem aparece em destaque é o trabalhador da montadora. Daquele movimento sairia o maior líder popular da História do Brasil. No vídeo do show promovido pelo Sindicato dos Metalúrgicos, a cantora interpreta “O Rancho da Goiabada” junto com João Bosco.

Não se trata de desqualificar o debate sobre limites da publicidade, mas levar em conta a memória afetiva. Também vale observar que clássicos da música, do cinema e da literatura costumam ser releituras.

Há tempo que a história oral e a memória coletiva afloram no debate acadêmico. A historiografia mais clássica nada perdeu.

A propósito, a elite uspiana não é de dar bola para historiadores e jornalistas que, Brasil afora, se dedicam às pesquisas sobre a ditadura no campo e na cidade – há exceções, claro. Quem é do ramo sabe disso. Muitos pesquisadores da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, nunca foram chamados para um cafezinho na universidade.

Aliás, uma ressalva no debate é a situação das famílias dos mortos pela máquina da repressão, que nunca tiveram direito à memória. Elas e o País querem saber mais sobre a rede de apoios da ditadura.

Não faltam boas ações para esclarecer o elo de multinacionais ao regime autoritário. Em 2020, a Volkswagen teve de assinar Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Federal por envolvimento com a ditadura. Mais recentemente, um grupo de pesquisadores da Unifesp diagnosticou a postura de empresas no período.

Os choques entre camadas de memórias não encobrem histórias. A coexistência de variadas memórias nos ajudam a compreender o que somos. O despropósito é entrar num debate para vencer, para derrotar o olhar do outro que não é nem mesmo um contraponto.

Dogmas ideológicos, uso da cultura e macro política à parte, talvez não seja prudente deixar de observar a força da emoção provocada pela memória do outro ou da gente, individual, própria, confusa. Não é o caso de pedir respeito a uma família, mas à memória de uma família, o que é algo mais complexo.

Alguém tem dúvida que a polarização facilitará em 2026 a vida dos outsiders que têm apenas a credencial da esperteza de entender a memória afetiva do brasileiro? É hora de olharmos para a Kombi com problemas que vai, num domingo de sol, pelo acostamento, cheia de meninos dentro, pela margem da História.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.