À margem da História

Opinião|Genoino é vítima da polarização estimulada inclusive por Lula


Na política ou na vida comum, pouco importam as explicações de quem cometeu possível deslize; a cultura violenta do ‘print’ e dos linchamentos virtuais ignora trajetórias pessoais de defesa da moderação e do diálogo

Por Leonencio Nossa
Atualização:

Aos 24 anos, o estudante cearense José Genoino Netos chegava ao Araguaia para atuar na guerrilha comandada pelo judeu Maurício Grabois. Na mata do sudeste paraense, Geraldo, codinome do novo integrante do movimento, se passava por sitiante. A ideia do grupo era, na concepção maoísta, chegar ao poder a partir do campo. Os registros históricos indicam que ele sempre manteve o respeito e a fidelidade ao comandante-chefe.

A história de Genoino na luta armada terminou antes da guerra na floresta amazônica começar. Ele foi preso em abril de 1972 por um delegado local quando se deslocava para avisar companheiros da chegada da tropa – ao longo do tempo, agentes do Exército disputariam a fama de quem prendeu Genoino. Era o início da primeira de três campanhas das Forças Armadas para acabar com os focos guerrilheiros. Ele não viu os demais integrantes da guerrilha serem capturados e executados pelos militares depois de rendidos. Mas conheceria, nas prisões de Marabá, Brasília e São Paulo, a pior face da humanidade: a tortura.

José Genoino durante debate na Fundação Perseu Abramo, São Paulo, em 2019; preso na ditadura, foi um dos fundadores do PT Foto: Zé Carlos Barreta/Foto Arena - 05/08/2019
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Quando saiu da cadeia, em 1977, passou a dar aulas de História em cursinho pré-vestibular em São Paulo. Foi nessa época que tomou uma atitude que revoltou dirigentes do PCdoB, a legenda que organizou a guerrilha. Ele entendeu que era preciso fazer uma reflexão sobre a luta armada.

Foi além. De ônibus, percorreu o Brasil para contar às famílias dos companheiros do Araguaia que seus filhos tinham morrido. Lideranças do partido mantinham a versão de que a guerrilha continuava viva. Os militares, por sua vez, afirmavam que nunca houve conflito na selva.

José Genoíno, algemado no meio da selva, na guerrilha do Araguaia, em 1972 Foto: Acervo O Globo
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Genoino participou da fundação do PT. Em 1982, foi eleito deputado federal. No Congresso, enfrentou tanto a direita radical quanto a esquerda extremista. A História jamais esqueceu dos discursos de uma senadora petista que gritava: “dedo duro” do Araguaia. Era uma mentira. Quando o guerrilheiro prestou depoimento aos militares, ainda em 1972, o então Centro de Informações do Exército já tinha um álbum com as fotografias dos que ainda estavam na mata.

Em tempo de fogo amigo, um advogado muito ligado aos dirigentes do PT perambulava pelas redações de revistas para tentar emplacar um “dossiê” contra Genoino no tempo da guerrilha. Estava interessado no espólio que o parlamentar tinha construído em São Paulo.

José Genoino participou da Assembleia Constituinte de 1987 e 1988. Na fotografia, ele está de terno claro logo atrás do presidente, o deputado Ulysses Guimarães Foto: Agência Senado
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O parlamentar nordestino sempre sorridente insistiu em construir pontes entre sindicatos, empresários, militares. Durante e depois da Assembleia Constituinte, as Forças Armadas tinham nele um aliado impensável na busca de recursos para a manutenção dos quartéis. Num tempo em que a esquerda enfrentava derrotas no campo nacional, ele personalizou a moderação, o equilíbrio político, a busca do diálogo.

Nos anos 1990, José Genoino era o principal líder da Democracia Radical, corrente moderada do PT que defendia a construção de consensos com setores ao centro. A primeira vitória presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, com o empresário José Alencar como vice, provou que ele estava certo. Não por acaso, naquele mesmo ano, Genoino chegou ao segundo turno na disputa pelo governo de São Paulo, deixando o direitista Paulo Maluf na terceira posição.

Genoino durante caminhada em São Bernardo na campanha de Lula em 2002, com Itamar Franco, José Alencar e Luiz Marinho Foto: J.F.Diorio/Estadão
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Com Lula no poder, Genoino obteve como prêmio de consolação a presidência do PT, que àquela altura tinha a estrutura montada por José Dirceu. Mais afeito à vida parlamentar e com histórico de corrente minoritária no PT, Genoino encontrou dificuldades no dia a dia da estrutura partidária. Em dado momento, acabou assinando empréstimo considerado ilegal, para justificar despesas da campanha nacional de 2002 que ele nem sequer participou.

A defesa afirmou que ele não acompanhou o empréstimo feito ao Banco Rural e assinou porque era o presidente do partido. O empréstimo com a assinatura de Genoino impactou na carreira política do moderado petista, mas não impediu a reeleição de Lula ou as vitórias de Dilma Rousseff nos anos seguintes. O ex-parlamentar nunca deixou de morar num pequeno sobrado no Butantã, na Zona Oeste de São Paulo. Não ficou rico com a política.

A assinatura de Genoino foi o motivo apresentado pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, para condenar o ex-parlamentar, de quem havia sido assessor jurídico na Liderança do PT nos anos 1990. Foi a grande chance de Toffoli tentar mostrar que não era um juiz com carteirinha do PT. Ele usou Genoino para isso. Mais tarde o ministro admitiu que tinha consciência de que Genoino era “inocente”. “Todavia, ele havia assinado o contrato de financiamento”, argumentou.

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Em novembro de 2013, após a decretação da prisão, Genoino se entregou à Polícia Federal. Passou meses em regime fechado. Pela segunda vez, enfrentou a cadeia com dignidade, mas seguramente saiu dela mais entristecido e convencido de que os anos de moderado e construtor de consensos foram ignorados. A extinção da punibilidade veio em 2020. Ele tinha sido transformado em um “mensaleiro”, alvo de memes e xingamentos em passeatas de grupos com a camisa da seleção brasileira.

O então senador Antonio Carlos Magalhães e o então presidente do PT, José Genoino, em Brasília. Genoino mantinha ligação com lideranças da direita Foto: Dida Sampaio/Estadão
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A polarização e o radicalismo querem, agora, transformar o democrata Genoino em um antissemita. Isso não é verdade, e não deve ser naturalizado. Foi o caso que, no sábado passado, ao participar de uma live, Genoino fez um comentário crítico a Israel. Sugeriu “a ideia de boicote” a “determinadas empresas de judeus”. Ele sofreu linchamento nas redes sociais por parte de militantes de grupos extremistas de direita.

O comentário no âmbito do conflito na Palestina foi infeliz, avaliaram mesmo pessoas próximas dele. Nestes tempos em que todo discurso gera uma explosão de engajamento, a fala de um político deve ser sempre mais bem pensada. Pela História, ele deveria fazer um pedido de desculpas, avaliam. Contudo, uma fala não pode justificar o linchamento do ex-parlamentar. Se Genoino optou nos dias atuais por um comportamento diferente da sua imagem mais tradicional, pode ser um caso a se lamentar. Agora, associá-lo ao que ele sempre condenou é incorreto.

O monitoramento implacável de qualquer situação que possa relativizar o ocorrido na Segunda Guerra é importante. O próprio Genoino soltou nota para rebater a acusação de uma entidade judaica de que era antissemita. “Não sou e nunca fui. Repudio, também, qualquer tipo de preconceito contra o povo judeu e defendo a existência de dois estados”, disse. No tempo do conflito sem fim, entretanto, o outro lado pouco importa. A explicação nada vale quando o linchamento já começou.

É a cultura do “print”. Quantas vezes você, leitor, leu alguém escrever que fulano não escapa pois o print é “eterno”. Ora, o que deveria valer é a posição contextualizada ou corrigida do indivíduo, a posição pensada, avaliada, e não uma frase no calor da hora, numa live, numa discussão de redes sociais. Mas aí estão os extremistas para julgar e condenar alguém apenas por uma declaração ou posicionamento. Eles defendem a violência.

O caso serve de alerta para aqueles que estimulam o confronto. O País cansou da visão de mundo do “nós contra eles”, estimulada na década passada por Lula, levada ao extremo por setores dos mais diferentes campos ideológicos. O ódio ao outro venceu a eleição de 2018, virou marca do mandato de Jair Bolsonaro e continua assombrando a vida pública.

A violência está na antipolítica, no regime autoritário, nas palavras que machucam no dia a dia, nos julgamentos precipitados, no ciúme entre integrantes de uma mesma legenda, nas classificações raivosas, seja na vida política, seja no cotidiano comum. A violência está na postura do jovem ministro do atual governo que, diante das críticas, troca a serenidade por declarações que banalizam a palavra fascismo. Está presente também nas redes formadas pelas militâncias da esquerda e da direita para atacar e linchar. A violência está no uso da História para apagar personagens do presente.

É possível que Genoino ache que foi punido tantas vezes exatamente por defender um meio termo. Talvez por isso tenha exagerado na declaração. Porém, linchá-lo verbalmente nada ajuda no combate ao radicalismo e à irracionalidade.

Genoino foi um guerrilheiro que não chegou a entrar em combate, um moderado rejeitado pelos moderados, um petista criticado por petistas, um presidente do PT que assumiu erros do antecessor. Preso como ladrão sem ter roubado. O antissemitismo não será combatido transformando um moderado em antissemita. Crítica é válida; linchamento, não.

Aos 24 anos, o estudante cearense José Genoino Netos chegava ao Araguaia para atuar na guerrilha comandada pelo judeu Maurício Grabois. Na mata do sudeste paraense, Geraldo, codinome do novo integrante do movimento, se passava por sitiante. A ideia do grupo era, na concepção maoísta, chegar ao poder a partir do campo. Os registros históricos indicam que ele sempre manteve o respeito e a fidelidade ao comandante-chefe.

A história de Genoino na luta armada terminou antes da guerra na floresta amazônica começar. Ele foi preso em abril de 1972 por um delegado local quando se deslocava para avisar companheiros da chegada da tropa – ao longo do tempo, agentes do Exército disputariam a fama de quem prendeu Genoino. Era o início da primeira de três campanhas das Forças Armadas para acabar com os focos guerrilheiros. Ele não viu os demais integrantes da guerrilha serem capturados e executados pelos militares depois de rendidos. Mas conheceria, nas prisões de Marabá, Brasília e São Paulo, a pior face da humanidade: a tortura.

José Genoino durante debate na Fundação Perseu Abramo, São Paulo, em 2019; preso na ditadura, foi um dos fundadores do PT Foto: Zé Carlos Barreta/Foto Arena - 05/08/2019

Quando saiu da cadeia, em 1977, passou a dar aulas de História em cursinho pré-vestibular em São Paulo. Foi nessa época que tomou uma atitude que revoltou dirigentes do PCdoB, a legenda que organizou a guerrilha. Ele entendeu que era preciso fazer uma reflexão sobre a luta armada.

Foi além. De ônibus, percorreu o Brasil para contar às famílias dos companheiros do Araguaia que seus filhos tinham morrido. Lideranças do partido mantinham a versão de que a guerrilha continuava viva. Os militares, por sua vez, afirmavam que nunca houve conflito na selva.

José Genoíno, algemado no meio da selva, na guerrilha do Araguaia, em 1972 Foto: Acervo O Globo

Genoino participou da fundação do PT. Em 1982, foi eleito deputado federal. No Congresso, enfrentou tanto a direita radical quanto a esquerda extremista. A História jamais esqueceu dos discursos de uma senadora petista que gritava: “dedo duro” do Araguaia. Era uma mentira. Quando o guerrilheiro prestou depoimento aos militares, ainda em 1972, o então Centro de Informações do Exército já tinha um álbum com as fotografias dos que ainda estavam na mata.

Em tempo de fogo amigo, um advogado muito ligado aos dirigentes do PT perambulava pelas redações de revistas para tentar emplacar um “dossiê” contra Genoino no tempo da guerrilha. Estava interessado no espólio que o parlamentar tinha construído em São Paulo.

José Genoino participou da Assembleia Constituinte de 1987 e 1988. Na fotografia, ele está de terno claro logo atrás do presidente, o deputado Ulysses Guimarães Foto: Agência Senado

O parlamentar nordestino sempre sorridente insistiu em construir pontes entre sindicatos, empresários, militares. Durante e depois da Assembleia Constituinte, as Forças Armadas tinham nele um aliado impensável na busca de recursos para a manutenção dos quartéis. Num tempo em que a esquerda enfrentava derrotas no campo nacional, ele personalizou a moderação, o equilíbrio político, a busca do diálogo.

Nos anos 1990, José Genoino era o principal líder da Democracia Radical, corrente moderada do PT que defendia a construção de consensos com setores ao centro. A primeira vitória presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, com o empresário José Alencar como vice, provou que ele estava certo. Não por acaso, naquele mesmo ano, Genoino chegou ao segundo turno na disputa pelo governo de São Paulo, deixando o direitista Paulo Maluf na terceira posição.

Genoino durante caminhada em São Bernardo na campanha de Lula em 2002, com Itamar Franco, José Alencar e Luiz Marinho Foto: J.F.Diorio/Estadão

Com Lula no poder, Genoino obteve como prêmio de consolação a presidência do PT, que àquela altura tinha a estrutura montada por José Dirceu. Mais afeito à vida parlamentar e com histórico de corrente minoritária no PT, Genoino encontrou dificuldades no dia a dia da estrutura partidária. Em dado momento, acabou assinando empréstimo considerado ilegal, para justificar despesas da campanha nacional de 2002 que ele nem sequer participou.

A defesa afirmou que ele não acompanhou o empréstimo feito ao Banco Rural e assinou porque era o presidente do partido. O empréstimo com a assinatura de Genoino impactou na carreira política do moderado petista, mas não impediu a reeleição de Lula ou as vitórias de Dilma Rousseff nos anos seguintes. O ex-parlamentar nunca deixou de morar num pequeno sobrado no Butantã, na Zona Oeste de São Paulo. Não ficou rico com a política.

A assinatura de Genoino foi o motivo apresentado pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, para condenar o ex-parlamentar, de quem havia sido assessor jurídico na Liderança do PT nos anos 1990. Foi a grande chance de Toffoli tentar mostrar que não era um juiz com carteirinha do PT. Ele usou Genoino para isso. Mais tarde o ministro admitiu que tinha consciência de que Genoino era “inocente”. “Todavia, ele havia assinado o contrato de financiamento”, argumentou.

Em novembro de 2013, após a decretação da prisão, Genoino se entregou à Polícia Federal. Passou meses em regime fechado. Pela segunda vez, enfrentou a cadeia com dignidade, mas seguramente saiu dela mais entristecido e convencido de que os anos de moderado e construtor de consensos foram ignorados. A extinção da punibilidade veio em 2020. Ele tinha sido transformado em um “mensaleiro”, alvo de memes e xingamentos em passeatas de grupos com a camisa da seleção brasileira.

O então senador Antonio Carlos Magalhães e o então presidente do PT, José Genoino, em Brasília. Genoino mantinha ligação com lideranças da direita Foto: Dida Sampaio/Estadão

A polarização e o radicalismo querem, agora, transformar o democrata Genoino em um antissemita. Isso não é verdade, e não deve ser naturalizado. Foi o caso que, no sábado passado, ao participar de uma live, Genoino fez um comentário crítico a Israel. Sugeriu “a ideia de boicote” a “determinadas empresas de judeus”. Ele sofreu linchamento nas redes sociais por parte de militantes de grupos extremistas de direita.

O comentário no âmbito do conflito na Palestina foi infeliz, avaliaram mesmo pessoas próximas dele. Nestes tempos em que todo discurso gera uma explosão de engajamento, a fala de um político deve ser sempre mais bem pensada. Pela História, ele deveria fazer um pedido de desculpas, avaliam. Contudo, uma fala não pode justificar o linchamento do ex-parlamentar. Se Genoino optou nos dias atuais por um comportamento diferente da sua imagem mais tradicional, pode ser um caso a se lamentar. Agora, associá-lo ao que ele sempre condenou é incorreto.

O monitoramento implacável de qualquer situação que possa relativizar o ocorrido na Segunda Guerra é importante. O próprio Genoino soltou nota para rebater a acusação de uma entidade judaica de que era antissemita. “Não sou e nunca fui. Repudio, também, qualquer tipo de preconceito contra o povo judeu e defendo a existência de dois estados”, disse. No tempo do conflito sem fim, entretanto, o outro lado pouco importa. A explicação nada vale quando o linchamento já começou.

É a cultura do “print”. Quantas vezes você, leitor, leu alguém escrever que fulano não escapa pois o print é “eterno”. Ora, o que deveria valer é a posição contextualizada ou corrigida do indivíduo, a posição pensada, avaliada, e não uma frase no calor da hora, numa live, numa discussão de redes sociais. Mas aí estão os extremistas para julgar e condenar alguém apenas por uma declaração ou posicionamento. Eles defendem a violência.

O caso serve de alerta para aqueles que estimulam o confronto. O País cansou da visão de mundo do “nós contra eles”, estimulada na década passada por Lula, levada ao extremo por setores dos mais diferentes campos ideológicos. O ódio ao outro venceu a eleição de 2018, virou marca do mandato de Jair Bolsonaro e continua assombrando a vida pública.

A violência está na antipolítica, no regime autoritário, nas palavras que machucam no dia a dia, nos julgamentos precipitados, no ciúme entre integrantes de uma mesma legenda, nas classificações raivosas, seja na vida política, seja no cotidiano comum. A violência está na postura do jovem ministro do atual governo que, diante das críticas, troca a serenidade por declarações que banalizam a palavra fascismo. Está presente também nas redes formadas pelas militâncias da esquerda e da direita para atacar e linchar. A violência está no uso da História para apagar personagens do presente.

É possível que Genoino ache que foi punido tantas vezes exatamente por defender um meio termo. Talvez por isso tenha exagerado na declaração. Porém, linchá-lo verbalmente nada ajuda no combate ao radicalismo e à irracionalidade.

Genoino foi um guerrilheiro que não chegou a entrar em combate, um moderado rejeitado pelos moderados, um petista criticado por petistas, um presidente do PT que assumiu erros do antecessor. Preso como ladrão sem ter roubado. O antissemitismo não será combatido transformando um moderado em antissemita. Crítica é válida; linchamento, não.

Aos 24 anos, o estudante cearense José Genoino Netos chegava ao Araguaia para atuar na guerrilha comandada pelo judeu Maurício Grabois. Na mata do sudeste paraense, Geraldo, codinome do novo integrante do movimento, se passava por sitiante. A ideia do grupo era, na concepção maoísta, chegar ao poder a partir do campo. Os registros históricos indicam que ele sempre manteve o respeito e a fidelidade ao comandante-chefe.

A história de Genoino na luta armada terminou antes da guerra na floresta amazônica começar. Ele foi preso em abril de 1972 por um delegado local quando se deslocava para avisar companheiros da chegada da tropa – ao longo do tempo, agentes do Exército disputariam a fama de quem prendeu Genoino. Era o início da primeira de três campanhas das Forças Armadas para acabar com os focos guerrilheiros. Ele não viu os demais integrantes da guerrilha serem capturados e executados pelos militares depois de rendidos. Mas conheceria, nas prisões de Marabá, Brasília e São Paulo, a pior face da humanidade: a tortura.

José Genoino durante debate na Fundação Perseu Abramo, São Paulo, em 2019; preso na ditadura, foi um dos fundadores do PT Foto: Zé Carlos Barreta/Foto Arena - 05/08/2019

Quando saiu da cadeia, em 1977, passou a dar aulas de História em cursinho pré-vestibular em São Paulo. Foi nessa época que tomou uma atitude que revoltou dirigentes do PCdoB, a legenda que organizou a guerrilha. Ele entendeu que era preciso fazer uma reflexão sobre a luta armada.

Foi além. De ônibus, percorreu o Brasil para contar às famílias dos companheiros do Araguaia que seus filhos tinham morrido. Lideranças do partido mantinham a versão de que a guerrilha continuava viva. Os militares, por sua vez, afirmavam que nunca houve conflito na selva.

José Genoíno, algemado no meio da selva, na guerrilha do Araguaia, em 1972 Foto: Acervo O Globo

Genoino participou da fundação do PT. Em 1982, foi eleito deputado federal. No Congresso, enfrentou tanto a direita radical quanto a esquerda extremista. A História jamais esqueceu dos discursos de uma senadora petista que gritava: “dedo duro” do Araguaia. Era uma mentira. Quando o guerrilheiro prestou depoimento aos militares, ainda em 1972, o então Centro de Informações do Exército já tinha um álbum com as fotografias dos que ainda estavam na mata.

Em tempo de fogo amigo, um advogado muito ligado aos dirigentes do PT perambulava pelas redações de revistas para tentar emplacar um “dossiê” contra Genoino no tempo da guerrilha. Estava interessado no espólio que o parlamentar tinha construído em São Paulo.

José Genoino participou da Assembleia Constituinte de 1987 e 1988. Na fotografia, ele está de terno claro logo atrás do presidente, o deputado Ulysses Guimarães Foto: Agência Senado

O parlamentar nordestino sempre sorridente insistiu em construir pontes entre sindicatos, empresários, militares. Durante e depois da Assembleia Constituinte, as Forças Armadas tinham nele um aliado impensável na busca de recursos para a manutenção dos quartéis. Num tempo em que a esquerda enfrentava derrotas no campo nacional, ele personalizou a moderação, o equilíbrio político, a busca do diálogo.

Nos anos 1990, José Genoino era o principal líder da Democracia Radical, corrente moderada do PT que defendia a construção de consensos com setores ao centro. A primeira vitória presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, com o empresário José Alencar como vice, provou que ele estava certo. Não por acaso, naquele mesmo ano, Genoino chegou ao segundo turno na disputa pelo governo de São Paulo, deixando o direitista Paulo Maluf na terceira posição.

Genoino durante caminhada em São Bernardo na campanha de Lula em 2002, com Itamar Franco, José Alencar e Luiz Marinho Foto: J.F.Diorio/Estadão

Com Lula no poder, Genoino obteve como prêmio de consolação a presidência do PT, que àquela altura tinha a estrutura montada por José Dirceu. Mais afeito à vida parlamentar e com histórico de corrente minoritária no PT, Genoino encontrou dificuldades no dia a dia da estrutura partidária. Em dado momento, acabou assinando empréstimo considerado ilegal, para justificar despesas da campanha nacional de 2002 que ele nem sequer participou.

A defesa afirmou que ele não acompanhou o empréstimo feito ao Banco Rural e assinou porque era o presidente do partido. O empréstimo com a assinatura de Genoino impactou na carreira política do moderado petista, mas não impediu a reeleição de Lula ou as vitórias de Dilma Rousseff nos anos seguintes. O ex-parlamentar nunca deixou de morar num pequeno sobrado no Butantã, na Zona Oeste de São Paulo. Não ficou rico com a política.

A assinatura de Genoino foi o motivo apresentado pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, para condenar o ex-parlamentar, de quem havia sido assessor jurídico na Liderança do PT nos anos 1990. Foi a grande chance de Toffoli tentar mostrar que não era um juiz com carteirinha do PT. Ele usou Genoino para isso. Mais tarde o ministro admitiu que tinha consciência de que Genoino era “inocente”. “Todavia, ele havia assinado o contrato de financiamento”, argumentou.

Em novembro de 2013, após a decretação da prisão, Genoino se entregou à Polícia Federal. Passou meses em regime fechado. Pela segunda vez, enfrentou a cadeia com dignidade, mas seguramente saiu dela mais entristecido e convencido de que os anos de moderado e construtor de consensos foram ignorados. A extinção da punibilidade veio em 2020. Ele tinha sido transformado em um “mensaleiro”, alvo de memes e xingamentos em passeatas de grupos com a camisa da seleção brasileira.

O então senador Antonio Carlos Magalhães e o então presidente do PT, José Genoino, em Brasília. Genoino mantinha ligação com lideranças da direita Foto: Dida Sampaio/Estadão

A polarização e o radicalismo querem, agora, transformar o democrata Genoino em um antissemita. Isso não é verdade, e não deve ser naturalizado. Foi o caso que, no sábado passado, ao participar de uma live, Genoino fez um comentário crítico a Israel. Sugeriu “a ideia de boicote” a “determinadas empresas de judeus”. Ele sofreu linchamento nas redes sociais por parte de militantes de grupos extremistas de direita.

O comentário no âmbito do conflito na Palestina foi infeliz, avaliaram mesmo pessoas próximas dele. Nestes tempos em que todo discurso gera uma explosão de engajamento, a fala de um político deve ser sempre mais bem pensada. Pela História, ele deveria fazer um pedido de desculpas, avaliam. Contudo, uma fala não pode justificar o linchamento do ex-parlamentar. Se Genoino optou nos dias atuais por um comportamento diferente da sua imagem mais tradicional, pode ser um caso a se lamentar. Agora, associá-lo ao que ele sempre condenou é incorreto.

O monitoramento implacável de qualquer situação que possa relativizar o ocorrido na Segunda Guerra é importante. O próprio Genoino soltou nota para rebater a acusação de uma entidade judaica de que era antissemita. “Não sou e nunca fui. Repudio, também, qualquer tipo de preconceito contra o povo judeu e defendo a existência de dois estados”, disse. No tempo do conflito sem fim, entretanto, o outro lado pouco importa. A explicação nada vale quando o linchamento já começou.

É a cultura do “print”. Quantas vezes você, leitor, leu alguém escrever que fulano não escapa pois o print é “eterno”. Ora, o que deveria valer é a posição contextualizada ou corrigida do indivíduo, a posição pensada, avaliada, e não uma frase no calor da hora, numa live, numa discussão de redes sociais. Mas aí estão os extremistas para julgar e condenar alguém apenas por uma declaração ou posicionamento. Eles defendem a violência.

O caso serve de alerta para aqueles que estimulam o confronto. O País cansou da visão de mundo do “nós contra eles”, estimulada na década passada por Lula, levada ao extremo por setores dos mais diferentes campos ideológicos. O ódio ao outro venceu a eleição de 2018, virou marca do mandato de Jair Bolsonaro e continua assombrando a vida pública.

A violência está na antipolítica, no regime autoritário, nas palavras que machucam no dia a dia, nos julgamentos precipitados, no ciúme entre integrantes de uma mesma legenda, nas classificações raivosas, seja na vida política, seja no cotidiano comum. A violência está na postura do jovem ministro do atual governo que, diante das críticas, troca a serenidade por declarações que banalizam a palavra fascismo. Está presente também nas redes formadas pelas militâncias da esquerda e da direita para atacar e linchar. A violência está no uso da História para apagar personagens do presente.

É possível que Genoino ache que foi punido tantas vezes exatamente por defender um meio termo. Talvez por isso tenha exagerado na declaração. Porém, linchá-lo verbalmente nada ajuda no combate ao radicalismo e à irracionalidade.

Genoino foi um guerrilheiro que não chegou a entrar em combate, um moderado rejeitado pelos moderados, um petista criticado por petistas, um presidente do PT que assumiu erros do antecessor. Preso como ladrão sem ter roubado. O antissemitismo não será combatido transformando um moderado em antissemita. Crítica é válida; linchamento, não.

Aos 24 anos, o estudante cearense José Genoino Netos chegava ao Araguaia para atuar na guerrilha comandada pelo judeu Maurício Grabois. Na mata do sudeste paraense, Geraldo, codinome do novo integrante do movimento, se passava por sitiante. A ideia do grupo era, na concepção maoísta, chegar ao poder a partir do campo. Os registros históricos indicam que ele sempre manteve o respeito e a fidelidade ao comandante-chefe.

A história de Genoino na luta armada terminou antes da guerra na floresta amazônica começar. Ele foi preso em abril de 1972 por um delegado local quando se deslocava para avisar companheiros da chegada da tropa – ao longo do tempo, agentes do Exército disputariam a fama de quem prendeu Genoino. Era o início da primeira de três campanhas das Forças Armadas para acabar com os focos guerrilheiros. Ele não viu os demais integrantes da guerrilha serem capturados e executados pelos militares depois de rendidos. Mas conheceria, nas prisões de Marabá, Brasília e São Paulo, a pior face da humanidade: a tortura.

José Genoino durante debate na Fundação Perseu Abramo, São Paulo, em 2019; preso na ditadura, foi um dos fundadores do PT Foto: Zé Carlos Barreta/Foto Arena - 05/08/2019

Quando saiu da cadeia, em 1977, passou a dar aulas de História em cursinho pré-vestibular em São Paulo. Foi nessa época que tomou uma atitude que revoltou dirigentes do PCdoB, a legenda que organizou a guerrilha. Ele entendeu que era preciso fazer uma reflexão sobre a luta armada.

Foi além. De ônibus, percorreu o Brasil para contar às famílias dos companheiros do Araguaia que seus filhos tinham morrido. Lideranças do partido mantinham a versão de que a guerrilha continuava viva. Os militares, por sua vez, afirmavam que nunca houve conflito na selva.

José Genoíno, algemado no meio da selva, na guerrilha do Araguaia, em 1972 Foto: Acervo O Globo

Genoino participou da fundação do PT. Em 1982, foi eleito deputado federal. No Congresso, enfrentou tanto a direita radical quanto a esquerda extremista. A História jamais esqueceu dos discursos de uma senadora petista que gritava: “dedo duro” do Araguaia. Era uma mentira. Quando o guerrilheiro prestou depoimento aos militares, ainda em 1972, o então Centro de Informações do Exército já tinha um álbum com as fotografias dos que ainda estavam na mata.

Em tempo de fogo amigo, um advogado muito ligado aos dirigentes do PT perambulava pelas redações de revistas para tentar emplacar um “dossiê” contra Genoino no tempo da guerrilha. Estava interessado no espólio que o parlamentar tinha construído em São Paulo.

José Genoino participou da Assembleia Constituinte de 1987 e 1988. Na fotografia, ele está de terno claro logo atrás do presidente, o deputado Ulysses Guimarães Foto: Agência Senado

O parlamentar nordestino sempre sorridente insistiu em construir pontes entre sindicatos, empresários, militares. Durante e depois da Assembleia Constituinte, as Forças Armadas tinham nele um aliado impensável na busca de recursos para a manutenção dos quartéis. Num tempo em que a esquerda enfrentava derrotas no campo nacional, ele personalizou a moderação, o equilíbrio político, a busca do diálogo.

Nos anos 1990, José Genoino era o principal líder da Democracia Radical, corrente moderada do PT que defendia a construção de consensos com setores ao centro. A primeira vitória presidencial de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, com o empresário José Alencar como vice, provou que ele estava certo. Não por acaso, naquele mesmo ano, Genoino chegou ao segundo turno na disputa pelo governo de São Paulo, deixando o direitista Paulo Maluf na terceira posição.

Genoino durante caminhada em São Bernardo na campanha de Lula em 2002, com Itamar Franco, José Alencar e Luiz Marinho Foto: J.F.Diorio/Estadão

Com Lula no poder, Genoino obteve como prêmio de consolação a presidência do PT, que àquela altura tinha a estrutura montada por José Dirceu. Mais afeito à vida parlamentar e com histórico de corrente minoritária no PT, Genoino encontrou dificuldades no dia a dia da estrutura partidária. Em dado momento, acabou assinando empréstimo considerado ilegal, para justificar despesas da campanha nacional de 2002 que ele nem sequer participou.

A defesa afirmou que ele não acompanhou o empréstimo feito ao Banco Rural e assinou porque era o presidente do partido. O empréstimo com a assinatura de Genoino impactou na carreira política do moderado petista, mas não impediu a reeleição de Lula ou as vitórias de Dilma Rousseff nos anos seguintes. O ex-parlamentar nunca deixou de morar num pequeno sobrado no Butantã, na Zona Oeste de São Paulo. Não ficou rico com a política.

A assinatura de Genoino foi o motivo apresentado pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, para condenar o ex-parlamentar, de quem havia sido assessor jurídico na Liderança do PT nos anos 1990. Foi a grande chance de Toffoli tentar mostrar que não era um juiz com carteirinha do PT. Ele usou Genoino para isso. Mais tarde o ministro admitiu que tinha consciência de que Genoino era “inocente”. “Todavia, ele havia assinado o contrato de financiamento”, argumentou.

Em novembro de 2013, após a decretação da prisão, Genoino se entregou à Polícia Federal. Passou meses em regime fechado. Pela segunda vez, enfrentou a cadeia com dignidade, mas seguramente saiu dela mais entristecido e convencido de que os anos de moderado e construtor de consensos foram ignorados. A extinção da punibilidade veio em 2020. Ele tinha sido transformado em um “mensaleiro”, alvo de memes e xingamentos em passeatas de grupos com a camisa da seleção brasileira.

O então senador Antonio Carlos Magalhães e o então presidente do PT, José Genoino, em Brasília. Genoino mantinha ligação com lideranças da direita Foto: Dida Sampaio/Estadão

A polarização e o radicalismo querem, agora, transformar o democrata Genoino em um antissemita. Isso não é verdade, e não deve ser naturalizado. Foi o caso que, no sábado passado, ao participar de uma live, Genoino fez um comentário crítico a Israel. Sugeriu “a ideia de boicote” a “determinadas empresas de judeus”. Ele sofreu linchamento nas redes sociais por parte de militantes de grupos extremistas de direita.

O comentário no âmbito do conflito na Palestina foi infeliz, avaliaram mesmo pessoas próximas dele. Nestes tempos em que todo discurso gera uma explosão de engajamento, a fala de um político deve ser sempre mais bem pensada. Pela História, ele deveria fazer um pedido de desculpas, avaliam. Contudo, uma fala não pode justificar o linchamento do ex-parlamentar. Se Genoino optou nos dias atuais por um comportamento diferente da sua imagem mais tradicional, pode ser um caso a se lamentar. Agora, associá-lo ao que ele sempre condenou é incorreto.

O monitoramento implacável de qualquer situação que possa relativizar o ocorrido na Segunda Guerra é importante. O próprio Genoino soltou nota para rebater a acusação de uma entidade judaica de que era antissemita. “Não sou e nunca fui. Repudio, também, qualquer tipo de preconceito contra o povo judeu e defendo a existência de dois estados”, disse. No tempo do conflito sem fim, entretanto, o outro lado pouco importa. A explicação nada vale quando o linchamento já começou.

É a cultura do “print”. Quantas vezes você, leitor, leu alguém escrever que fulano não escapa pois o print é “eterno”. Ora, o que deveria valer é a posição contextualizada ou corrigida do indivíduo, a posição pensada, avaliada, e não uma frase no calor da hora, numa live, numa discussão de redes sociais. Mas aí estão os extremistas para julgar e condenar alguém apenas por uma declaração ou posicionamento. Eles defendem a violência.

O caso serve de alerta para aqueles que estimulam o confronto. O País cansou da visão de mundo do “nós contra eles”, estimulada na década passada por Lula, levada ao extremo por setores dos mais diferentes campos ideológicos. O ódio ao outro venceu a eleição de 2018, virou marca do mandato de Jair Bolsonaro e continua assombrando a vida pública.

A violência está na antipolítica, no regime autoritário, nas palavras que machucam no dia a dia, nos julgamentos precipitados, no ciúme entre integrantes de uma mesma legenda, nas classificações raivosas, seja na vida política, seja no cotidiano comum. A violência está na postura do jovem ministro do atual governo que, diante das críticas, troca a serenidade por declarações que banalizam a palavra fascismo. Está presente também nas redes formadas pelas militâncias da esquerda e da direita para atacar e linchar. A violência está no uso da História para apagar personagens do presente.

É possível que Genoino ache que foi punido tantas vezes exatamente por defender um meio termo. Talvez por isso tenha exagerado na declaração. Porém, linchá-lo verbalmente nada ajuda no combate ao radicalismo e à irracionalidade.

Genoino foi um guerrilheiro que não chegou a entrar em combate, um moderado rejeitado pelos moderados, um petista criticado por petistas, um presidente do PT que assumiu erros do antecessor. Preso como ladrão sem ter roubado. O antissemitismo não será combatido transformando um moderado em antissemita. Crítica é válida; linchamento, não.

Opinião por Leonencio Nossa

Editor de especiais do Estadão. Mestre em história e política. Autor dos livros “As guerras da Independência do Brasil”, “Roberto Marinho, o poder está no ar” e “Mata! O Major Curió e as guerrilhas no Araguaia”. Escreve aos sábados.

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